Crianças até os cinco anos de idade são as mais atingidas na tragédia humanitária dos Yanomami
Foto Michael Dantas/AFP
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Dentre os muitos vídeos que surgiram após o afrontoso ataque às instituições democráticas na praça dos Três Poderes, um deles não ganhou destaque na mídia, pois os que despertavam interesse do público eram os que exibiam justamente as depredações infames e acintosas ao patrimônio público. E esse não mostrava. Mas carregava em seu conteúdo um simbolismo. Era a imagem da prisão de uma golpista que se recusou a sair de um acampamento em frente a um quartel em Belém (PA). Enquanto os policiais a levavam para entrar no camburão, a mulher, branca e de meia idade, esperneava e gritava: “Eu tenho família! Eu tenho família!”. E parecia espantada que seu grito insistente não surtisse efeito na ação dos policiais que a prendiam. Para ela, seu brado retumbante, com ênfase na palavra “família”, era o argumento definitivo para que fosse imediatamente solta.
O clamor tão enfático daquela golpista está em total consonância com o que pensa grande parte dos eleitores da extrema direita e retrógrados em geral: costumam considerar que somente eles têm família. Para eles, quem pensa, vota e se comporta de forma diferente da deles não tem, ou não merece ter família. Ouvi da boca de uma bolsonarista: “Lula é contra a família (entenda-se aqui família como instituição social)”. Quando o irmão e o neto do presidente faleceram, enquanto ele ainda encontrava-se preso em Curitiba, os bolsonaristas consideraram um benefício extraordinário o político ter o direito de ir aos respectivos enterros de seus parentes. Foi, inclusive, proibido de comparecer ao do irmão, pois uma liberação judicial atrasada inviabilizou sua ida.
Não é de se espantar que pensem assim, pois historicamente não nutrem empatia e até desprezam as minorias que têm suas famílias desintegradas, seja pela escravidão, pelo trabalho escravo, pelas consequências da fome, do desemprego, da violência, pelo assassinato de pessoas pobres e negras por agentes do Estado, pela agressão e morte de pessoas LGBTQIA+. Fazem vista grossa ao secular genocídio das populações negras e indígenas.
Nos últimos dias de janeiro, a notícia das 570 mortes de crianças Yanomami com menos de cinco anos de idade por desnutrição severa e doenças (além de centenas de outros indígenas encontrados em situação de calamidade) vem chocando o Brasil e o mundo. Esses óbitos ocorreram durante os quatro anos do governo Bolsonaro. Claramente poderiam ter sido evitados, assim como as mortes de indígenas durante a pandemia, se os alertas de ativistas tivessem sido ouvidos pelo governo e pela sociedade – os casos de malária aumentaram de 2.928, em 2014, para 20.394, em 2021.
Somente agora a fome e os problemas de saúde dos indígenas ganharam reverberação maior, pois se transformaram em uma tragédia, a qual podemos chamar, sem dúvida, pelo nome de – segundo um dos artigos da Convenção das Nações Unidas de 1951, configura-se como tal "criar condições que ameacem a vida de membros do grupo, com capacidade de destruí-lo total ou parcialmente". Foi preciso chegar a essa taxa de mortalidade, ainda subnotificada, para que houvesse um interesse massivo por parte da mídia e da sociedade.
A desnutrição severa dos Yanomami tem motivo, a poluição das águas com mercúrio para o garimpo, que mata rios, peixes e os indígenas, pois inviabiliza a alimentação natural dos povos originários. O governo Bolsonaro ignorou as denúncias e, ainda ao desmontar a fiscalização, possibilitou o avanço dos garimpeiros na maior terra indígena do país – boa parte desses garimpeiros é de integrantes de facções criminosas, como o PCC.
Em abril de 2022, o texto “Eles tornam nosso mundo menor”, publicado nesta coluna, abordou a violência sofrida pelos Yanomami, a partir da notícia do estupro e da morte de uma menina de 12 anos. O fato divulgado nos veículos de imprensa dava a entender que era um caso isolado. No entanto, já havia denúncias de que os garimpeiros estavam estuprando as adolescentes e chantageando os indígenas usando comida em troca de sexo com as meninas. Há relatos de crianças que vão se tratar nos postos de saúde, longe de suas aldeias, e são retiradas de seus pais e levadas para adoção.
É preciso que a sociedade não somente se indigne e divulgue essa tragédia, mas também que exija a punição dos culpados. Na cena desse crime, há o DNA de muita gente: desde o ex-presidente Jair Bolsonaro, passando pela ex-ministra da Mulher e da Família, Damares Alves, que proibiu, em julho de 2020, a distribuição de água potável e leitos de UTI para os indígenas, e pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que ignorou os pedidos de ajuda de Dário Kopenawa, também em julho de 2020, chegando até os garimpeiros ilegais, que, além de pedofilia, estão cometendo crime ambiental, ao abrir verdadeiras crateras em terras indígenas que também são áreas de proteção da floresta amazônica. E isso traz não "apenas" desmatamento e poluição, mas desequilíbrios severos, como a proliferação de doenças – a malária é um exemplo.
A crise humanitária que ocorre com os Yanomami não é somente uma das tantas consequências drásticas da incompetência do governo Bolsonaro, mas o resultado direto de uma política que deveria ter o nome de exterminadora do futuro – do nosso futuro como espécie, pois não devemos nunca esquecer que demarcar terras indígenas é também garantir a preservação de um dos biomas mais importantes do planeta. A devastação provocada pelo garimpo dobrou nos últimos 10 anos e, em especial, durante o mandato de Bolsonaro – de alguma forma, ele atingiu os Yanomami, algo que, aliás, já vinha tentando há décadas.
Em 1992, quando era deputado federal, Bolsonaro apresentou um projeto que previa a extinção da reserva Yanomami, demarcada apenas um ano antes. O projeto foi arquivado, mas o político o reativou por mais quatro vezes. Em um dos seus discursos, afirmou: “A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”.
Essa não é a primeira vez que os Yanomami são vítimas de uma tragédia anunciada. Na ditadura militar, 8 mil deles foram mortos durante a construção de quatro rodovias pertencentes ao Plano Nacional de Integração (PIN), do governo Médici. De volta ao poder, através do governo Bolsonaro, os militares estão envolvidos em mais um desfecho trágico para os indígenas. As manchetes demonstram: “Militares que dirigiram Ibama ignoraram plano de socorro a povo Yanomami”; “Em áudio, militares na Funai prometem atropelar Ibama e liberar garimpo em terras indígenas”; “Relatório aponta militares comprados pelo garimpo na TI Yanomami no início da gestão Bolsonaro”; “Tenente do Exército, coordenador da Funai fala em ‘meter fogo’ em índios isolados no AM”; “Na cidade mais indígena do Brasil, Exército ocupa e domina vida civil”; “Militar da Funai é acusado de desviar patrimônio de indígenas Mura”; “Militares arrendam ilegalmente terras indígenas para latifundiários”.
Enquanto isso, a “tradicional família brasileira” ou não se informava, ou não estava nem aí mesmo. Nas redes bolsonaristas, chegaram a divulgar que as notícias sobre o martírio dos Yanomami eram fake news – a própria Regina Duarte, atriz e ex-secretária de Cultura do país, insinuou isso em post no seu Instagram. Para essas pessoas, que se dizem cristãs, talvez seja mais fácil acreditar que todo esse sofrimento inquestionável é mentira do que constatar que apoiaram, durante quatro anos, um governo que levou à morte centenas de seres humanos, inclusive crianças totalmente inocentes. Não somente apoiaram, como ainda lutaram pela volta dele ao poder a partir da tentativa de golpe no dia 8 de janeiro.
E foi exatamente a “família”, a palavra e a imagem, que a maior parte dos detidos, como a senhora lá do começo do texto, usou como pretexto para serem libertados da prisão por invadirem, depredarem o STF, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional. Além dos argumentos habituais da “residência fixa” e “ausência de antecedentes criminais”, os presos, através de seus advogados, alegaram que precisavam cuidar da família, da mãe doente, dos filhos — os mesmos familiares que não necessitavam de ajuda no dia 8 de janeiro de 2023, quando os seus responsáveis resolveram depredar instituições democráticas.
Para serem libertados ou ganharem o direito à prisão domiciliar, há detidos que anexaram atestados de empresas, entidades, amigos e até de clubes garantindo que integram a categoria “cidadão de bem”. Muitos alegam que não podem ser presos porque são “arrimos de família”. Outros apresentaram atestado médico, justificando problemas como ansiedade. Imagino como estavam ansiosos para a invasão à Praça dos Três Poderes e a volta do Messias de Miami. Os bolsonaristas são como seu líder, só se importam com a própria família.
O que se espera agora, diante de todos esses crimes, é que a justiça seja feita. E que possam se encontrar, sob o mesmo teto de uma penitenciária, os golpistas cidadãos de bem e os exterminadores de indígenas. Processar os primeiros é tarefa mais fácil para os órgãos competentes, pois muitos suspeitos já foram detidos e identificados. Prender os segundos será uma missão quase impossível. O governo Lula vai precisar encampar quase uma guerra, envolvendo vários órgãos – inclusive os militares.
Estima-se que haja cerca de 20 mil garimpeiros na região, muitos deles armados com fuzis e armas que derrubam até aeronaves. Hoje possuem uma estrutura tecnológica infinitamente superior à de 1992, quando houve uma megoperação do governo federal contra o garimpo ilegal na região, que expulsou cerca de 40 mil deles. Essa demanda dificílima é mais uma da lista do “mandato mais importante” de Lula. E ele vai ser cobrado por isso, se a situação dos Yanomami não melhorar nos próximos meses ou anos. Quem viu as imagens dos indígenas fenecendo silenciosamente em pele e osso, sabe que é inevitável essa guerra pela vida, pela dignidade humana, pela família. Eles também têm família!
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