Um desentendimento entre motoristas. Qual condutor não passou por isso? Qual pessoa nunca testemunhou uma cena dessas no trânsito? Eu mesma já estive no meio de uma situação assim. Certa vez, meu marido, ao volante, reclamou de um outro motorista, por conta de um fechamento brusco. No momento da raiva, além de uma forte buzinada, lhe escapuliu um palavrão, que obviamente não foi ouvido pelo outro homem, pois as janelas de ambos os carros estavam fechadas. Mas o desconhecido fez uma competente leitura labial à distância. E isso foi o suficiente para que desviasse de seu próprio caminho e passasse a nos perseguir durante boa parte do nosso percurso para casa. Nosso filho ainda era um bebê e estava dormindo no banco de trás. Ficamos preocupados com o que iria se desenrolar a partir de então, como se estivéssemos dentro do primeiro filme de Steven Spielberg, Encurralado (1971), no qual um motorista é perseguido por um caminhoneiro, cujo rosto nunca vemos, mas que quer obcecadamente vingar-se daquele que lhe atrapalhou de alguma forma no tráfego. Não foi uma preocupação em vão a nossa, afinal há muitas brigas de motoristas que terminam em violência física ou em morte.
Uma situação semelhante a essa é o mote de Beef (Treta, em português), o melhor lançamento do ano na Netflix – pelo menos, até agora. A série, produzida pelo badalado estúdio A24 (Moonlight, Midsommar, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, Close…), inicia despretensiosamente com uma cena comum, um desentendimento entre dois desconhecidos no estacionamento de uma loja. Criada por Lee Sung Jin, a partir de um episódio real ocorrido com o criador e roteirista, o gancho para a trama passa a desencadear diversas situações que misturam drama, suspense, comédia e ação – como quando o protagonista Danny Cho passa a dirigir no encalço do outro automóvel, considerando que quem está no volante seja um homem, devido ao comportamento afrontoso: um dedo médio foi mostrado na saída do estacionamento e o carro saiu disparado em alta velocidade, fazendo várias manobras arriscadas. A partir daí, Danny, um faz-tudo sem muito jeito para qualquer coisa, descobre quem é o condutor e entra em contato pela primeira vez com a empresária Amy Lau. Ambos estão visivelmente estressados e – saberemos depois – descontentes com suas vidas, tentando consertar o que há de errado nelas. Mas deixam de focar em seus problemas para tentar se vingar mutuamente, numa competição para ver quem consegue fazer mais mal ao outro, o que acaba servindo como válvula de escape para as suas frustrações.
Os personagens são interpretados pelos atores de descendência asiática, o sul-coreano Steven Yeun e a norte-americana Ali Wong, numa química de atuação impressionante. Ele é mais conhecido pelos seus papéis em Walking dead e Minari: Em busca da felicidade, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator em 2021. Ela é comediante com três especiais bem-sucedidos na Netflix. O sucesso dela na plataforma gabarita o seu talento na área da comédia, visto que a empresa investe fortemente em stand-up comedy; logo, há muitos concorrentes disputando o interesse do telespectador.
De ótima humorista, Ali Wong, que já atuou na TV e no cinema, desponta em Beef como uma excelente atriz, tendo a chance de explorar um roteiro que lhe dá a oportunidade de demonstrar várias facetas de sua personagem, uma empresária casada com o escultor George Nakai (Joseph Lee, na vida real também artista plástico), um herdeiro rico que vive em casa trabalhando com tranquilidade e conforto em esculturas de gosto duvidoso.
A série, aliás, aborda, em paralelo, o universo do mercado da arte e o fetiche de colecionadores que compram produtos artísticos e culturais para usá-los como símbolos de status. A ricaça Jordan (Maria Bello) é um exemplo disso. Ela tenta adquirir objetos de povos colonizados e o negócio de Amy, uma rentável loja de comércio de plantas. Grande parte do esforço diário de Amy vem do fato de trabalhar bastante, ficando, assim, muito tempo longe da filha criança, e de tentar manter-se aparentemente impassível diante de qualquer tipo de situação, por mais constrangedora que seja, como a demorada negociação com Jordan.
A vida de Amy está ambientada no contexto das redes sociais, em que a imagem pública importa muito. E ela sabe disso. Precisa, para sua sobrevivência como empresária, cultivar uma imagem zen, também atrelada ao estereótipo de comportamento que o ocidente espera ver dos asiáticos. Suas tentativas de lamentar, ao menos com o marido, os problemas de sua vida e a treta específica com o desconhecido do trânsito são sutilmente sufocadas com frases de positividade tóxica. Seu terror é que o vídeo que flagrou a sua briga no trânsito seja vazado.
A cada episódio de Treta, as situações escalam em agressividade de tal maneira que Danny e Amy não conseguem mais voltar ao ponto antes de tudo começar. O roteiro monta um quebra-cabeça de vários personagens e fatos desencadeados, que culmina com um desfecho irrefreável. E nesse momento, a série nos põe a refletir sobre diversas questões: o estresse e a violência, resultado da disputa pela sobrevivência no mundo neoliberal, o ódio generalizado na vida cotidiana das cidades, a mistura difusa entre a ambição e a vaidade contemporâneas, a moral escondida nas pequenas e grandes atitudes, e, enfim, a inconsciência da solidão e o sentimento do vazio existencial que pode afetar tanto pobres quanto ricos.
Treta promove o encontro do mundo das castas sociais e mostra as diferenças e semelhanças de seus métodos e objetivos. Danny e Amy, tão diferentes em classes sociais, são almas gêmeas não no amor, mas em seus ódios, compartilhados entre eles, distantes do restante da sociedade. Ao final, é preciso que o espectador preste atenção aos gestos mais sutis para perceber o caminho da saída do conflito.
Após o seu lançamento, a série alcançou expressivos 99% de aprovação no Rotten Tomatoes, que faz o apanhado do resultado das críticas de vários veículos de imprensa. E ganhou ótima repercussão nas redes sociais, até que a internet resgatou uma treta da vida real, envolvendo um coadjuvante importante, o primo de Danny, Isaac Cho. Ele é interpretado por David Choe, artista plástico na vida real, conhecido por ter grafitado as paredes da sede do Facebook – e de ter aceitado de Mark Zuckerberg o cachê de 60 mil dólares em ações, o que o tornou, em pouco tempo, muito rico.
São deles as telas que aparecem na abertura de cada episódio que trazem frases de artistas como Werner Herzog, Franz Kafka, Sylvia Plath e Joseph Campbell. Em 2014, em um podcast com uma atriz pornô, David contou uma história bizarra de que teria obrigado uma massagista a fazer sexo oral nele. Posteriormente, ele negou, alegando que havia inventado o causo. Mas aí já era tarde. A fala pipocou. Desculpou-se pelo que foi dito. E Steven Yeun, intérprete de Danny, foi criticado por ter argumentado que David já havia pedido desculpas. Apesar da treta real, não deixe de ver Treta, a série. Poucas vezes, o streaming conseguiu apresentar um roteiro tão excelente e atual.
Seguem abaixo outros títulos imperdíveis do acervo da Netflix:
Seinfeld – A Netflix havia entrado numa disputa de cachorro grande das plataformas de streaming para conseguir o direito de exibir Seinfeld, aquele tipo de série clássica que é exibida à exaustão na TV a cabo e o espectador pára tudo o que estiver fazendo para assistir, mesmo que já tenha visto ou revisto o episódio várias vezes. O elenco reúne os beatles da comédia dos anos 1990, Jason Alexander, Julia Louis-Dreyfus, Michael Richards e Jerry Seinfeld (o Ringo, nesse caso) – cocriador do programa com Larry David, o homem que brinca no fio da navalha do humor e finca sua obra nas possibilidades infinitas dos mal-entendidos do cotidiano.
Ozark – Raríssimas vezes na TV uma série vem com um pacote completo. Além de uma ótima trama, que envolve drama e comédia sombria, consegue apresentar uma estética própria, com fotografia marcante, tipografia, trilha sonora. E tudo isso faz sentido em conjunto. Ozark tem no elenco a estrela em ascensão Julia Garner brilhando ao lado dos veteranos Jason Bateman e Laura Linney, em uma história de tráfico de drogas que mergulha no encontro entre duas famílias norte-americanas: um bando de rednecks beberrões sem perspectiva de futuro e um núcleo familiar que vive o sonho americano ignorando, por sobrevivência e cinismo, as leis do próprio país.
The Crown – A série remonta o reinado e as tretas da família da Rainha Elizabeth II. É uma pequena aula de história para se entender a geopolítica e o imperialismo contemporâneo da Inglaterra. Muitos dos diálogos da série são, claro, ficcionais, pois encontram-se no ambiente da intimidade da realeza. Mas estão ancorados em fatos que entraram para a história, no noticiário internacional ou nos próprios tablóides ingleses. Para quem gosta de reconstituição histórica, fofocas de celebridades e um roteiro requintado e bem-amarrado. Muitos dos episódios são primorosos.
Anne with an E – Se existe um tesouro escondido ou pouco explorado no acervo da plataforma é Anne with an E, uma produção canadense adquirida pela plataforma de streaming e encerrada por ela na terceira temporada, em 2021, por não ter tido a audiência esperada. A série é dedicada ao público infanto-juvenil, baseada em uma série de livros que conta a vida da protagonista, da infância à adolescência, mas pode ser assistida com prazer pelos adultos, pois a trama também envolve questões relativas aos mais velhos e abordadas com muita sensibilidade. Um abaixo-assinado mundial pedindo sua continuação dá a dimensão do amor que ela despertou. Eu também assinei.
Breaking Bad – O que mais falar sobre Breaking bad? Podemos dizer que surpreendentemente ainda há pessoas no mundo que não assistiram a esse clássico absoluto da TV. Poderia mencionar muitas de suas qualidades, mas vou destacar o roteiro brilhante e a atuação histórica de Bryan Cranston, que fez Anthony Hopkins escrever, em 2013, uma mensagem memorável ao ator para assinalar que fora a melhor interpretação que ele já havia visto em toda a sua vida. Essa declaração talvez seja o maior dos tantos prêmios que Cranston recebeu por interpretar magnificamente o professor Walter White. Com sua performance, demonstrou que no silêncio, talvez até mais do que nas falas, podemos perceber quão boa é uma atuação. E ele tem esse talento imenso de transmitir ao espectador o que pensa sem, às vezes, dizer uma palavra sequer.
Peaky Blinders – A primeira vez que ouvi falar na série foi através de uma sugestão de Fernando Haddad em um post nas redes sociais. Ele estava em campanha presidencial. E vinculou a história dessa família de mafiosos a dos familicianos cariocas. Peaky Blinders se passa no início do século passado na Inglaterra e é baseada na história real de uma gangue formada por parentes e conhecidos. Tão boa quanto Boardwalk Empire, que tem uma atmosfera semelhante, é aquele tipo de série que faz você torcer muito pelo bandido.
Everybody hates Chris – Sou fã de Seinfeld, Curb your enthusiasm e How I met your mother, mas nunca ri tanto com uma série quanto com Everybody hates Chris. Criada por Chris Rock, protagonista da maior treta da história do Oscar ou, quem sabe, da TV, o comediante elaborou a série inspirado em sua própria família e em eventos de sua infância e adolescência, mas com algumas mudanças em prol do curso da narrativa e do humor. O único problema dessa série é que ela acabou na quarta temporada.
Atlanta – Criada pelo multitalentoso Donald Glover, Atlanta vem preencher uma grande lacuna nas séries baseadas em questões vividas por pessoas negras. E o criador, ator, comediante, músico e roteirista sabe elaborar situações em que explora um ponto de vista crítico com relação ao racismo e cinismo da sociedade. Atlanta tem momentos tão marcantes que alguns de seus diálogos já circularam bastante pelas redes sociais. Aborda as agruras da vida de um quarteto de personagens que tenta ultrapassar os limites impostos pela sociedade aos negros.
Swarm – Donald Glover também está brilhando em outra série sobre tretas, Swarm (Enxame), dessa vez ao lado de Janine Nabers (Watchmen) e na Amazon Prime – e aqui preciso abrir espaço para sair um pouco da lista inicial da Netflix. A história é inspirada nos fandoms, especialmente o de Beyoncé e no seu nome, o Bey Hive (um trocadilho para beehive, colmeia em inglês), e em fatos ocorridos com a própria estrela. O roteiro que mescla suspense e comédia sombria segue Dre (Dominique Fishback), fã obsessiva da cantora fictícia Ni'jah e que busca uma vingança alucinada contra quem criticar a sua ídola e principalmente a partir de discursos de ódio nas redes sociais. Entrelaçando ficção e realidade, a série surpreende, especialmente no sexto episódio, absolutamente genial.
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