ILUSTRAÇÕES YELLOW
03 de Maio de 2021
Intervenção na pintura 'O nascimento de Vênus', de Sandro Botticceli, 1485-86
Ilustração Yellow
[conteúdo na íntegra ed. 245 | maio de 2021]
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“Envelhecer ainda é a única maneira que se descobriu de viver muito tempo.”
(Charles Saint-Beuve)
“A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer.”
(Arnaldo Antunes)
Enquanto aprendia a tocar piano sozinho em casa, o jovem James Paul McCartney compôs uma de suas primeiras músicas. A letra começava com a seguinte questão: “Quando eu ficar mais velho, perdendo meus cabelos/ Daqui a muitos anos/ Você ainda irá me mandar presentes no Dia dos Namorados?”. Em When I'm sixty-four, o autor oferece compensações futuras à sua amada: “Eu posso ser útil, consertando um fusível/ Quando suas luzes apagarem/ Você poderia me tricotar um suéter perto da lareira/ Nas manhãs de domingo, daremos uma volta/ Cuidando do jardim, arrancando as ervas daninhas/ Quem poderia pedir por mais/ Você ainda precisará de mim, ainda irá me alimentar/ Quando eu estiver com sessenta e quatro?”.
Paul tinha 16 anos, em 1958, quando fez essa canção que evoca a musicalidade burlesca do vaudeville das décadas de 1920 e 1930. Sua preocupação, expressa nas estrofes gravadas no revolucionário álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), demonstrava a visão preponderante sobre a velhice, em meados do século XX. A imagem que se tinha de alguém com 64 anos era a de um idoso de cabelos brancos, um pouco corcunda, com passos lentos, aposentado, vida pacata, sem ambição ou propósito, “perto do final da vida”.
O então jovem deveria imaginar que, aos 64 anos, estaria, portanto, de pantufas em casa, resolvendo um ou outro problema doméstico, enquanto cumpriria o cotidiano estereotipado de um idoso. O que aquele adolescente, antes de se tornar um beatle e um dos ícones da contracultura dos anos 1960, talvez não tenha cogitado é que, prestes a completar 79 anos em junho de 2021, estaria ainda trabalhando, compondo, gravando discos e realizando shows (mesmo com o auxílio de teleprompter), contrariando seu antigo empresário, que, em 1992, o aconselhou a parar, “porque já estava começando a ficar constrangedor”, quando o artista completara – apenas – 50 anos.
Paul e todos os representantes culturais de sua geração provavelmente não imaginaram que estariam nos palcos em idades nas quais se costumava estar aposentado de suas profissões. No advento do rock’n’roll na década de 1950, era difícil vislumbrar um cenário em que um bando de pessoas com cabelos brancos e rugas empunhariam instrumentos musicais, tocando e cantando um gênero estritamente associado, em sua gênese, à juventude (isso abrange artistas, fãs e temáticas). Em um dos principais hinos dos anos 1960, uma frase declarava enfaticamente: “Espero morrer antes de ficar velho”. A famosa estrofe de My generation, lançada pelo The Who em 1965, acabou virando uma ironia do destino na voz de dois senhores idosos: o vocalista Roger Daltrey, 77 anos, e o autor da composição, o guitarrista Pete Townshend, 75 anos. Ambos, os únicos remanescentes da banda britânica, continuam se apresentando.
Se, para Paul, o sonho de um retorno dos Beatles estava fora de cogitação, principalmente após o assassinato de John Lennon, aos 40 (em 1980), e a morte de George Harrison por câncer, aos 58 (em 2001), os Rolling Stones continuam mantendo o feito impressionante de banda de rock que está há mais tempo em atividade. Em 2022, serão 60 anos, contrariando o que Mick Jagger afirmou em 1966: “Eu prefiro estar morto a continuar cantando Satisfaction aos 45 anos”. Ele tinha 23 anos quando se recusou terminantemente a, no futuro, cantar o hit que canta até hoje, aos 77. Para fãs, velhos ou novos, parece um milagre ver, ao vivo, alguns dos principais ícones do estilo de vida “sexo, drogas & rock’n’roll”. O caso do guitarrista e compositor do grupo é especialmente emblemático, pois ele vivia mergulhado em drogas e escapou de algumas overdoses. Hoje, sua simples existência é motivo para o compartilhamento de vários memes pelas redes sociais. Um deles traz a seguinte reflexão à humanidade: “Temos que pensar que tipo de mundo nós vamos deixar para Keith Richards”.
Intervenção na pintura O baile no Moulin de La Galette, de Pierre-Auguste Renoir, 1876
Keith, 77, e a Rainha Elizabeth II, 95, são alvos frequentes de piadas e memes por sua longevidade e atividade na vida pública. Quando ambos nasceram, a expectativa de vida na Inglaterra era, respectivamente, de 63 anos (década de 1940) e 59 anos (década de 1920). Hoje é de 81 anos. A expectativa de vida, que é uma referência baseada em estatística, não aumentou porque os humanos vivem agora mais tempo do que antes, mas porque é maior a quantidade de humanos que vivem mais. No século I, o naturista e historiador romano Plínio, o Velho (que morreu aos 56 anos), em um dos capítulos de sua obra História natural (77 d.C.), listou pessoas longevas. Dentre elas, o cônsul Valerius Corvinos (100 anos); a esposa do filósofo Marco Túlio Cícero, Terência (103); a atriz Lucceia, que se apresentou no palco com 100 anos, e uma mulher chamada Clodia (115, que teve 15 filhos).
Na Bíblia, a longevidade é encarada como um prêmio à virtude. “Se observardes os preceitos que vos dito”, diz Moisés, no Deuteronômio, “então vossos dias na Terra que o Eterno jurou dar a vossos pais serão tão numerosos quanto serão os dias dos céus sobre a Terra”. Nos Provérbios: “O temor do Eterno aumenta os dias, mas os anos dos maus serão abreviados” e “Os cabelos brancos são uma coroa de honra: é no caminho da Justiça que essa coroa é encontrada”. No Levítico: “Tu te levantarás diante dos cabelos brancos e honrarás a pessoa do velho”. A nossa idade é baseada em um calendário cujo marco zero foi o nascimento de Jesus Cristo, um homem que morreu jovem, aos 33 anos, e representa o cristianismo e diversas religiões ao redor do mundo.
Para além dos desejos de “muitos anos de vida” do Parabéns pra você, o aumento na expectativa de vida que ocorreu no mundo contemporâneo teve a ver com vários fenômenos: o avanço da ciência, da medicina, das políticas de saúde pública e o baby boom que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. O otimismo e a esperança dos dias de paz promoveram uma explosão demográfica. Então se, na década de 1930, a população da Terra era de 2 bilhões, nos anos 1960, passou para 3,5 bilhões. Em 2020, chegamos a 7,8 bilhões e com estimativa, das Nações Unidas, de alcançarmos 10,9 bilhões em 2100.
No entanto, um estudo do Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), da Universidade de Washington, publicado na revista The Lancet, em julho de 2020, previu que o pico de população ocorrerá na década de 2060, com 9,7 bilhões. E a partir daí a humanidade irá se reduzindo lentamente até chegar a 8,8 bilhões em 2100, o que, segundo os especialistas, pode gerar um efeito positivo no meio ambiente. “Nossas conclusões sugerem que as tendências contínuas no nível educativo feminino e o acesso à anticoncepção vão acelerar a redução da fertilidade e do crescimento demográfico”, argumenta o estudo.
Com menos mortes, fruto do desenvolvimento de melhores condições de vida, e menos natalidade, ao longo das últimas décadas, houve e continuará havendo um aumento expressivo no número de idosos no mundo. Segundo o Laboratório de Demografia e Estudo Populacional da Universidade Federal de Juiz de Fora, a quantidade de pessoas acima de 60 anos, que era de 202 milhões em 1950, passou para 1,1 bilhão, em 2020, e deve alcançar 3,1 bilhões em 2100. De 8% do total de habitantes na década de 1950, para 13,5% em 2020, deve atingir 28,2% em 2100. Ou seja, em menos de 100 anos, um terço do planeta será de idosos.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os idosos representam 18,62% da população total do país. No Brasil, as mulheres vivem, em média, 77 anos, e os homens, 74 anos. No entanto, segundo estudo do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard, em parceria com o Departamento de Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgado no dia 10 de abril, a pandemia da Covid-19 regrediu a expectativa dos brasileiros em dois anos.
Segundo a pesquisa do Institute for Health Metrics and Evaluation, que também aponta para o aumento da quantidade de idosos no mundo, isso resultará em uma força de trabalho minguante e envelhecida – independentemente do impacto da automação. Essa transformação no formato da pirâmide demográfica, para os estudiosos, deve mudar a economia mundial e a relação de poder entre os países. A força de trabalho da China passará de 950 milhões para 350 milhões e seu quadro militar deverá perder 65% dos jovens entre 20 e 24 anos, comparado à sua população atual.
Para os pesquisadores, os países terão quatro opções para enfrentar os problemas de natalidade: podem tentar aumentar a taxa de fertilidade, criando um ambiente adequado para que as mulheres tenham filhos e mantenham suas carreiras; podem restringir o acesso das mulheres aos serviços de saúde reprodutiva (o que seria uma solução radical); podem promover novas políticas para facilitar a imigração e/ou podem aumentar a participação de pessoas de idades mais avançadas no mercado de trabalho.
“O envelhecimento é uma questão de desenvolvimento. A expectativa de uma vida mais longa é uma conquista da civilização e representa grande potencial para o desenvolvimento humano geral”, apontou o documento Active ageing: A policy framework (Envelhecimento ativo: Uma política de saúde ou Marco político do envelhecimento ativo). Produzido em 2002 (e atualizado em 2015), pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o documento contribuiu para a realização da segunda Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, que norteou o desenvolvimento de políticas públicas em todos os âmbitos governamentais de vários países.
No entanto, mudanças na forma como os governos ainda tratam os seus idosos esbarram numa questão primordial, a discriminação etária que ainda persiste na sociedade, impedindo que haja cobranças de políticas públicas para atender questões como habitação, saúde, alimentação, bem-estar, cultura, lazer e socialização. Ao invés disso, a parcela mais velha da população mundial, além de enfrentar esses problemas, ainda sofre com o abandono, a solidão, depressão e violência.
Para conter esse último problema, foi instituído, em 2011, o Dia Mundial da Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa (15 de junho), pela Assembleia Geral das Nações Unidas, após solicitação da Rede Internacional de Prevenção ao Abuso de Idosos (Inpea). Há vários tipos de violência contra as pessoas idosas: a mais comum é a negligência, quando os responsáveis não oferecem cuidados básicos, como higiene, saúde, medicamentos, proteção contra frio ou calor; abandono (omissão dos familiares ou responsáveis, governamentais ou institucionais, de prestarem ajuda); a violência física, sexual, psicológica ou emocional (xingamentos, sustos, constrangimento, destruição de propriedade ou impedir que vejam amigos e familiares) e violência financeira ou material (exploração imprópria ou ilegal ou o uso não consentido de seus recursos financeiros e patrimoniais). Denúncias podem ser feitas em unidades municipais de saúde; delegacias; disque 100 (Direitos Humanos) ou 190 (Polícia Militar).
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“‘É com adolescentes que duram um número bastante grande de anos que a vida faz velhos’, observa Proust; eles conservam as qualidades e os defeitos do homem que continuam a ser. Isto, a opinião quer ignorar. Se os velhos manifestam os mesmos desejos, os mesmos sentimentos, as mesmas reivindicações que os jovens, eles escandalizam; neles, o amor, o ciúme parecem odiosos ou ridículos, a sexualidade repugnante, a violência irrisória. Devem dar o exemplo de todas as virtudes. Antes de tudo, exige-se deles a serenidade; afirma-se que possuem essa serenidade, o que autoriza o desinteresse por sua infelicidade. A imagem sublimada deles mesmos que lhes é proposta é a do sábio aureolado de cabelos brancos, rico de experiência e venerável, que domina de muito alto a condição humana; se dela se afastam, caem no outro extremo: a imagem que se opõe à primeira é a do velho louco que caduca e delira e de quem as crianças zombam. De qualquer maneira, por sua virtude ou por sua abjeção, os velhos situam-se fora da humanidade. Pode-se, portanto, sem escrúpulo, recusar-lhes o mínimo julgado necessário para levar uma vida de homem”, analisa Simone de Beauvoir, no livro A velhice (1970).
Tantas dificuldades podem explicar a taxa de suicídio entre os idosos. Segundo o Centro de Valorização à Vida (CVV), no Brasil, cerca de 1.200 pessoas com 60 anos ou mais morrem a cada ano em decorrência de suicídio. Em maio do ano passado, em plena pandemia, o ator Flavio Migliaccio foi um dos brasileiros idosos que tiraram a própria vida. Em um trecho de sua carta, o artista escreveu: “A velhice neste país é o caos como tudo aqui. (…) Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este”.
Durante a pandemia, muitas pessoas, mesmo os jovens, puderam experimentar algumas das principais situações e sensações que envolvem o cotidiano de boa parte dos idosos: o isolamento social, o medo da doença e da morte. A quarentena, inclusive, criou um ambiente propício para antecipar esses sentimentos em pessoas mais velhas que não haviam vivenciado até então. “Essa pandemia me mostrou a face cruel da velhice, ou seja, o isolamento. Antes, eu não parava um minuto. Tenho uma turma boa de amigos. Então, a gente saía muito. Eu tinha uma vida social e política ativa. Quando chegou a pandemia, veio o lado cruel da velhice, de ter medo de adoecer, de levar uma queda, de morrer, de sair de casa e contrair o vírus. As coisas que eu projetava, ‘quando eu tiver 80’, de repente apareceram. A velhice me chegou pesada”, revela Heloísa Morais, professora, revisora e tradutora.
Intervenção na pintura Narciso, de Caravaggio, 1597-99
“Claro que temos o que a velhice anterior à minha não teve, as redes sociais, internet, videoconferência, você se conecta, mas sou de uma geração de convívio social. Estou em casa só”, relata, acrescentando que teve um lado ligeiramente bom. “Aprendi a cozinhar. Estabeleci uma rotina doméstica. Nunca tive esse lado doméstico. Na juventude, como eu era muito estudiosa, tinha apenas que estudar. Sempre leio e vejo muitos filmes. Para não passar o dia todo vendo filme, estabeleço uma rotina diária. Mas tenho saudade de abraçar as pessoas, os netos, do contato físico. Esse lado do isolamento pesa muito pra velhice. Minha imunidade nunca foi muito boa. Por isso, às vezes, dá uma crise de pânico. Eu posso dizer que foi com 73 anos, no ano passado, que eu olhei pra mim e disse: ‘Estou velha’. Antes eu pensava que era uma menina de 25 anos. Eu me sentia quarentona, com todo o gás, viajava muito. Agora estou me sentindo velha. Apesar de que estou tentando me adaptar à velhice.”
“Desde criança que minha mãe me levava para festas e para participar de concursos de dança, fui me acostumando e gostando”, conta Silvia Leonardo, 67 anos, pensionista. “Na adolescência, comecei a frequentar clubes. Quando meu irmão começou a tocar numa banda, passei a sair mais. Depois, no tempo de casada, foi quando me afastei um pouco da diversão. Meu marido não gostava muito. Quando fiquei viúva, dei vazão à vontade de ir pra festas e shows. Essas coisas eu aproveito bastante. O que eu mais sinto falta na pandemia é sair com minhas amigas. Mas a gente se encontra o máximo que pode. O vírus é uma coisa imprevisível, a gente se fala muito por WhatsApp, telefone. Mesmo com as doses de vacina, só vamos sair para o essencial. A gente se encontra rapidamente para ir à farmácia, ao supermercado, padaria, pagar uma conta, receber pagamento. Tenho amigas enfermeiras doidas para sair e pra extravasar, mas não podem.”
Dentre as feridas sociais e culturais que a pandemia evidenciou está o ageism, etaísmo, etarismo, idadismo ou a velhofobia. Como a mídia informava desde o começo que a Covid-19 era “uma doença que mata velho”, os mais jovens sentiram-se à vontade para desrespeitar o isolamento social e aglomerar, sem máscaras, em bares, shows e boates, considerando que estariam livres de um quadro mais grave da doença, apresentando apenas uma “gripezinha”. Não importava se, com seus comportamentos, transmitissem o vírus para pessoas com comorbidades ou idosos – afinal, no imaginário coletivo, estes estão mais próximos da morte. Embora, como afirma o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), “Um minuto de vida é idade suficiente para morrer”.
O resultado de todo o descaso durante o período de quarentena é que o vírus circulou, multiplicou-se e, com isso, deu origem a variantes mais perigosas, que agora acometem os mais jovens. Médicos são unânimes em afirmar que, atualmente, a maior parte dos pacientes graves tem menos de 60 anos – faixa etária que abrange a maior parte da classe trabalhadora, que precisa pegar transporte público, geralmente lotado. O então ministro da saúde Nelson Teich chegou a insinuar, no começo da pandemia, que entre um paciente jovem e um idoso, necessitando de UTI, não haveria dúvidas sobre qual priorizar; enquanto o presidente Jair Bolsonaro defendeu que apenas os idosos fossem isolados. Sobre o “caos” mencionado por Flavio Migliaccio, podemos lembrar a Reforma da Previdência, que perturbou os planos de aposentadoria de milhões de brasileiros – a propósito, segundo o IBGE, muitas famílias e municípios vivem do dinheiro do benefício dos idosos da cidade.
Eis uma das principais questões que envolvem a velhofobia: neoliberalismo e envelhecimento são conceitos que não combinam. Os problemas decorrentes da desigualdade social imposta pelo sistema econômico – exploração de mão de obra, baixos salários, falta de habitação, saúde e educação precárias, individualismo – são particularmente mais cruéis quando recaem sobre os idosos, que evidentemente já foram jovens trabalhadores. Na juventude e maturidade, não receberam das classes dominantes o que lhes era necessário para uma vida digna. Após gastos de tanto trabalhar, encontraram o abandono.
“Inúteis, incômodos, o destino deles assemelhava-se ao que lhes era reservado nas sociedades primitivas. Esse destino dependia essencialmente da família. Por afeição, ou por preocupação com a opinião das pessoas, algumas famílias manifestavam solicitude com relação aos velhos, ou, pelo menos, tratavam-nos corretamente. Mas quase sempre eram negligenciados, abandonados num asilo, expulsos, e, até mesmo, assassinados clandestinamente”, relata Simone de Beauvoir. “A sociedade impõe à imensa maioria dos velhos um nível de vida tão miserável, que a expressão ‘velho e pobre’ constitui quase um pleonasmo; a maior parte dos indigentes é de velhos.”
Da Idade Média até o século XVIII: nos campos e nas cidades, os velhos explorados eram poucos, pois os trabalhadores morriam jovens. “Os que sobreviviam dependiam de uma família geralmente pobre demais para sustentá-los; recorriam à caridade pública, à caridade dos castelos e conventos”, escreve a filósofa. “Em certas épocas, até mesmo esses recursos lhes foram recusados; sua sorte foi particularmente dura no momento em que o capitalismo nasceu na Inglaterra puritana, e no século XIX, durante a Revolução Industrial.”
Para Beauvoir, os esforços da elite para socorrer os velhos mais vulneráveis sempre foram irrisórios. Mas, a partir do século XIX, esses idosos tornaram-se tão numerosos, que a classe dominante não pôde mais ignorá-los. “Para justificar sua selvagem indiferença, foi obrigada a desvalorizá-los. Mais que o conflito das gerações, foi a luta de classes que deu à noção de velhice sua ambivalência.”
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Paralelamente, é a partir de meados do século XIX, que a geriatria desponta, mesmo sem ter ainda esse nome. A criação de asilos de doentes, que abrigavam muitos idosos, facilitou a coleta de dados clínicos sobre eles e contribuiu para desmistificar a antiga ideia de entender a velhice como doença e não uma fase da vida. Numa visita a um desses asilos em sua cidade natal, em 1909, o médico vienense Ignatz Leo Nascher, radicado nos Estados Unidos, quis saber o motivo da boa saúde e longevidade dos idosos, em comparação aos de Nova York. Um dos colegas respondeu que eram tratados como os pediatras cuidam das crianças, com cuidados específicos.
Ele, então, teve a ideia de criar uma especialidade na medicina chamada de geriatria. Em 1909, publicou seu primeiro programa; em 1912, fundou a Sociedade de Geriatria de Nova York e, em 1914, lançou um livro sobre o tema, após encontrar dificuldade para publicar, pois o assunto não interessava às editoras. Além da geriatria, foi desenvolvida a gerontologia, que estuda o processo do envelhecimento na sociedade e envolve outras áreas acadêmicas.
A geriatria estabeleceu uma diferença entre os termos senescência e senilidade. O primeiro abrange todas as alterações que ocorrem no organismo humano no decorrer do tempo e que não configuram doenças, como os cabelos brancos, queda deles, rugas, redução da estatura e perda de massa muscular, entre outros. O segundo é um complemento da senescência no fenômeno do envelhecimento. São alterações decorrentes de doenças crônicas (hipertensão, diabetes, insuficiência renal e cardíaca, doença pulmonar e outras), de interferências ambientais e de medicamentos, que podem comprometer a qualidade de vida.
“Nesse movimento que marca as sociedades modernas, a partir da segunda metade do século XIX, a velhice é tratada como uma etapa da vida caracterizada pela decadência física e ausência de papéis sociais. O avanço da idade como um processo contínuo de perdas e de dependência – que daria uma identidade de condições aos idosos – é responsável por um conjunto de imagens negativas associadas à velhice, mas foi também um elemento fundamental para a legitimação de direitos sociais, como a universalização da aposentadoria”, observa a antropóloga e gerontóloga Guita Grin Debert, no livro A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento (1999).
No fim daquele século, o trabalhador mais velho, que anteriormente havia sido relegado à própria sorte, começa a receber um pouco mais de atenção. Em 1796, o político britânico Thomas Paine inovou ao propor um sistema de proteção social, de aposentadoria e pensões e criou o conceito de renda básica. A partir de uma considerável expansão industrial, o chanceler alemão Otto von Bismarck conteve o avanço da inquietação socialista, criando, entre 1883 e 1889, o sistema de seguros sociais (a previdência social), que foi complementado entre 1890 a 1910, para cobrir os riscos dos acidentes de trabalho e invalidez da idade avançada. Eram exigidas contribuições tanto dos empregadores, quanto dos operários e do Estado. O modelo inspirou a aplicação em outros países e a reformulação a partir do uso de impostos. A concessão tornou-se organizada e a partir de duas condições: anos de trabalho e uma idade determinada. Mas, em muitos países, o benefício ainda deixa a desejar no momento de maior vulnerabilidade da vida.
“Eu me mantenho, mas acho péssimo não ter emprego. Escrevo para o Facebook, mas é uma coisa sem ganhar dinheiro. Felizmente consegui ficar com uma aposentadoria que dá para viver. Mas queria mais dinheiro, queria um jantar caro. A velhice só é boa com riqueza”, afirma o jornalista, crítico de cinema e professor Celso Marconi Lins, 90 anos, que se aposentou em 2003. “Sinto falta de riqueza agora mais do que na juventude. Mas vivo razoavelmente bem com relação ao Brasil. Hoje me sinto péssimo ao ver as pessoas totalmente dominadas pelo pensamento reacionário e individualista. Não pensam mais socialmente. Não existe mais coragem de querer mudar o mundo. Nos anos 1960, foi o drama do golpe de 64. E agora esse governo, que é um horror. O que me dói mais que o governo é a população que o elegeu.”
Se, para muitos, a aposentadoria é um benefício aguardado, para outros significa estar apartado do que considera a sua essência como pessoa. “A pior morte para um indivíduo”, escreveu Ernest Hemingway, “é perder o que forma o centro de sua vida, e que faz dele o que realmente é. Aposentadoria é a palavra mais repugnante da língua. Seja escolha nossa ou imposição do destino, aposentar-se é abandonar nossas ocupações — essas ocupações que fazem de nós o que somos — equivale a descer ao túmulo.” O autor de O velho e o mar matou-se, aos 61 anos, em 1961, por um punhado de razões. Mas o fato ocorreu no contexto em que se sentiu incapaz de continuar a escrever.
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“Quando o trabalho foi escolhido livremente, e constitui uma realização de si mesmo, renunciar a ele equivale, efetivamente, a uma espécie de morte. Quando se caracterizou como uma obrigação, ficar dispensado dele significa uma libertação. Mas, na verdade, quase sempre há ambivalência no trabalho, que é ao mesmo tempo uma escravidão, uma fadiga, mas também uma fonte de interesse, um elemento de equilíbrio, um fator de integração à sociedade. Essa ambiguidade reflete-se na aposentadoria, que pode ser encarada como grandes férias ou como uma marginalização”, avalia Simone de Beauvoir.
“A tragédia da velhice é a radical condenação de todo um sistema de vida mutilador: um sistema que não fornece à imensa maioria das pessoas que fazem parte dele uma razão de viver. O trabalho e a fadiga mascaram essa ausência: ela se descobre no momento da aposentadoria. É muito mais grave do que o tédio. Ao envelhecer, o trabalhador não tem mais lugar no mundo, porque, na verdade, nunca lhe foi concedido um lugar: simplesmente, ele não tivera tempo de perceber isso. Quando se dá conta, cai numa espécie de desespero”, afirma a filósofa.
A conquista de muitos mais anos de existência e de trabalho trouxe consigo diversos questionamentos sobre os costumeiros objetivos individuais e coletivos: “vencer na vida” e “merecido descanso”.
“Muita gente pensou que, ao chegar aos 50 anos, estaria no ápice de sua vida, diretor de uma grande empresa. De repente, você chega aos 50, 60 anos, e dizem que você tem mais 40 anos pela frente”, ironiza o filósofo Jorge Forbes, na palestra Velhice, pra que te quero?, do Café Filosófico. “Roubaram no jogo, porque nossa geração estava preparada para isso, fez uma carreira pra isso. E de repente, o mundo mudou e a gente ganhou um montão de anos que a gente não tinha pedido. A gente não pode mais se queixar ‘Estou velho, estou com 60 anos de idade’.”
Mas, afinal de contas, quando se fica velho? Em vários países, as idades divergem. No Brasil, o Estatuto do Idoso, que virou lei em 1o de outubro de 2003, considera como tal uma pessoa acima dos 60 anos. O filósofo Maud Mannoni, em 1995, problematiza a questão da idade: “Se é a brusca deterioração do estado físico que faz o sujeito realizar a dependência em que se vê projetado (ou arriscado a sê-lo), este infortúnio (a doença) que exclui toda esperança pode ocorrer em qualquer idade. A repercussão será a mesma aos 20 anos e depois dos 80. A ‘condenação à morte’ está lá, presente, desde o nascimento. Acabamos por esquecê-la”.
“A consideração inicial é de que as idades cronológicas, baseadas num sistema de datação, estão ausentes da maioria das sociedades não ocidentais e são, nas sociedades ocidentais, um mecanismo básico de atribuição de status (maioridade legal), de definição de papéis ocupacionais (entrada no mercado de trabalho), de formulação de demandas sociais (direito à aposentadoria)”, afirma Guita Grin Debert. “Em sociedades não ocidentais, a validação cultural de cada estágio não é apenas um reconhecimento de níveis de maturidade, mas uma autorização para a realização de práticas como caçar, casar e participar do conselho dos mais velhos. Nas sociedades ocidentais, os critérios e normas da idade cronológica são impostos não porque elas disponham de um aparato cultural que domina a reflexão sobre os estágios de maturidade, mas por exigência das leis que determinam os deveres e direitos do cidadão.”
“Um fato contundente, mas que é preciso assinalar, é que o prestígio da velhice diminuiu muito, pelo descrédito da noção de experiência. A sociedade tecnocrática de hoje não crê que, com o passar dos anos, o saber se acumula, mas, sim, que acaba perecendo. A idade acarreta uma desqualificação. São os valores associados à juventude que são apreciados”, critica Simone de Beauvoir. Em quase todos os países, o limite de idade para contrato de emprego vai de 40 a 45 anos. Quando há cortes nas empresas, os trabalhadores mais velhos são os alvos de demissões e encontram dificuldade para voltar ao mercado de trabalho nas mesmas funções e com os mesmos salários.
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“Ah, no antigo Brasil era uma humilhação ser jovem. Só me lembro de uma meia dúzia de rapazes. Os rapazes escondiam-se, andavam rente às paredes e, para eles, a velhice era uma utopia fascinante. Por toda a parte, havia uma paisagem de velhos em flor. A palavra do velho parecia soar numa acústica de catedral. Bem me lembro de um de 80 anos, nosso vizinho. Muitas vezes, por cima do muro, eu o espiava. Ainda por cima, hemiplégico. Pois eu achava linda essa hemiplegia. Com meus sete anos, gostaria de tremer como ele e de ter a mão entrevada, os dedos recurvos. E tudo mudou. Agora o importante, o patético, o sublime é ser jovem. Ninguém quer ser velho. Há uma vergonha da velhice. E o ancião procura a convivência das Novas Gerações como se isso fosse um rejuvenescimento. Outro dia, dizia-me uma jovem senhora: ‘Tenho mais medo da velhice do que da morte’. Quer ser defunta e não quer ser velha.”
Nessa crônica de 11 de janeiro de 1968, Nelson Rodrigues critica o alvoroço da imprensa brasileira ao constatar a velhice da atriz norte-americana Joan Crawford, aos 64 anos, em visita ao Brasil. “É claro que todo mundo deseja, com o maior empenho e a maior volúpia, a velhice da mulher bonita. Outro exemplo: o de Gina Lollobrigida. Passou pelo nosso Carnaval, linda, linda. Pois não faltou quem, diante de seu frescor implacável, dissesse: ‘Velha! Velha!’. (…) É o Brasil jovem. Afirma-se que a Juventude invade a História e começa a fazer História. Mas em vão procuramos, em qualquer povo, o líder jovem, uma massa jovem e decisiva. Há a Guarda Vermelha. Mas essa tem exatamente a idade do seu chefe, Mao Tsé-Tung. É a juventude mais senil que já apareceu na Terra.”
O famoso reacionarismo do escritor, que clamava “Jovens, envelheçam!”, não admitiria menções ponderadas a levantes políticos do século XX que foram conduzidos por homens jovens, como a Revolução Russa, a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, a Guerra de Independência Argelina. Alguns desses homens envelheceram no poder: Stálin, Mao Tsé-Tung, Ho Chi Minh, Fidel Castro, que, à beira da morte, ainda ditava ordens no país – enquanto Che Guevara (morto aos 39 anos, em 1967) virou ícone da juventude, estampando camisetas, broches, tatuagens e murais.
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A antropóloga, gerontóloga e escritora Mirian Goldenberg pesquisa o tema há mais de 30 anos. Ela afirma que “entre 40 e 50 anos, as mulheres estão infelizes, insatisfeitas, frustradas, deprimidas e exaustas, reclamando de falta de tempo, reconhecimento e liberdade”. O que mais invejam nos homens é “a liberdade sexual, liberdade com o próprio corpo, de rir com qualquer bobagem, de fazer xixi em pé”. Enquanto os homens não invejam as mulheres em nada. “O que elas mais invejam em outras mulheres é o corpo, a beleza, juventude, magreza e sensualidade. Já para a maioria das mulheres a partir dos 60 anos, este é o melhor momento da vida, porque passaram a priorizar o tempo para cuidar delas mesmas e aprenderam a dizer não e destacam a importância das amigas. Quanto à pergunta ‘quem vai cuidar de você na velhice?’, respondem, ‘eu mesma, ou minhas amigas’”. Os homens respondem: “Minha esposa, minhas filhas, minhas netas”.
“A velhice, em nossa sociedade, mesmo quando não se associa à pobreza ou invalidez, tende a ser vista como um período dramático por implicar a passagem, tida como indesejada, de um mundo amplo e público para um mundo restrito e privado. À ideia de perda de papéis sociais soma-se a ausência de uma vida sexual ativa. O fato de a grande maioria das mulheres, hoje na velhice, não ter tido uma vida profissional ativa e ter sido sexualmente mais reprimida que os homens levava-me a supor que a mulher, com o avanço da idade, falaria de seu sofrimento, de sua solidão e do desdém de que é vítima, atribuindo à velhice o que, na realidade, seria fruto da situação à qual ela é relegada na nossa sociedade. Haveria, portanto, uma confusão entre o que se colocava na conta da velhice e o que, de fato, as mulheres poderiam realizar se fossem mais jovens”, observa Guita Grin Debert.
“Será difícil envelhecer serenamente quando a vida pregressa foi ponteada pelos mais variados traumatismos, frustrações e dissabores”, analisa o psiquiatra Geraldo José Ballone, no artigo Alterações emocionais no envelhecimento (2005). “As vivências traumáticas pregressas são sempre máculas indeléveis da existência e, com o esvaziamento progressivo de energia vital, se tornarão feridas emocionais abertas. Diante de certas circunstâncias de vida, cabe muito mais ao destino que ao terapeuta proporcionar a ‘cura’ ou prevenir doenças. Na velhice as ocorrências vivenciais sofríveis serão as maiores determinantes do estado emocional”, escreve.
No entanto, segundo uma pesquisa realizada em 134 países pelo economista David Blanchflower, da universidade Dartmouth College (EUA), em 2004, existe uma curva da felicidade. De acordo com o resultado, os maiores momentos de sentimento de felicidade estão na fase inicial da vida e depois dos 50. A fase mais crítica é na faixa dos 40 anos. A idade mais infeliz das pessoas nos países desenvolvidos é em torno dos 47,2 anos, enquanto nos países em desenvolvimento é 48,2 anos. O que explica também a crise dos 40 como uma “quebra de expectativas” ou “crise da meia-idade”, descrita pela primeira vez em 1965.
Segundo estudo, os jovens cometeriam o equívoco de superestimar a felicidade ao alcançar seus objetivos de vida. Nessa faixa dos 40, haveria uma decepção com suas expectativas e as pessoas se tornariam mais realistas e, depois dos 50, mais gratas pelo que conseguiram. A percepção de bem-estar muda. À medida que envelhecemos, aprendemos a nos adaptar a nossos pontos fortes e fracos, ao mesmo tempo em que as ambições inviáveis diminuem. As pessoas mais velhas, se tiverem boa saúde, estabilidade financeira e afetiva, podem se sentir tão felizes quanto as mais jovens. E as otimistas vivem mais, o que ajudaria a criar o formato em U da curva da felicidade. O resultado parece atestar o que disse Drummond no poema Os ombros suportam o mundo: “Pouco importa, venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança”.
Inspirado no estudo, Jonathan Rauch, pesquisador do centro de estudos Brookings Institution, em Washington, analisou a questão e publicou, em 2019, o livro The happiness curve: why life gets better after midlife (“A curva da felicidade: por que a vida fica melhor depois da meia-idade”). Para ele, o “reinício da meia-idade” é uma transição normal, como a adolescência, que leva a um estágio de vida mais estável e positivo. “O envelhecimento nos equipa para sermos mais felizes e gentis”, escreve Rauch.
Em 2011, o jornalista russo Vladimir Yakovlev, aos 56 anos, fez as malas e passou cinco anos viajando pela Europa, EUA e China, conhecendo idosos que quebravam a imagem típica de uma pessoa mais velha. O resultado do trabalho virou a série The age of happiness (A idade da felicidade). A maioria começou a praticar atividades físicas na meia-idade, como Pat Moorhead, que comemorou seus 80 anos pulando de paraquedas 80 vezes (!); Greta Pontarelli, que passou a fazer pole dance aos 61 anos; Paul Fegen, Nina Melnikova e Antonina Kulikova (ambas de 79 anos), que se iniciaram no aiquidô aos 70 anos; Lloyd Kahn, que virou skatista aos 65 anos; Johanna Quaas (88 anos), que começou a treinar ginástica olímpica aos 56; Montserrat Mecho, aos 80 anos, que é paraquedista, esquiadora, windsurfer e mergulhadora; John Lowe (94 anos), que deu os primeiros passos no balé quando completou 80 anos.
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Para os gerontólogos, a velhice é uma construção sociocultural. “A juventude, na prática por eles desenvolvida, não é mais uma etapa da vida, um momento de passagem e um contínuo que caracteriza o desenvolvimento biológico universal, como os cientistas sociais sempre enfatizaram. Geriatras e gerontólogos transformaram-se em agentes ativos na proposta de práticas, crenças e atitudes a indicar que a eterna juventude é um bem que pode ser por todos conquistado. (…) A juventude perde conexão com um grupo etário específico, deixa de ser um estágio na vida para se transformar em um valor, um bem a ser conquistado em qualquer idade, através da adoção de estilos de vida e formas de consumo adequadas”, analisa Guita Grin Debert.
A busca pela eterna juventude fez com que o Brasil atingisse a marca de país que mais realiza cirurgias plásticas e procedimentos estéticos no mundo, desbancando os Estados Unidos e diversos países da Europa. Segundo levantamento da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), divulgado em dezembro de 2019, foram registradas, em 2018, mais de 1.498.327 cirurgias estéticas no país, além de mais de 969 mil procedimentos estéticos não cirúrgicos. Em seguida, estão os EUA, Alemanha e Itália. Algumas dessas pessoas podem apresentar a síndrome de Dorian Gray, mencionada em 2000 pelo psiquiatra Brosig B, em referência ao personagem do romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, que vende sua alma em busca da eterna juventude. “Para voltarmos à mocidade, basta-nos repetir as nossas loucuras”, bem apontou o autor inglês.
Nessa tentativa de tirar o peso da velhice, a linguagem também passa por intervenções. “Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que idoso é uma palavra ‘fotoshopada’ – ou talvez um lifting completo na palavra velho. E saio aqui em defesa do velho – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos”, escreveu a jornalista Eliane Brum, na crônica Me chamem de velha, de 2012. “Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, ‘melhor idade’”.
Intervenção na pintura Moça com brinco de pérola, de Johannes Vermeer, 1965
Com o envelhecimento, o tempo passa a ser um capital. “Você não quer mais desperdiçar o tempo, passar, gastar, matar o tempo. Quando você é jovem, você nem pensa no tempo. Ele é um valor, mais cuidado, quando você valoriza tanto. Você não desperdiça. O tempo não passa nem rápido nem devagar. Ele é meu principal capital. Eu só gasto meu tempo nas coisas que são importantes pra mim. Por isso, aprendi a dizer a não. Porque não vou gastar meu tempo com bobagem, fazer coisa que eu não quero fazer só pra alguém ficar feliz”, afirma Mirian Goldenberg, no documentário Envelhescência (2015).
O filme, dirigido por Gabriel Martinez e com argumento de Ruggero Fiandanese, narra a história de seis pessoas que vivem de maneira plena e – muitas delas – transformaram suas vidas na meia-idade, como a mãe que, por causa do filho com deficiência visual, começou a surfar aos 58 anos; a mãe que passou a tatuar o corpo e a frequentar, com o filho, clubes de motocicletas e de rock, e o advogado Edson Cambuggi, que decidiu prestar vestibular para Medicina aos 76 anos, em 2002. As histórias confirmam a frase da romancista George Eliot (Mary Ann Evans): “Nunca é tarde demais para ser o que você poderia ter sido”.
As frustrações que podem surgir com o avanço da idade também podem impulsionar a tentativa de realizar/retomar antigos sonhos ou de iniciar novos. Filha de ex-escravizados, Clementina de Jesus, elo perdido entre a música negra brasileira e a africana através da memória oral, começou a carreira no mercado musical aos 63 anos e gravou o primeiro disco solo aos 65 anos, pois foi descoberta tardiamente. Ou Mateus Aleluia. Redescoberto aos 74 anos, em 2017, o ex-integrante do grupo Os Tincoãs passou a ser convidado para fazer diversos shows. Em 2020, lançou, aos 77 anos, Olorum, um dos melhores discos do ano. Há também o caso dos artistas cubanos idosos que foram apresentados ao mundo no documentário Buena Vista Social Club (1996) e conseguiram realizar shows em vários países.
Diversas pessoas vêm enfrentando o etarismo a seu modo. Joe Biden, 78 anos, derrotou Donald Trump, 74 anos, nas urnas e se tornou o presidente eleito mais velho da história dos Estados Unidos. Jane Fonda, 83 anos, foi detida várias vezes em Washington, em protestos contra a política ambiental do governo Trump. Madonna encara a discriminação etária de rádios norte-americanas que não tocam sua música simplesmente porque ela tem mais de 60 anos. A artista, mesmo sendo considerada a Rainha do Pop, é a menos seguida das cantoras pop no Instagram. Ela vem contribuindo para quebrar a imagem estereotipada de uma mulher idosa, ao ignorar os detratores que a criticam por usar roupas que não seriam “adequadas” para sua idade e namora homens bem mais jovens que ela.
“O envelhecimento traz desvantagens múltiplas, mas não creio que a gente deva botar tudo na conta da velhice: qualquer um pode ter tido os piores momentos de sua vida aos 32 ou aos 43, aos 17 ou aos 59. E há casos de alegria insuspeita a partir dos 65. Uma coisa pelo menos é certa, que a gente aprende: dá mais tempo para tudo, mais do que a gente pensava quando tinha 22 anos”, escreveu Caetano Veloso, em seu perfil no Instagram. O baiano encarna com perfeição os versos que escreveu em Força estranha: “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista/ O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece”.
“Acho que tudo é ter uma concepção mental sobre as coisas. Eu me lembro de que via fotos de gente do tempo passado com 50 anos, pareciam os velhinhos de 80 anos. E hoje há uma mentalidade diferente”, lembra o jornalista, poeta e compositor Marco Polo Guimarães, vocalista da Ave Sangria. “Minha cabeça não envelheceu. Estou com 73 anos e o corpo, claro, cria limites para o meu comportamento físico. Eu não envelheci mentalmente. Hoje em dia, você está mais capacitado para gerenciar o seu corpo, com exercícios, vitaminas, dietas, está mais aparelhado pra manter o corpo acompanhando sua mente.”
Há quatro anos, Marco Polo deixou o cargo de editor da Cepe Editora para se dedicar totalmente à música. “Chegou um ponto em que o que eu tinha que fazer em jornalismo e editoração eu já tinha cumprido uma história, e estava na hora de voltar a me dedicar à música, que é a coisa que eu mais amo. E reiniciei minha vida de músico. Minha vida é assim, como uma montanha-russa; eu já fui artesão de praça hippie, de vender objetos de couro que eu fazia e era feliz, como sou feliz agora”, avalia.
O cantor, que viveu o período de efervescência do rock nos anos 1970, afirma que há diferença entre ser artista naquela época e agora. “A principal é a surpresa. Quando você é jovem, tudo é descoberta. Você está desbravando o mundo, conhecendo, descobrindo as coisas; tudo é novidade, tudo é cheio de riqueza, de frescor, vigor, e agora você tem que reconstruir isso de outra forma, porque já não é mais tão novo. Mas, ao mesmo tempo, pode redescobrir as coisas, ressignificar os valores. Você tem que transformar os seus valores”, reflete. “A maior parte do nosso público é de jovens, pessoas de, no máximo, 30 anos. Sou um cara de 73 anos falando para a juventude. Eu sou muito concentrado no presente. O que me interessa é o agora. Se o artista não se prende à realidade em que ele está vivendo, ele vai ficando para trás.”
A imagem retratada na música When I'm sixty-four faz parte de um antigo preconceito, cada vez mais raro na produção artística contemporânea. Segundo estudo da Anglia Ruskin University e da Universidade de Hull (ambas no Reino Unido), publicado em 2016, diversas músicas que tratam do tema da velhice não fazem bem aos idosos, pois retratam o período com autopiedade e falta de autoestima. Foram analisadas 76 composições em língua inglesa da década de 1930 até os dias atuais que falavam sobre o envelhecimento. Dessas, 72% foram consideradas negativas.
Uma das canções que transmitem uma mensagem positiva foi feita por um multiartista que completa neste mês 80 anos e revolucionou a música popular, Bob Dylan. “Que suas mãos estejam sempre ocupadas/ Que seus pés sejam sempre rápidos/ Que você tenha uma base forte/ Quando os ventos das mudanças voltarem/ Que o seu coração seja sempre feliz/ Que sua canção seja sempre cantada/ Que você fique jovem para sempre”, diz uma das estrofes de Forever young (1974), escrita quando Robert Allen Zimmerman tinha 33 anos. Hoje, suas mãos, além de tocarem e comporem, pintam e trabalham com ferro.
“As pessoas que têm mais de 60 são as mesmas pessoas que fizeram a revolução de comportamento nos anos 1960 e 1970”, afirma, no filme Envelhescência, Mirian Goldenberg. “Elas estão revolucionando a forma de envelhecer. Eu gosto de chamá-las de ageless, sem idade, inclassificáveis, que não aceitam o imperativo ‘seja velho’, que não mudam a forma de ser porque envelheceram, que continuam amando, cantando, dançando, trabalhando, namorando, fazendo coisas que já faziam e continuam fazendo e inventando novas formas de ser”. No mesmo documentário, o gerontólogo Alexandre Kalache afirmou que “é preciso fazer a transformação de não apenas somar anos, mas de somar vida aos anos”.
“Quando adultos, não pensamos na idade: parece-nos que essa noção não se aplica a nós. Ela supõe que nos voltemos para o passado, e que interrompamos as contas, enquanto, impelidos para o futuro, deslizamos insensivelmente de um dia ao outro, de um ano ao outro. A velhice é particularmente difícil de assumir, porque sempre a consideramos uma espécie estranha: será que me tornei, então, uma outra, enquanto permaneço eu mesma?”, conclui Simone de Beauvoir.
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Em 1970, Neil Young comprou a fazenda Broken Arrow Ranch. Enquanto o artista conhecia a nova propriedade, o velho zelador do lugar, Louis Avila, ficou intrigado e perguntou como um jovem como ele tinha dinheiro (na época, 350 mil dólares) para comprar um lugar como aquele. “Tive sorte, Louie, muita sorte mesmo.” A pergunta, que implicava uma comparação do funcionário com sua própria situação financeira, inspirou o compositor canadense a criar uma de suas mais belas composições. A letra compara o jovem ao velho e mostra que, se observar bem, este é igual àquele. “Homem velho, olhe para a minha vida/ Eu sou muito parecido com o que você era/ Vinte e quatro anos e há muito mais/ Vivo sozinho num paraíso/ Que me faz pensar em ser dois/ Amor perdido, a que custo/ Dê-me coisas que não se percam/ Como uma moeda que não será lançada/ Rolando de volta para você/ Homem velho, dê uma olhada na minha vida/ Eu sou muito parecido com você/ Eu preciso de alguém para me amar o dia inteiro”. Em 2018, Neil Young, aos 72 anos, disse durante um show em Chicago: “É difícil cantar Old man agora. É como, ‘Homem velho, dê uma olhada na minha vida, sou muito parecido comigo mesmo’”.
A passagem do tempo em nós sempre será uma sentença, no mínimo, complexa. “Nunca vou acreditar que tenho 70 anos, não me importo com o que você diga”, afirmou Paul McCartney à revista Rolling Stone em 2012. “Há uma pequena célula no meu cérebro que nunca vai acreditar nisso.” No próximo ano, ele vai completar 80 anos. Há uma pequena célula no nosso cérebro que sempre vai enxergar nesse velho de cabelos brancos aquele jovem sorridente balançando a franja nos anos 1960. E, se olharmos bem, talvez essa nossa célula consiga encontrar já naquele garoto esse mesmo velho.
DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.
YELLOW, músico, designer, professor e mestre em Ciências da Linguagem.