Paulo Rafael, um "workaholic" da guitarra
Músico caruaruense completaria 70 anos de idade nesta sexta-feira. Ele foi o principal parceiro de Alceu Valença e muito mais do que isso
TEXTO José Teles
10 de Julho de 2025
Fotos Antonio Melcop/Divulgação
Num dia qualquer, de 1973, Alceu Valença andava pela Rua das Ninfas, na Boa Vista, quando viu caminhando, em direção contrária, um jovem de cabelos longos, óculos “fundo de garrafa” (como então se dizia), de jeans e camiseta, indumentária alternativa da época. Andróide conhece andróide. Quando se cruzaram, cumprimentaram-se com um meneio de cabeça. Algum tempo depois, Alceu dirigia-se para o alto da Sé, em Olinda, quando vislumbrou, junto à Igreja da Misericórdia, o mesmo cabeludo, tocando violão. Dessa vez se falaram. Alceu disse que também era músico e qualquer dia os dois iriam tirar um som. Tiraram. Durante 46 anos.
Da turma de 1955, Paulo Ramiro Rafael Pereira, ou Paulinho Rafael, para os amigos, nasceu na Rua Preta, talvez a artéria mais conhecida de Caruaru, de onde saiu, ou morou, um grande número de artistas: Juarez Santiago, Luiz Jacinto (Coroné Ludugero), Valdir Santos, Joana Angélica, Camarão (o sanfoneiro), Valmir Silva, Azulão, citando apenas uma parte. Mas ele era ainda criança quando a família se mudou para a Rua Primeiro de Maio, próximo à Igreja do Rosário. Mudança que contribuiu para que o garoto fosse atraído para a música.
No outro lado da rua, defronte da casa em que morava, ficava a sede da Banda Comercial, a qual ele tinha livre acesso, porque o mestre da banda era seu padrinho. Paulinho contava que os instrumentos o fascinavam. Como acontece até os tempos atuais, o repertório das bandas primava pelo ecletismo – ia dos dobrados e hinos religiosos a frevos, no período carnavalesco, Não por acaso o frevo foi formatado pelas bandas de música.
Por causa de um primo que possuía uma guitarra, ficou fascinado ao ser apresentado a aquele que seria seu instrumento de trabalho até o final da vida. Foi morar no Recife na pré-adolescência. Com 12 ou 13 anos, em pleno ápice do iê-iê-iê, todo garoto queria aprender violão. Paulo Rafael tirou os primeiros acordes em um Gianinni que pertencia à sua irmã Carmita. No final dos anos 60, com 14 para 15 anos, conheceu um cara, dois anos mais velho, chamado Lailson, que o convidou para participar de um conjunto de iê-iê-iê do Cordeiro, The Jopens, que animava bailinhos, como tantos grupos que havia no Recife.
Lailson encarregou-se do baixo; Paulo Rafael, da guitarra. Apesar de contar com dois músicos que entrariam para a história da música pernambucana e brasileira, The Jopens não foi muito longe. Além dos integrantes serem bastante jovens, não possuíam um bom instrumental, nem a cancha dos conjuntos badalados da cidade, feito Os Bambinos ou Os Moderatos. Até chegaram a dividir palcos com esses grupos em bailinhos. A intenção de Lailson era cantar música autoral, e não covers de Beatles, Roberto Carlos ou Renato e seus Blues Caps.
Em 1971, Lailson participou de um programa de intercâmbio, passando seis meses numa cidade pequena no Arkansas, Estados Unidos. Testemunharia in loco o que até então conhecia apenas de revistas, discos e documentários de festivais, que, no início dos 1970, viraram uma tendência no cinema, depois do estrondoso sucesso de Woodstock, de Michael Wadleigh. Lailson chegou nos EUA na ressaca dos anos 1960 e começo de outras ondas, como o heavy metal, no qual se espelharia para conceber o conceito de um grupo que formaria na volta ao Recife.
Paulo Rafael costumava ir à casa de Lailson para tirar um som e escutar discos. Lailson queria formar um grupo e convidou José Vasconcelos, 17 anos, para a empreitada: “Lailson era meu amigo no Conservatório [Pernambucano de Música. Éramos da mesma classe de teoria. Ia muito na casa dele depois das aulas para ouvir discos e conversar sobre uma possível banda. Um dia ele chamou Paulinho para conversar e a banda saiu”, conta José, que passou a ser conhecido como Zé da Flauta, por conta do instrumento pelo qual optou. Surgiu assim o Phetus.
O nome veio de um show de Lailson no Drugstore Beco do Barato, na Conde da Boa Vista, que ficava em frente à Faculdade de Filosofia do Recife (Fafire). Ele gravara em 1973, um LP independente com Lula Côrtes, Satwa, o título, o primeiro do ciclo da psicodelia, ou udigrúdi, pernambucano setentista. Fernando Pessoa, o dono do bar (que também abrigava uma galeria de arte), convidou Lula e Lailson para lançar o disco no Beco do Barato. Imprevisível, Lula não se interessou. Pessoa sugeriu que Laílson realizasse o show solo. Ele chamou Paulus Raphael, Johsé e Fra Tito, um frade de verdade que, ao constatar que o reino do Phetus não era deste mundo, pediu o boné, ou solidéu, e não foi além dos ensaios, que aconteciam na casa de Lailson.
Como não tinham instrumentos elétricos, usaram violão, flauta e craviola, esta última, invenção do violonista paulista Paulinho Nogueira, muito usada no início dos anos 1970. O show começou à meia-noite, envolto num clima gótico de filme de horror B da produtora inglesa Hammer. Com o bimbalhar de sinos (copiado do álbum de estreia do Black Sabbath), anunciado por um mestre de cerimônia, moças de batas brancas, velas acesas, eis que entram os músicos com trajes supostamente assemelhados aos de camponeses da Idade Média, com capuzes, rostos com base branca. Abriram com mais de 20 minutos de Greensleeves, o que o levou o estilo do grupo ser rotulado de rock medieval. Greensleeves, tema folk inglês do século 16, estava em evidência porque foi gravado, em 1968, pelo então badalado Jeff Beck Group. O Phetus fez poucas apresentações. Uma delas no Olho Nu, barzinho minúsculo, na Avenida Conde da Boa Vista (aberto pelos integrantes do Quinteto Violado).
Woodstock pernambucano
Eis que, em 1973, aconteceu a I Feira Experimental de Música, realizada no teatro ao ar livre de Nova Jerusalém, em Fazenda Nova, de cuja organização Laílson participou. Estima-se que o Woodstock pernambucano contabilizou uma plateia de cerca de duas mil pessoas. Foi ali que se promoveu o encontro dos músicos pernambucanos sintonizados com a contracultura, e viajando nos eflúvios das transformações que vinham dos EUA e Europa. Um quase movimento, que se consolidaria com as lendárias reuniões na casa de Lula Côrtes e Kátia Mesel.
O Phetus teve vida curta. Lailson dedicou-se mais ao desenho, inicialmente numa agência de publicidade, depois como chargista do Diário de Pernambuco, um dos mais premiados do país nos anos 1970 (no Brasil e no exterior). Zé da Flauta entraria no Quinteto Violado, e Paulo Rafael se encarregaria da guitarra base do Tamarineira Village, que se rebatizaria de Ave Sangria, às vésperas de gravar o disco de estreia pela Continental. Ainda no Phetus, Lailson e Paulo Rafael foram parceiros, sem a menor pretensão, num forrock, o primeiro deles. Um baião turbinado, de letra curta, intitulado Alagoas, que Alceu Valença incluiria no show O ovo e a galinha.
O Ave Sangria foi contratado pela Continental. A gravadora estava investindo nos novos grupos do rock nacional, que abandonaram a ingenuidade dos anos 1960 e faziam música para gente grande. Na mesma leva do Ave Sangria, a gravadora lançou a banda gaúcha Almôndegas (de Kleiton e Kledir), a Moto Perpétuo ((de Guilherme Arantes), O Terço (de Vinicius Cantuária) e a mais bem sucedida de todas, Secos & Molhados. A Continental apostava naquela geração de roqueiros, mas com moderação. Sobrou para os pernambucanos, cujo LP foi produzido com orçamento curto, pouco tempo de estúdio. O desenrolar da história da banda recifense é bem conhecido.
Na imprensa do Sudeste, o disco recebeu algumas críticas desfavoráveis. Na capital pernambucana foram incensados. Algumas faixas tocaram no rádio local, também no Rio. Porém a Ave Sangria levou chumbo grosso quando começava a voar. Por conta do samba choro Seu Valdir (que conta a paixão de um jovem por um coroa), o álbum foi recolhido das lojas em todo território nacional. Lançou-se uma segunda edição, sem a faixa proibida. A banda ainda realizou alguns shows, dois deles no final de dezembro de 1974 no Teatro de Santa Isabel. Os integrantes perderam o pique. Dispersaram-se aos poucos.
Alceu Valença entrosara-se com os músicos da cena udigrúdi do Recife, participou inclusive de uma faixa de Paêbirú – O caminho da Montanha do Sol, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, um disco que ganharia status de mítico no início do século XXI. Ele se inscreveu no novo festival promovido, em 1975, pela TV Globo, o Abertura. Para acompanhá-lo, Alceu recrutou músicos do Recife, Zé Ramalho, Lula Côrtes, Zé da Flauta, Robertinho do Recife, que não apareceu. Israel sugeriu que fossem convidados Ivinho e Paulo Rafael, como baixista. Com exceção de Almir de Oliveira e Marco Polo, o restante do Ave Sangria – Israel Semente, Agricinho, e Ivinho – foi tocar com Alceu Valença.
O impacto provocado pela performance de Vou danado pra Catende com Alceu e a banda, batizada de Trem de Catende, levou a gravadora Som Livre a relançar, às pressas, Molhado de suor, de 1974, estreia solo do cantor, com a inclusão da música do festival (tão fora da caixa, que se criou no festival a categoria “Pesquisa” para que pudesse ser premiada). Excluiu-se a faixa Chutando pedras. Vou Danado pra Catende é seminal na carreira de Alceu Valença e de Paulo Rafael. Este voltou para o Recife, como os demais componentes da Trem de Catende. Chegou a formar uma banda com o baixista Dicinho e o baterista Israel Semente, o Batalha Cerrada. Mas logo os músicos da Trem de Catende foram reconvocados por Alceu Valença, dessa vez para o show Vou danado pra Catende, que marcaria o início dos 46 anos de convívio e parceria de Paulo Rafael e Alceu Valença. Com a defecção de Lula Côrtes e Ivinho, que não aceitaram o convite, o baixista passou a ser Dicinho, e Paulo tornou-se o guitarrista do grupo.
Em 1977, veio Espelho cristalino terceiro disco pela Som Livre, com Ivinho voltando à guitarra solo. Mais um álbum que não acontecia, Alceu Valença decidiu pedir rescisão de contrato. Sem se entender com nenhuma gravadora, ele recebeu proposta para se apresentar em Paris. Aceitou. Viajaram ele, a namorada Analise e Paulo Rafael. A passagem pela França foi relativamente tranquila, com momentos de perrengues financeiros, mas que, mesmo assim, ainda teve a gravação do álbum Saudades de Pernambuco, que seria lançado no Brasil anos mais tarde. Em Paris, Paulo reencontraria o amigo Zé da Flauta, que deixou o Quinteto Violado, na Espanha, e veio se engajar na trupe de Alceu.
Em 1979, a TV Tupi promoveu um festival de música popular. De Paris, Alceu fez a inscrição de Coração bobo. Era a deixa para voltar ao Brasil. Coração bobo foi defendida com participação de Jackson do Pandeiro. Foi desclassificada, mas renderia dividendos. Contratado pela Ariola, seu primeiro disco na gravadora tem o título de Coração bobo, a música foi, como se dizia então o carro-chefe do LP, (lançada também em compacto). Desta vez Alceu Valença decolou. Coração bobo vendeu 750 mil cópias. Paulo Rafael e Zé da Flauta, entre fevereiro e setembro de 1980, conforme a agenda permitia, gravaram o LP Caruá, que fecha o ciclo de discos independentes pernambucanos iniciado nos anos 70.
Gravado no estúdio Clave, no Recife, Caruá é um independente de luxo. Contou com a participação de mais de vinte músicos renomados, para citar uma parte deles: o tecladista Sérgio Kyrillos e o baterista Luciano Pimentel (Quinteto Violado), o violonista João Lyra, o baterista Israel Semente, os também bateristas Wilson Meirelles e Chico Batera, o saxofonista Beto Saroldi, e o ainda desconhecido Lenine, intérprete da única faixa com letra do álbum (o rojão Zé Piaba). Além de ser um projeto instrumental, com público consumidor reduzido, Caruá esbarra no maior obstáculo dos independentes, a distribuição. Somente em 1988, Paulo gravaria o primeiro disco solo (leia matéria vinculada).
Ele está em todas
Ao longo de quatro décadas e meia tocando com Alceu Valença, músicos saíram e entraram em seus grupos, apenas Paulo Rafael esteve em todas as formações. Só não participaria de um disco de Alceu, Forró de todos os tempos, gravado no Recife, no estúdio da Somax, do empresário João Florentino, dono da gravadora Polydisc, e da rede de lojas Aky Disco. Paulo Rafael, ao mesmo tempo, estava envolvido com produções, trabalhando com Zélia Duncan e Cássia Eller. Alceu gravou com músicos locais. O guitarrista nesse CD é Luciano Magno (então assinando como Lu Baía). No show de lançamento Forró de todos os tempos, no Canecão, no Rio, Paulo Rafael retomou seu posto.
Nos obituários da imprensa quando da sua morte (em 23 de agosto de 2021), alguns títulos estamparam um epíteto de que Paulo Rafael não gostava, “guitarrista de Alceu Valença”. Mais do que guitarrista, ele foi muito mais o parceiro. Além do que, claro, não tocou apenas com Alceu. À medida que ficou sendo conhecido, tanto como músico quanto como produtor, Paulo Rafael era bastante requisitado por artistas dos mais variados nichos, de estrelas de primeira grandeza a ilustres desconhecidos. Tocou e produziu (com Zé da Flauta) em 1979, um compacto de dois jovens músicos pernambucanos, Suitberto e Tião Cavalcanti, hoje uma raridade, ao mesmo tempo que tocou e assina o arranjo de Vaca profana, gravada pela medalhão Gal Costa.
A lista de participações e produção de Paulo Rafael é quilométrica, incluindo o projeto Asas da América, renovação do frevo idealizado por Carlos Fernando e Geraldo Azevedo, o Grande encontro, com Elba Ramalho, Alceu Valença, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo, Teca Calazans, e até um projeto infantil de Chico Anísio. Paulo Rafael assina a música incidental do longa-metragem Pátriamada (1984), de Tizuka Yamazaki. Também a produção da trilha sonora do filme O baile perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, para a qual criou temas incidentais, além de produzir a última gravação de Chico Science, feita para o filme, a música Anjicos, registrada no seu estúdio no Rio.
Com o Márcio Lo Miranda (que foi da banda de Alceu Valença) participou de dois grupos, pouco lembrados. Um deles, o Eletro Fluminas, integrado também pela cantora Taryn Szpilman. O trio lançou um CD em 2001. Em 1992, surgiu o Rútila Máquina, formado por Paulo, Márcio, com os vocais de Tonia Schubert. O grupo não decolou, mesmo com música na trilha da novela global Olho no olho (1993). Um workaholic, em meio à agitada agenda de Alceu Valença, ele encontrava tempo para participar de projetos, como tocar, com um coral de crianças, no Caixa de Natal (no espaço Caixa Cultural, no Marco Zero).
Sua filha Rafaela Rafael, curadora do acervo do pai, ressalta que nos últimos anos Paulo Rafael fechou um ciclo. Passou por várias gerações musicais, com uma involuntária volta ao início de sua trajetória, os anos 1970. Em 2014, o Ave Sangria ressurgiu das cinzas, quatro décadas depois de ter acabado. Dois anos depois, aconteceu o remake do antológico show Vou danado pra Catende, registrado no álbum Vivo, que novamente rendeu disco, o Vivo! Revivo, produzido por Paulo Rafael. Em 2017, o baterista Charles Gavin o convidou para participar do projeto Primavera nos Dentes, com Duda Brack (vocais), Pedro Coelho (baixo) e Felipe Ventura (violino e guitarra). Mais um retorno aos anos 1970. O grupo fez releituras de onze canções do Secos & Molhados, contemporâneo e colega de gravadora do Ave Sangria.
Por fim, mas não menos importante (aqui cabe o clichê), em 2021, Alceu Valença e Paulo Rafael gravaram juntos, apenas os dois, formato de shows que apresentaram, nos tempos de vacas magras, no Brasil e na França. O disco, batizado com seus nomes, foi lançado em 2022, pela DeckDisk.
JOSÉ TELES, jornalista, crítico de música e autor de livros, como Soparia: de boteco a palco de todos os sons