Mirante

Tem um minuto para ouvir a palavra de David Bowie?

TEXTO Débora Nascimento

21 de Setembro de 2022

'Moonage daydream' reúne imagens inéditas do acervo pessoal do cantor britânico

'Moonage daydream' reúne imagens inéditas do acervo pessoal do cantor britânico

iMAGEM Divulgação

Em 2007, o documentarista norte-americano Brett Morgen participou de uma reunião de negócios com um grande ídolo: David Bowie. Sua intenção era apresentar ao cantor o projeto de um documentário sobre os bastidores de uma eventual próxima turnê. O artista aproveitou a ocasião para fazer uma crítica ao recém-lançado curta-metragem de Morgen, Chicago 10. O cineasta ficou meio sem jeito com toda aquela sinceridade e foi salvo por alguém presente à ocasião, que lhe perguntou qual era o seu disco preferido do britânico. “Bem, para ser totalmente sincero, David, não posso dizer que apreciei qualquer coisa que você tenha feito desde 1983.” Com seu humor imbatível, Bowie respondeu “Touché!”, para espanto do fã, que só tinha ouvido a expressão em desenhos animados e programas de TV, mas nunca na vida real. No saldo do encontro, Bowie disse não estar interessado no projeto. Após ter quase morrido de um enfarte em 2004, em meio à Reality Tour, ele passou a evitar uma nova turnê, tanto que, com sua morte em 10 de janeiro de 2016, aquela se tornou a sua última.

Quinze anos após aquela reunião e de Morgen já ter realizado outros documentários, como Crossfire hurricane (de 2012, sobre os Rolling Stones) e Cobain: Montage of heck (de 2015, sobre o vocalista do Nirvana), ele conseguiu outro “touché”. Finalmente realizou um projeto sobre David Bowie: Moonage daydream, que neste mês entrou em cartaz nos cinemas do mundo. Embora seja classificado como documentário, o trabalho não é um daqueles clássicos do gênero, que narram cronologicamente a vida de um artista, intercalando com depoimentos de várias pessoas. Em um desses sobre Bowie, esperaríamos falas de pessoas como Tony Visconti (produtor de vários discos seus), Nile Rodgers (que coproduziu Let's dance), Madonna (que era fã e se inspirava nele), Iggy Pop (cuja carreira foi ressuscitada por ele) e tantos outros que tiveram sua vida tocada, de alguma forma, por David Bowie.

Ao contrário disso, Morgen utilizou a voz do próprio artista para que realizássemos uma viagem ao centro da alma de David Bowie. Para isso, escolheu depoimentos poéticos, tais como: “Sempre vá um pouco mais fundo na água do que você sente que é capaz de estar. Vá um pouco além de sua profundidade. E quando você não sente que seus pés estão tocando o fundo, você está no lugar certo para fazer algo emocionante”. São falas inspiradoras e que têm o poder de promover uma identificação imediata, porque envolvem questões profundas que nos unem como seres de uma mesma espécie: “Todas as pessoas, não importa quem sejam, gostariam de ter apreciado mais a vida. É o que você faz na vida que é importante, não quanto tempo você tem ou o que você gostaria de ter feito.”

Quem assiste tem vontade de anotar cada uma das falas de Bowie, pois são preciosas. Por outro lado, ao optar por fazer essa seleção mais focada num tom confessional e existencial, mesmo que haja uma pitada de humor aqui e acolá, Morgen apresenta ao espectador um Bowie mais filosófico, quase melancólico, quando, na realidade, o artista era extremamente engraçado, cheio de tiradas e causos, e não perdia uma oportunidade de rir e de fazer sorrir.

Destaca-se, no filme, a entrevista sobre ser bissexual e vestir-se de forma andrógina, o que provocava curiosidade e confusão na cabeça dos entrevistadores, isso numa época a anos-luz de Pabllo Vittar e menções na TV sobre pessoas não-binárias. Em uma entrevista de 1973, o apresentador de televisão Russell Harty pergunta, apontando para a plataforma colorida e brilhante do artista: “E os sapatos? São sapatos femininos ou sapatos masculinos ou sapatos bissexuais?”. O cantor responde, sorrindo: “São sapatos, tolinho!” E tapa o rosto maquiado com as duas mãos.

O tom filosófico do filme surgiu de uma inesperada situação envolvendo o diretor. Após a morte de Bowie, Brett Morgen teve acesso a 5 milhões de itens, entre fotos, objetos, desenhos, telas, vídeos e filmagens. E muitas delas inéditas. Ou seja, ouro puro. Para vasculhar todo esse material, planejou que seriam suficientes quatro meses de trabalho, mas essa etapa levou dois anos. Ele acabou ficando sem dinheiro para pagar o editor de imagens e passou, ele mesmo, a editar o filme. Trabalhava dia e noite, até que o corpo cobrou seu preço e ele teve um ataque cardíaco em 5 janeiro de 2017. Após se recuperar dos dez dias em coma, passou a ver mais sentido em usar as frases mais profundas de Bowie. Para o cineasta, o músico voltou à sua vida para o ensinar a viver.

Para conseguir contar uma história a partir de um recorte autoral, o realizador optou por não seguir à risca a linha cronológica. Embora, haja um traço temporal geral que vai basicamente de Ziggy Stardust até Blackstar (os anos 2000 são praticamente esquecidos), o filme dá voltas no tempo, inserindo depoimentos fora da sua ordem de ocorrência. Mas, mesmo que o diretor não quisesse fazer um documentário tradicional e sim uma “experiência imersiva”, são inseridas informações importantes para se entender o comportamento de Bowie, como os desajustes familiares, a distância afetiva da mãe, a morte do pai, a esquizofrenia que levou o irmão mais velho a ficar trancafiado num sanatório – Terry Jones tinha sido fundamental para despertar no adolescente David Jones o olhar artístico, principalmente ao presenteá-lo com On the road (1957).

É provável que a falta de raízes afetivas fortes e o livro de Jack Kerouac tenham o inspirado a não se prender a um lugar. Consequência disso é que Bowie demorou décadas até comprar uma casa própria. Vivia fugindo de um endereço fixo. O filme traz algumas imagens de suas muitas viagens. E aqui entra outro grande atrativo das 2 horas e 14 minutos de Moonage Daydream. A seleção audiovisual apresentada é um deleite. Há material inédito e outros que podem ser encontrados no YouTube, mas com qualidade inferior.

O show realizado na arena de Earls Court (Londres) em 1978 é considerado o Santo Graal desse acervo. Antes arquivado pelo próprio Bowie, esse material filmado com cinco câmeras de 35 mm e áudio de 24 canais é um dos melhores registros de apresentações do artista em filme. Nunca lançado oficialmente, documenta a performance do repertório dos álbuns da era berlinense ("Heroes" e Low) – após ver a performance em Moonage Daydream, dá vontade de assistir ao show completo. O tratamento dado ao registro imagético é primoroso e embasbacante, cumprindo a intenção inicial de Morgen, de que o espectador aproveitasse toda a capacidade de uma tela Imax, em som e visão – a propósito, o trecho de Sound and vision é um dos melhores momentos.

Como o filme não traz imagens recentes que podem ser encontradas em DVDs ou no YouTube (como as da última turnê, Reality tour, um show excepcional), talvez deixe a impressão, a alguns espectadores, que Bowie parou com a carreira depois de ter conhecido Iman. A modelo somali-americana surge, na vida e no filme, como a única mulher que tirou o artista do isolamento e da solidão, quando, na realidade, outros relacionamentos não foram mencionados, inclusive Angela (Angie), que passou dez anos casada com o artista, foi colaboradora na sua carreira e com quem ele teve o primeiro filho, o cineasta Duncan Jones – que deu total liberdade a Brett Morgen, quando este o consultou.

Os trechos dos shows são muito empolgantes (o que faz falta no fantástico documentário Five Years, de 2013). É a chance de o espectador desfrutar, em altíssima qualidade (e em altíssimo volume!!!), a poderosa voz de David Bowie em ação, com um alcance vocal magnífico que podia atingir os timbres baixo, barítono e tenor. Uma pena que são tão curtos esses trechos e que também muitas das músicas estejam mixadas com efeitos sonoros – talvez o artista não tivesse aprovado as interferências sobre as gravações de suas performances. Para realizar essa parte da obra, o diretor convidou Paul Massey (e sua equipe), vencedor do Oscar por Bohemian Rapsody (2018). Além dos efeitos sonoros, o engenheiro de som também restaurou gravações quase imprestáveis, limpando as sujeiras, consertando as falhas, empregando delays e reverbs.

Outro senão do filme refere-se à edição: são vários os cortes rápidos repletos de imagens aleatórias. Muitas delas, extraídas de filmes como Metrópolis, Nosferatu, Um cão andaluz, Matrix e dos Arquivos Prelinger (banco de filmes norte-americanos em domínio público e bastante popular entre cineastas amadores e VJs), acabaram se tornando clichês do audiovisual mundial. O recurso é repetitivo e datado, não acrescenta muito ao conteúdo do filme e ainda distrai o espectador do que está sendo dito por David Bowie, porque são frases relevantes. Um filme recente e mais bem-sucedido nesse aspecto foi o que Todd Haynes realizou sobre o Velvet Underground, usando filmes experimentais dos anos 1960.

Com essa edição frenética de imagens, Brett Morgen quis fazer uma metáfora sobre a mente inquieta do artista, que afirmou não gostar de desperdiçar nenhum dia de sua vida, estava sempre engajado em alguma atividade. Enquanto o cantor diz isso em off no filme, é exibido um vídeo no qual ele está pintando – há imagens de várias telas suas, e muitas delas têm valor apenas pelo nome de quem as pintou. Mas é importante que o filme mostre esses quadros, pois são fruto de uma produção artística que nem sempre pode ganhar as galerias de artes (ele nunca quis expor) ou resenhas críticas, mas demonstram o papel da arte como expressão até de terapia. O filme mostra que trabalhar também era uma forma de Bowie lidar com suas questões pessoais, assim como uma maneira de reinventar a realidade. Afinal, ele criou personagens, muitas vidas dentro uma. Foi influenciado por diversos artistas e influenciou tantos outros. Criou a partir de vários gêneros musicais.

David Bowie nasceu em um mesmo 8 de janeiro (de 1947) em que Elvis Presley nasceu, 12 anos depois do Rei do Rock. E talvez seja apenas uma coincidência do destino que esses seres que ajudaram a transformar a música do século XX e o comportamento da sociedade contemporânea a partir do rock, protagonizem os filmes musicais arrebatadores da temporada: um é ficção, outro um documentário. Ambos, que foram exibidos no Festival de Cannes 2022, demonstram as suas grandiosidades. A nós, pobres mortais, pareceram seres extraordinários contribuindo para a humanidade dar um passo além.

Quando David Bowie faleceu de câncer em 2016, muitas histórias sobre ele vieram à tona. O mundo não havia perdido apenas um grande cantor, compositor, produtor e artista revolucionário, mas um espírito de enorme empatia. Yoko Ono contou que foi como perder alguém da família. A artista relatou que ele era quase como uma figura paterna para seu filho Sean, após o assassinato de John Lennon. Sempre que podia, pegava o garoto que estava em um internato na Suíça e o levava para visitar museus e conhecer estúdios de gravação. Um documentário dentro do padrão tradicional traria mais depoimentos preciosos como esse, para conhecermos mais o David Bowie por trás da fama. Moonage Daydream captura e compõe alguns fragmentos desse homem das estrelas de muitas fases e faces, que tivemos a sorte de ver (e ouvir) passar pela Terra.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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