O show realizado na arena de Earls Court (Londres) em 1978 é considerado o Santo Graal desse acervo. Antes arquivado pelo próprio Bowie, esse material filmado com cinco câmeras de 35 mm e áudio de 24 canais é um dos melhores registros de apresentações do artista em filme. Nunca lançado oficialmente, documenta a performance do repertório dos álbuns da era berlinense ("Heroes" e Low) – após ver a performance em Moonage Daydream, dá vontade de assistir ao show completo. O tratamento dado ao registro imagético é primoroso e embasbacante, cumprindo a intenção inicial de Morgen, de que o espectador aproveitasse toda a capacidade de uma tela Imax, em som e visão – a propósito, o trecho de Sound and vision é um dos melhores momentos.
Como o filme não traz imagens recentes que podem ser encontradas em DVDs ou no YouTube (como as da última turnê, Reality tour, um show excepcional), talvez deixe a impressão, a alguns espectadores, que Bowie parou com a carreira depois de ter conhecido Iman. A modelo somali-americana surge, na vida e no filme, como a única mulher que tirou o artista do isolamento e da solidão, quando, na realidade, outros relacionamentos não foram mencionados, inclusive Angela (Angie), que passou dez anos casada com o artista, foi colaboradora na sua carreira e com quem ele teve o primeiro filho, o cineasta Duncan Jones – que deu total liberdade a Brett Morgen, quando este o consultou.
Os trechos dos shows são muito empolgantes (o que faz falta no fantástico documentário Five Years, de 2013). É a chance de o espectador desfrutar, em altíssima qualidade (e em altíssimo volume!!!), a poderosa voz de David Bowie em ação, com um alcance vocal magnífico que podia atingir os timbres baixo, barítono e tenor. Uma pena que são tão curtos esses trechos e que também muitas das músicas estejam mixadas com efeitos sonoros – talvez o artista não tivesse aprovado as interferências sobre as gravações de suas performances. Para realizar essa parte da obra, o diretor convidou Paul Massey (e sua equipe), vencedor do Oscar por Bohemian Rapsody (2018). Além dos efeitos sonoros, o engenheiro de som também restaurou gravações quase imprestáveis, limpando as sujeiras, consertando as falhas, empregando delays e reverbs.
Outro senão do filme refere-se à edição: são vários os cortes rápidos repletos de imagens aleatórias. Muitas delas, extraídas de filmes como Metrópolis, Nosferatu, Um cão andaluz, Matrix e dos Arquivos Prelinger (banco de filmes norte-americanos em domínio público e bastante popular entre cineastas amadores e VJs), acabaram se tornando clichês do audiovisual mundial. O recurso é repetitivo e datado, não acrescenta muito ao conteúdo do filme e ainda distrai o espectador do que está sendo dito por David Bowie, porque são frases relevantes. Um filme recente e mais bem-sucedido nesse aspecto foi o que Todd Haynes realizou sobre o Velvet Underground, usando filmes experimentais dos anos 1960.
Com essa edição frenética de imagens, Brett Morgen quis fazer uma metáfora sobre a mente inquieta do artista, que afirmou não gostar de desperdiçar nenhum dia de sua vida, estava sempre engajado em alguma atividade. Enquanto o cantor diz isso em off no filme, é exibido um vídeo no qual ele está pintando – há imagens de várias telas suas, e muitas delas têm valor apenas pelo nome de quem as pintou. Mas é importante que o filme mostre esses quadros, pois são fruto de uma produção artística que nem sempre pode ganhar as galerias de artes (ele nunca quis expor) ou resenhas críticas, mas demonstram o papel da arte como expressão até de terapia. O filme mostra que trabalhar também era uma forma de Bowie lidar com suas questões pessoais, assim como uma maneira de reinventar a realidade. Afinal, ele criou personagens, muitas vidas dentro uma. Foi influenciado por diversos artistas e influenciou tantos outros. Criou a partir de vários gêneros musicais.
David Bowie nasceu em um mesmo 8 de janeiro (de 1947) em que Elvis Presley nasceu, 12 anos depois do Rei do Rock. E talvez seja apenas uma coincidência do destino que esses seres que ajudaram a transformar a música do século XX e o comportamento da sociedade contemporânea a partir do rock, protagonizem os filmes musicais arrebatadores da temporada: um é ficção, outro um documentário. Ambos, que foram exibidos no Festival de Cannes 2022, demonstram as suas grandiosidades. A nós, pobres mortais, pareceram seres extraordinários contribuindo para a humanidade dar um passo além.
Quando David Bowie faleceu de câncer em 2016, muitas histórias sobre ele vieram à tona. O mundo não havia perdido apenas um grande cantor, compositor, produtor e artista revolucionário, mas um espírito de enorme empatia. Yoko Ono contou que foi como perder alguém da família. A artista relatou que ele era quase como uma figura paterna para seu filho Sean, após o assassinato de John Lennon. Sempre que podia, pegava o garoto que estava em um internato na Suíça e o levava para visitar museus e conhecer estúdios de gravação. Um documentário dentro do padrão tradicional traria mais depoimentos preciosos como esse, para conhecermos mais o David Bowie por trás da fama. Moonage Daydream captura e compõe alguns fragmentos desse homem das estrelas de muitas fases e faces, que tivemos a sorte de ver (e ouvir) passar pela Terra.
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