Mirante

Elvis, o super-herói de Baz

TEXTO Débora Nascimento

19 de Julho de 2022

Na primeira cena de uma apresentação musical de Elvis, a do Louisiana Hayride, temos uma grande demonstração do trabalho de edição e montagem

Na primeira cena de uma apresentação musical de Elvis, a do Louisiana Hayride, temos uma grande demonstração do trabalho de edição e montagem

Foto Divulgação

Quando foi anunciada a cinebiografia de Elvis, o primeiro pensamento que me veio à mente foi: por quê? Tantos filmes e documentários sobre o artista já foram lançados ao longo desses últimos 45 anos após sua morte. Os fãs já sabem sua história decorada. O restante do público talvez não se interesse. Mas eu não havia atentado para o fato de que seria a sua primeira biopic para o cinema. As outras produções foram todas destinadas para a TV. Em seguida, na mesma notícia, veio a informação de quem seria o diretor: Baz Luhrmann (como ninguém havia pensado nisso antes?!). Se teria mesmo de haver uma cinebiografia do cantor, o australiano responsável por alguns dos filmes mais extravagantes da história do cinema, como Moulin Rouge, Romeu+Julieta e O Grande Gatsby, seria, então, o nome perfeito para essa empreitada de contar a vida do ícone apoteótico da música popular mundial.

Após dois anos e meio sem pisar num cinema, por conta da pandemia, escolhi Elvis para o meu retorno e o meu desapego a R$ 47 (que valores de ingressos são esses?!). Desconfiei que esse seria um daqueles filmes que merecem ser assistidos numa sala de projeção com um som em perfeito estado e numa tela gigantesca. Elvis é um deleite visual. A fotografia é o primeiro aspecto da obra a cativar o espectador – mesmo que racionalmente ele não se dê conta disso. A câmera está em movimento em boa parte das 2h39, com planos diversos que chegam a ser vertiginosos.

Para obter as tonalidades específicas para épocas distintas, quanto os anos 1940 (infância e adolescência em Tupelo, Mississipi e Memphis), 1950 (início da carreira artística), 1960 (o programa de TV The 68' Comeback Special) e 1970 (Las Vegas, declínio e morte), a diretora de fotografia australiana Mandy Walker, que já trabalhou com Baz Luhrmann em Austrália (2008), encomendou à Panavision a criação de lentes especiais, The Panavision T-Series “Elvis” Lens.

O resultado disso salta aos olhos em cenas como a que Elvis vai à Beale Street, no centro de Memphis, onde a badalação imperava nas calçadas, bares e casas de shows, com muitas apresentações de artistas negros. E neste momento entra um dos aspectos marcantes do roteiro: Baz Luhrmann usa a primeira parte de sua narrativa para mostrar a influência determinante da música e da cultura negra na formação artística do cantor e para torná-lo o Elvis que conhecemos.

Elvis não precisava gastar muito dinheiro e sola de sapato para ter contato com essa fonte de inspiração. Afinal de contas, esse ambiente cultural era geograficamente próximo de sua casa, mas a anos-luz de distância dos valores das outras famílias brancas. Quando seu pai (Vernon) foi preso por emitir um cheque falsificado para comprar comida, sua mãe (Gladys) precisou se mudar para um lugar onde a moradia fosse mais barata. Isso significava, no racista e segregacionista sul dos Estados Unidos, morar num bairro onde residiam apenas pessoas negras. O filme mostra Elvis, junto a garotos negros, observando, através da brecha de um casebre, músicos em ação. Na cena aparece Arthur “Big Boy” Crudup (Gary Clarke Jr) tocando That´s alright (mama) – gravada pelo bluesman em 1946, se tornaria o single debut e primeiro hit de Elvis, em 1954.

Em seguida, ainda adolescente, Elvis aparece participando de um culto em uma igreja pentecostal, onde a música era fundamental na celebração religiosa. Há um momento em que, numa roda de canto, o menino entra em transe. As imagens dos movimentos trêmulos de seus ombros e braços são alternadas com os gestos semelhantes que faria, alguns anos depois, nos palcos. Já no início da carreira, ele surge indo à Beale Street assistir a performances de Sister Rosetta Tharpe, James Brown e o amigo BB King – que lhe dá um importante conselho sobre o medo de ser preso por conta das ameaças que vinha recebendo por seu requebrado sexualizado. “Eles poderiam me prender por atravessar a rua, mas você é um menino branco famoso”, disse o bluesman.

Em contato frequente com essa cultura, Elvis queria, de alguma forma, fazer parte dela. Por isto, se vestia com camisas e calças coloridas, estampadas, brilhosas, compradas nas lojas de comerciantes negros. Era considerado o garoto estranho na escola só para brancos. Diziam que ele se vestia “como um negro”. Quando trabalhava como caminhoneiro, sempre reservava uma parte do salário para investir em roupas. Talvez já fosse o espírito de artista ou simplesmente de um homem extremamente vaidoso – Priscilla Presley diria, em entrevista, que ele gastava mais tempo para se arrumar do que ela (e o guarda-roupa dele obviamente era maior). Desde a juventude, pintava incansavelmente o cabelo com tinta preta e vivia bronzeado (nos filmes e shows, o tom de pele ganhava o reforço da maquiagem para parecer moreno), o que levou muitas pessoas, na época e até hoje, a não desconfiarem que Elvis era, na verdade, loiro.

Esses detalhes da criação do personagem Elvis (da vida real) não aparecem no filme, assim como o início de sua carreira. Nesta fase, o produtor Sam Phillips, da Sun Records, foi figura fundamental para formar as bases sólidas da sonoridade do artista, registrada em seus primeiros discos. Na gravadora independente de Memphis, o cantor conheceu os músicos que o acompanhariam na sua primeira fase (o guitarrista Scotty Moore, o baixista Bill Black e o baterista DJ Fontana) e aprendeu a produzir suas gravações – conhecimento que adquiriu com Phillips e levou para a RCA Records, que não tinha produtores aptos a trabalhar com rock.

A história do filme basicamente começa a partir do momento em que o Coronel Tom Parker vê o artista pela primeira vez no palco do programa de rádio Louisiana Hayride, na primeira das quatro grandes cenas musicais do longa-metragem. A condução do olhar de Baz Luhrmann deixa claro que esse é o momento em que nasce o mito. Na cena, como em algumas outras, o diretor toma a decisão acertada de mostrar, com uma montagem bem elaborada, as sensações dos personagens envolvidos: a plateia, os músicos e o jovem artista, que está prestes a se transformar no Elvis Presley que conhecemos e, com seu até então inédito requebrado sexy e ousado, provocar o primeiro grande grito libertador de uma plateia, algo que dividiria a juventude entre um antes e depois.

Elvis exalava sexo, rebeldia, quebra de padrões conservadores. Não custa lembrar que, até então, os jovens eram tratados na sociedade como adultos em miniatura. Ninguém encarava-os como pessoas que teriam opiniões, anseios, desejos, estilos, vontades e gostos próprios e que estes deveriam ser levados em consideração. O advento de Elvis deu aos jovens a sensação de encontrar e de pertencer a um lugar simbólico, em meio à inadequação diante do mundo hostil dos adultos, cheio de cobranças de comportamentos exemplares, atitudes impecáveis e respostas submissas.

Na primeira cena de representação de uma apresentação musical de Elvis, a do Louisiana Hayride, temos uma grande demonstração do trabalho de edição e montagem ao longo de todo o filme, que às vezes pode parecer um longo trailer. A cena, do começo ao fim, é perfeita tecnicamente e acerta em despertar a emoção do espectador. Ela foi realizada numa escala crescente que vai da preparação do músico no camarim até o ponto culminante da euforia da plateia. O que o diretor nos dá é a possibilidade de experimentar a sensação de ver o artista pela primeira vez, assim como aquela plateia.

Nesse momento, o filme demonstra o seu propósito, apresentar a transformação de um homem comum em um super-herói. E na cena do camarim, ao vestir sua roupa, é como se houvesse o ponto exato dessa conversão do ser humano em uma criatura fenomenal, assim como nas HQs. Ali, Elvis, fã do Capitão Marvel (hoje Shazam), descobre os seus superpoderes. Dentre eles, a capacidade de conquistar, como ninguém antes, uma plateia.

E o Coronel Tom Parker, que espia esse momento de longe, vai além do empresário oportunista que conhecemos. Seu personagem é o vilão da narrativa, o antagonista do herói. A atuação de Tom Hanks quase transformou Tom Parker no Pinguim. Para enriquecer e dominar o mundo do entretenimento, o bandido vai se aproveitar do mocinho e usar o superpoder do “garoto” até esgotá-lo em vários aspectos. Ao final, o público descobre o real motivo. A trilha sonora instrumental reforça esse caráter de filme de super-herói: ela conduz o espectador a sentir que algumas das situações levarão o mocinho para o perigo.



Foto: Divulgação

Nesse ponto, o filme cai na sua provável principal falha, o tratamento à memória de Elvis. Baz Luhrmann, co-roteirista, colocou a condução do enredo na voz de Tom Parker. Se a escolha arriscada funciona para a direção, por dar liberdade narrativa (não ficar refém de datas, fatos, eventos, situações e detalhes, como uma biopic tradicional), ela pode deixar vácuos consideráveis na história real e ser moralmente questionável.

O cantor certamente não aprovaria que sua vida, levada pela primeira vez ao cinema, com um orçamento de U$ 85 milhões, fosse narrada sob o ponto de vista do seu antigo empresário. Em alguns momentos do enredo, o Coronel diz que criou Elvis. Um espectador que não conheça a história do artista talvez acredite nessa fala. Parker foi importante para acelerar a abertura de portas ao artista e era genial em criar soluções de marketing. Mas um talento imenso e um carisma do porte de Elvis, mais cedo ou mais tarde, estouraria para o mundo.

Se o Coronel contribuiu para a divulgação do início da carreira, por outro, atrapalhou o crescimento artístico, musical. Impediu sua expansão no circuito e que Elvis estabelecesse novos contatos e parcerias com compositores e artistas da época. O cantor, que promoveu uma revolução, perdeu o trem de sua própria história na música. Quando estava numa onda crescente na carreira musical sofreu retaliações de racistas, que não aceitavam que ele misturasse a música de brancos (country) com a de negros (gospel, blues). Sua ida para Hollywood em 1956 e para o Exército em 1958 e a morte de Buddy Holly em 1959 foram um banho de água fria no rock, considerado morto nos Estados Unidos (mesmo com Chuck Berry na ativa, por exemplo), até a chegada da Invasão Britânica em 1964.

A carreira no cinema – que, de alguma forma, atrapalhou a musical – era algo que Elvis já tinha em seus planos. Ele era muito fã de Marlon Brando por causa de O selvagem (1953), filme que lançou as bases da rebeldia juvenil e a imagem clássica do roqueiro. A calça jeans, botas e jaqueta de couro preta até hoje são associadas ao rock´n´roll. Só faltava, no filme, a trilha sonora para completar essa imagem icônica.

No entanto, ele viu ruir o sonho holywoodiano porque, pelo contrato intermediado pelo Coronel, não podia escolher os roteiros - então, não demorou muito para perceber que os filmes em que atuava eram medíocres. O empresário também impediu que ele interpretasse Tony, protagonista do clássico West Side Story (1961), ao exigir um cachê astronômico. Em outra ocasião, o artista quis cantar I will always love you, escrita por Dolly Parton em 1973, mas Parker exigiu que a compositora abdicasse dos direitos autorais. A música acabou se tornando, duas décadas depois, um hit de Whitney, filha de Cissy Houston, integrante da banda de Elvis nos anos 1970.

O filme reconstitui outros grandes momentos da carreira do artista, como o The 68´Comeback Special, um programa cuja ideia inicial do patrocinador e do Coronel seria mostrar Elvis bem-comportado, cantando clássicos natalinos, com figurino vermelho e branco de tricô. Sem chiar, o artista apenas fez a apresentação do jeito que quis, fincada no rock. Os produtores trataram de despistar Tom Parker, para que ele não visse no que estava se transformando o seu projeto. Nas cenas dos bastidores, Elvis demonstra estar abalado com os assassinatos de Bobby Kennedy e de Martin Luther King. Então, no programa canta a inédita If I can dream, feita especialmente para o pastor e ativista.

A propósito, o enredo apresenta o artista tentando se posicionar politicamente, mas é impedido pelo empresário. Isso coloca Elvis, de alguma forma, preocupado com questões políticas no campo da esquerda, quando sabemos que ele quis conhecer, por conta própria, Richard Nixon nos anos 1970 e pretendeu até combater as drogas no meio musical, voluntariando-se como uma espécie de espião colaborador do FBI. Talvez o espírito conservador sulista tenha falado mais alto. Essa parte bastante controversa de sua imagem pública ficou de fora.

Se a chegada de Elvis à indústria fonográfica teve suma importância para colocar em destaque a música negra (compositores, artistas e canções) em um meio artístico dominado por executivos brancos, que não se importavam em investir em artistas negros num país segregado e focava o público consumidor branco, por outro lado, o cantor criou uma referência (quase inalcançável) de como deveria ser um artista ideal no mercado norte-americano: além do talento musical, unir beleza, dança, carisma, presença no cinema, na TV e muito marketing.

Keith Richards chegou a afirmar que o surgimento de Buddy Holly, que parecia um bancário, foi um alívio para os pobres mortais que queriam fazer rock, mas que estavam a milhas de distância do altíssimo padrão de beleza e carisma estabelecido no mercado por Elvis.

O Rei do Rock era reconhecido pela generosidade com amigos, músicos e colaboradores. Talvez por isso sempre havia uma legião de bajuladores a cercá-lo, chamada de “a máfia de Memphis”. Ringo confirmou isso, em entrevista na qual faz referência à mítica visita dos Beatles a Graceland para o “beijão-mão” do Rei. O filme não mostra esses e outros personagens e deixa a impressão de que Elvis era bastante sozinho. O cantor se sentiu solitário e triste após a morte da mãe e o fim do casamento com Priscilla, mas vivia rodeado de amigos, inclusive estava com uma namorada no dia em que morreu.

O que o filme tenta e talvez consiga fazer é atualizar Elvis para a juventude – o que seria o reencontro do artista com os jovens. Em meados do século passado, esses eram seus principais seguidores. Provavelmente por isso, Baz Luhrmann realizou um filme que estabelece essa relação herói versus vilão, tipo de produção que hoje é a mais recorrente e rentável nos cinemas.

E se o diretor achava que seu maior trunfo seria Tom Hanks (por quem Baz esperou para poder começar a rodar o filme em 2019) como o narrador em off da história, quem rouba a cena indubitavelmente é Austin Butler, que foi além de imitar os trejeitos famosos de Elvis. O ator, possivelmente no papel de sua vida, absorve o espírito do artista e nas cenas em que está no palco repete o gestual à perfeição. Fãs irão se emocionar.

Austin Butler é, enfim, o tesouro de Elvis. Há uma semelhança física, é loiro como Elvis, tem quase a mesma altura (1,83m, Butler; 1,82m, Elvis), nasceu em um 17 de agosto de 1991 (Elvis morreu em 16 de agosto de 1977), também perdeu a mãe quando tinha 23 anos, ele toca instrumentos. Austin foi indicado espontaneamente por Denzel Washington, que, ao trabalhar com ele na peça The iceman cometh, de Eugene O´Neil, elogiou sua ética profissional.

Mas o que convenceu mesmo Baz a contratá-lo para o papel que vários outros atores disputavam (Ansel Elgort, Miles Teller, Aaron Taylor-Johnson e até Harry Styles) foi um vídeo enviado por Austin em que ele toca Unchained melody ao piano, após sentir muita saudade da mãe. A música, como se sabe, é a última performance de Elvis registrada por câmeras e Baz Luhrmann vai arrancar do espectador, fã ou não, as lágrimas que este, porventura, ainda não tenha derramado.

A entrega de Austin foi tão forte, que ele merecia ter mais cenas com diálogos. Ele brilha muito mais nas cenas em que faz as performances musicais. Talvez isso seja o único risco que ele corre para não garantir o Oscar de Melhor Ator em 2023, que a crítica já aponta desde que o filme estreou em Cannes em maio deste ano, conseguindo 12 minutos de aplausos, entrando na lista das maiores ovações da história do festival. Priscilla Presley, Baz Luhrmann, todos da equipe choraram. Especialmente Austin, que “conviveu” por três anos com Elvis. Quando estava fazendo o filme, ele ouviu de algumas pessoas que, após a estreia, não aguentaria mais ouvir o cantor. Em resposta a um jornalista, na divulgação do filme neste mês, ele disse que havia acabado de ouvir Elvis naquele dia e foi como se tivesse dado um telefonema para um amigo.

 ---------------------------------------------------------------------------------
*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

Publicidade

veja também

Pra você que ainda não viu 'Succession'

'Treta' e as melhores séries com tretas da Netflix

Idade: isso vai passar