Mirante

O pesadelo ambiental

TEXTO Débora Nascimento

31 de Agosto de 2021

Imagens divulgadas em redes sociais registram o incêndio na Ilha de Evia, na Grécia, em agosto

Imagens divulgadas em redes sociais registram o incêndio na Ilha de Evia, na Grécia, em agosto

Foto Reprodução

Dezenas de pessoas aglomeradas numa barca. Não miram o que está à frente, o destino que a embarcação segue, como acontece normalmente com passageiros. Todos estão olhando para trás. É noite. As luzes fluorescentes internas do navio estão acesas, mas o fogo que toma conta da terra firme, ainda próxima, iluminaria de qualquer forma a embarcação. O vermelho intenso das chamas ocupa todos os espaços da paisagem que se tem, num contraste quase neon com o tom branco metálico do barco. Além daqueles que interromperam suas férias, muitos filmam com seus celulares o que acabaram de deixar para trás: suas casas, empregos, estabelecimentos comerciais, plantações, praças, memórias.

Essa cena, que poderia ser a descrição de um pesadelo, foi a trágica imagem real de um incêndio ocorrido, em meados de agosto, na Ilha de Evia, a segunda maior da Grécia. De um lugar antes paradisíaco, atrativo para turistas do mundo inteiro, tornou-se um inferno, com as chamas que rapidamente se alastraram afetando flora, fauna e construções, transformando a cidade numa paisagem devastada de cinzas.

Se não houvesse tanta coisa a nos distrair, como memes nas redes sociais, TikTok, trezentas mil postagens no Twitter e incontáveis séries na Netflix, provavelmente estaríamos (e deveríamos estar) correndo com a mão na cabeça, de um lado para o outro, certos de que vivemos um daqueles momentos dignos de tenebrosas passagens bíblicas. O noticiário não dá conta de tanta destruição ambiental, tragédia, morte e inocentes sendo vitimados ainda com miséria, fome e doenças.

Neste período de pandemia, um pesadelo frequente do imaginário coletivo é sonhar que se está sem máscara em algum local público, e também próximo a outras pessoas, estas muitas vezes sem máscaras (o que não está longe da realidade). Há não muito tempo atrás, pesadelos recorrentes envolviam perseguição, morte ou mesmo situações constrangedoras, como ficar nu, sem querer, em público. O novo pesadelo coletivo, postado nas redes sociais no Brasil, traz uma forte carga de tensão e angústia, como se estivéssemos à beira de um precipício.

Esse pesadelo não é algo restrito a apenas nós, brasileiros. Um estudo da Harvard Medical School, nos Estados Unidos, coletou cerca de 15 mil relatos de sonhos – cerca de dois terços dos entrevistados foram mulheres e um terço, homens. A pesquisa resultou no livro Pandemic dreams (Sonhos pandêmicos), da psicóloga Deirdre Barrett. Essas descrições são, em sua maioria (90%), negativas e de sonhos em que se está sem máscara em local público.

A pesquisa mostra que, no início da pandemia, a maioria das pessoas sonhava com situações de perigos e a impossibilidade de respirar. Depois, com os lockdowns e as aulas online, sonhavam estar aprisionadas ou submetidas a um teste surpresa de matemática. Mas, após seis meses de confinamento, e com as notícias sobre o altíssimo índice de mortes por Covid-19, houve um aumento nos sonhos sobre estar ou ver pessoas sem máscara em público. O estudo concluiu que, mesmo anos após o fim deste período, muitas pessoas podem permanecer com tais sonhos.

Além desses, tenho sonhado, vez ou outra, com um amigo que, em agosto de 2020, faleceu de Covid-19: o jornalista Beto Rezende. Eu já havia sonhado antes com pessoas queridas falecidas, como minha amada tia-avó, Dona Iracema, que morreu, em 2009, em decorrência do mal de Parkinson, aos 89 anos. Durante dois anos após sua morte, tive sonhos frequentes com ela, depois se tornaram mais espaçados.

Em 1994, tive um sonho com meu tio Edimir, poucos dias após sua morte naquele ano, aos 40 anos, de Aids. Ele me falou de problemas que estavam acontecendo na família e garantiu, ao fim, que tudo ficaria bem. Nunca esqueci de algo que ele me disse antes de sair abruptamente do sonho, quando perguntei se ele havia encontrado Deus. Ele falou que seu espírito entrava em árvores, ganhava corpo através delas e gostava dessa sensação, inclusive de sentir o vento.

Se tive um contato real ou não com o espírito dele, não sei. O certo é que, desde então, passei a respeitar ainda mais as árvores. Quando vejo imagens de queimadas, desmatamentos, de troncos ilegais abatidos, como a maior apreensão de madeira ilegal da história da Polícia Federal (226 mil metros cúbicos de toras, suficientes para encher 7.500 caminhões e avaliadas em R$ 130 milhões), registrada em dezembro de 2020, penso que esse seja um crime que ainda não temos a dimensão do que realmente representa, do ponto de vista da vida na Terra e dos direitos ambientais – não no que diz respeito a nós, como vítimas de tais consequências, mas estritamente à flora e à fauna.

Em 2020, 26% da vegetação pantaneira queimou o equivalente ao tamanho do Estado do Rio de Janeiro inteiro. Em 2021, já houve queimadas no Pantanal, na Chapada dos Guimarães (MT), na Chapada dos Veadeiros (GO). Além da ação direta do homem, o fogo também tem a ver com a ação indireta. A seca provocada pelo desmatamento da Amazônia aumenta a probabilidade de incêndios florestais. A área do Pantanal, por exemplo, vive a pior estiagem nos últimos 50 anos. A crise ambiental se retroalimenta.

A falta de chuvas nas regiões Sul e Sudeste/Centro-Oeste desabasteceu os reservatórios de água, que estão, respectivamente com 28,1% e 21,6% de sua capacidade. Isso tem impacto no tanto fornecimento de água quanto de energia elétrica e no preço da conta de luz – que aumenta o valor de tudo, inclusive da comida, num país onde milhões de pessoas vêm enfrentando a fome. Especialistas preveem apagões em todo o Brasil para outubro e novembro, que são tradicionalmente os meses com maior percentual de estiagem. E racionamento de água em 2022.

Recentemente, saiu uma notícia que deveria afligir o mundo inteiro: a Amazônia, que antes era considerada “o pulmão do mundo”, após tanta destruição de seu bioma, agora se tornou uma supervilã do aquecimento global, passando a emitir mais do que reter o dióxido de carbônico. A emissão é direta, com a fumaça das próprias queimadas, e indireta – com o aumento da temperatura causado pelo desmatamento, as árvores passam a emitir os gases para a atmosfera, e não mais absorvê-los. Como diria o personagem de Charlton Heston, no filme O planeta dos macacos, de 1968, “Vocês finalmente conseguiram! Destruíram tudo!”.

Pesquisadores preveem que o desmatamento está levando a Amazônia a se tornar uma savana semiárida. Se o desmatamento continuar, haverá desertificação da bacia amazônica. Enquanto isso, os cientistas que integram o Conselho Consultivo de Crise Climática (CCAG) alertaram, em relatório divulgado no dia 25 de agosto, que é necessário e urgente alcançar o índice zero de emissões de gases de efeito estufa até 2030 e não em 2050, como acertado no Acordo de Paris, em 2015.

Até 2050, pode ser tarde demais. O objetivo de zerar seria para limitar o aquecimento global a 1,5ºC até o final do século. Mas, se estamos em 1,2oC e já testemunhamos o que está ocorrendo no planeta, imagine até lá... Mesmo os especialistas não conseguem prever, com certeza, o tamanho da catástrofe que pode acontecer na Terra. Só sabem que haverá, caso providências não sejam aplicadas em nível mundial.

Por isso, mais do que nunca, é urgente defender o direito dos indígenas à terra. Além de ato de solidariedade, justiça e reparação histórica, defenderemos, desta forma, a nossa sobrevivência como espécie. Pois eles são os guardiões naturais do meio ambiente. O planeta vem soando alarmes de que ultrapassamos todos os limites das agressões ambientais. Temos poucas opções para reverter a situação. Precisamos segurá-las.

“Esse Projeto de Lei 490, para nós, é considerado um projeto de lei da morte, porque vai negar toda e qualquer demarcação de terras indígenas, além de rever processos já concluídos. Ou seja, qualquer um que tenha sua terra já demarcada, pode ser que, a qualquer momento, sua terra seja revisada e reduzida. Esse PL 490 é o pior de todos. É trágico, para nós, povos indígenas; é trágico para o meio ambiente. E se é trágico para o meio ambiente, também é para a humanidade. (…) É exatamente por meio dele que vai se aprovar a exploração dos territórios, o desmatamento e a grilagem”, afirmou Sônia Guajajara à jornalista Erika Muniz, na entrevista de agosto da Continente, em referência a um dos retrocessos que circulam atualmente em Brasília, incluindo a tese do Marco Temporal, que está em julgamento no STF e reúne, desde a última semana, milhares de indígenas no Acampamento Luta pela Vida.

Agora que a crise ambiental não é definitivamente mais uma ameaça distante, uma previsão de ambientalistas para cair nas costas das futuras gerações, mas uma ameaça real e contemporânea repleta de efeitos tangíveis – como estiagens onde comumente chovia, incêndios florestais em várias partes do mundo, chuvas torrenciais provocando inundações em lugares inesperados, ondas de calor extremo e fatal onde antes havia temperatura amena –, talvez seja melhor que, tal como o sonho pavoroso de se estar sem máscara em local público, a crise ambiental também se torne tema de assustadores sonhos coletivos. Talvez, assim, tenhamos uma chance de não vivermos, de fato, os nossos piores pesadelos.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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