Reportagem

Vidas em transição

No caminho da agroecologia e outros movimentos inspiradores de resistência, pessoas do campo e da cidade aprendem e ensinam, em integração com a natureza, novas formas de viver

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO
ILUSTRAÇÕES IANAH MAIA

01 de Junho de 2021

Ilustração Ianah Maia

[conteúdo na íntegra | ed. 246 | junho de 2021]

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As sementes são guardiãs de histórias fascinantes. Algumas nos contam ter vindo de uma terra muito distante. De lá, cruzaram o Atlântico e desembarcaram num território conhecido, à época, como Pindorama – ou “terra das palmeiras”, sentido mais comum da palavra de origem indígena. O lugar é o mesmo onde você pode estar, agora, lendo estas linhas, muito provavelmente com raras palmeiras ao seu redor. Este território, chamado depois pela graça de outra planta – o pau-brasil – perde muitas espécies desde então. Suas sementes, todavia, têm o poder de nos ligar ao caminho de volta. 

Conta-se que algumas dessas pequenas-grandes geradoras de vida vieram de longe e navegaram milhares de quilômetros sobre os mares. Balançavam às escondidas, presas aos cabelos de mulheres e crianças vindas d’África. As tranças ancestrais de um povo condenado a servir compulsoriamente na colônia portuguesa carregavam a chance de sobrevivência e autonomia em um mundo desconhecido. Mas não só. Aquelas tranças visionárias trouxeram ao Brasil uma semente de diversidade e resistência frente à aventura açucareira que, como escreve Josué de Castro em Geografia da fome (1946), era “capaz de dar muito lucro, mas de exigir sempre muita coisa em compensação. De exigir uma escravidão tremendamente dura, não só do homem, mas também da terra a seu serviço”. O empreendimento latifundiário da cana-de-açúcar inaugurou, no Nordeste, séculos de asfixia à policultura e à biodiversidade, que resistiu, em boa medida, em razão dos esforços das populações diaspóricas e originárias. 

É do geógrafo pernambucano o reconhecimento de que, enquanto parte dos povos indígenas recusou o projeto mercantil monocultor – esdrúxulo às suas visões de mundo, tanto quanto antagônico aos modos de vida vinculados a florestas e águas sagradas –, o povo afrodescendente resistiu cultivando várias espécies de alimento, a despeito de servirem ao plantio dominante. Com tradição agrícola de autossustento, negros e negras reagiam àquela ameaça de fome e empobrecimento da vida, “sujando aqui, acolá, o verde monótono dos canaviais com manchas diferentes de outras culturas”, como diz Josué. Foi nos quilombos, sobretudo, que floresceram cultivos de batata-doce, feijão e milho, à revelia dos mandos senhoris da monocultura, “uma grave doença da economia agrária” – já postulava o cientista social. 

Passados 521 anos da história oficial, os dados do Brasil nos dizem sobre sermos hoje um imenso país latifundiário, agora com quilômetros de plantações de soja, milho e cana servindo mais à exportação (as commodities) e à ração do gado e outros bichos abatidos do que à vida do seu povo. Eis o motor do agronegócio, que, quando nos alimenta, também nos envenena. Estamos no ranking dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo; o país da soja e do frango alimentado pelo milho transgênico. O famoso agro da propaganda da Globo pode até ser pop e tech, mas está longe de ser tudo

Não é tudo porque, segundo dados do último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2017), os estabelecimentos da agricultura familiar são 3,9 milhões, ou seja, 77% das atividades do setor no país, ocupando 10,1 milhões de pessoas. Grande parte delas é composta justamente por descendentes de populações colonizadas, vinculadas ao amor pela terra e aos movimentos de luta no campo, do qual dependem para viver. Se, em valores econômicos, a produção familiar corresponde a 23% do total, em valores nutricionais, é “a principal responsável pela produção dos alimentos que são disponibilizados para o consumo da população brasileira”, de acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). 

Não por acaso, é justamente esse o nascedouro, no país, de um movimento amplo de resistência e transformação socioambiental, bastante intensificado nos últimos anos: a agroecologia. Produtoras de diversidade, segurança e soberania alimentar em sintonia com a(s) natureza(s), as experiências agroecológicas afloram, por todo o país, “novos” modos de viver no campo, na cidade ou na sua inter-relação, apontando um futuro possível a um mundo em estagnação. São vidas em transição, com um longo caminho de mudança e enfrentamento, guiadas por uma reconexão com a terra, as plantas, os bichos, as águas, as energias físicas e sutis, as pessoas e o alimento-vida. Tudo isso a partir do protagonismo de mulheres, povos tradicionais e da recuperação de valores como a solidariedade e a cooperação. Uma resposta política, tecnológica e científica à degradação promovida pelo agronegócio e seus estilos de vida. 

“A agroecologia é uma prática, mas não só, que resgata formas antigas de fazer agricultura que têm a ver com a agricultura indígena, a agricultura dos camponeses tradicionais – antes desse processo todo da revolução verde, dessa tecnificação, desse envenenamento da agricultura –, e a forma de fazer agricultura trazida pelas populações da África. Também traz elementos novos, mas baseados na agricultura camponesa”, sintetiza Maria Cristina Aureliano, agroecóloga e coordenadora técnico-pedagógica do Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá. 

De expressão contemporânea, a agroecologia é uma ciência, um movimento social e um conjunto de práticas cuja base está no uso sustentável da terra para a produção de alimentos saudáveis, sem veneno e adubos químicos. Por conta disso, abarca sentidos transversais e diversos da vida, indo além do produzir. 

“A agroecologia traz esse cuidado com as pessoas e com o que as cerca, porque não separa. As outras ciências, elas se especificam numa linha, a agroecologia não; ela abrange o todo, todo o ecossistema. Isso é muito importante”, aponta Gracilene Macedo, graduada em Ciências Naturais pela UFPB e técnica em agricultura urbana e agroecológica no Boqueirão, município do cariri paraibano onde nasceu e reside. 

Elencando alguns exemplos, vamos perceber que a agroecologia está em toda parte: na aproximação campo-cidade, na permanência de jovens no meio rural ou, o inverso, na sua migração para o campo. Está na agrofloresta, na permacultura, integrando a regeneração do solo, o reaproveitamento da água e a destinação inteligente dos resíduos. As experiências agroecológicas estão nos comércios justos de base solidária, na valorização da agricultura familiar, na luta pela terra, nas hortas comunitárias, na culinária ancestral, nas feirinhas, nas trocas, nos grupos de consumo coletivo. Estão ainda nas articulações das mulheres, nos quintais de plantas medicinais e frutíferas, no veganismo, nas redes de transição urbana, na convivência com o semiárido. 

Contemplando muitos dos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU – a Agenda 2030 –, a agroecologia é também parte da solução prática às urgências climáticas e à insegurança alimentar que assolam o mundo. Já faz uns anos que a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) aponta a agroecologia como estratégia de erradicação da fome na América Latina e Caribe. 

Com a pandemia da Covid-19, o movimento impõe sua urgência em meio a um contexto no qual o Brasil volta a integrar o Mapa da Fome, de onde havia saído em 2014. Desde 2018, a situação vem piorando e, hoje, estima-se que 19,1 milhões de brasileiros passem fome, segundo inquérito feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, em parceria com a Action Aid Brasil, Friedrich Ebert Stiftung Brasil e Oxfam Brasil, divulgado em abril deste ano. 

Isso se olharmos as pessoas em situação de gravidade, pois, pelo mesmo levantamento, mais da metade da população brasileira (116,8 milhões) vive em insegurança alimentar leve, média e grave. Pensar em transformação socioambiental no país é considerar esses dados, daí a (re)conexão com a agricultura sustentável ser um ponto de virada em nossas vidas. 

DAS SEMENTES
Há cerca de 10 mil anos, a interferência dos humanos na produção de alimentos pela natureza mudou radicalmente o nosso modo de viver na Terra. No livro História das agriculturas no mundo, Marcel Mazoyer e Laurence Roudart explicam como “a agricultura humana conquistou o mundo; tornou-se o principal fator de transformação da ecosfera”, fato que acarretou a gradual sedentarização e explosão das populações. Nesse processo, a descoberta e a seleção de sementes foram fundamentais para dar continuidade a essa história. E continuam sendo. 

Na Paraíba, há um movimento inspirador de agricultoras e agricultores retomando a coleta e o melhoramento natural das suas “sementes da paixão”, como se chamam as sementes nativas, ou crioulas, nesta parte do país. Devido à modernização agrícola pela paradoxalmente denominada revolução verde, no pós-Segunda Guerra Mundial, as sementes originais, não modificadas artificialmente, começaram a desaparecer junto aos modos de vida ancestrais ligados à natureza. Com a expansão dos grãos híbridos, transgênicos, estéreis e patenteados, quase se extinguiram. 

Frente a isso, o movimento agroecológico vem impulsionando, desde os anos 1990, a criação de bancos de sementes comunitários no país. Através do incentivo de entidades como a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), composta por mais de três mil organizações, os bancos se multiplicam como espaços de trocas solidárias. Aí, os agricultores doam, pegam emprestadas e repõem as sementes crioulas plantadas, reforçando a salvaguarda de patrimônios familiares mantidos e repassados, como joias, por avós e bisavós da terra. Graças a eles, podem voltar a ser produzidas em maior quantidade e os bancos, por seu turno, ampliam essas fontes de vida, ao plantar a história e a sobrevivência das comunidades rurais. 

Em 2016, a publicação Sementes da paixão – catálogo de sementes crioulas da Borborema, da Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA), divulgava a existência, na Paraíba, de 240 bancos comunitários, envolvendo oito mil famílias em 63 municípios do estado que, pela força desse movimento, aprovou, há quase 20 anos, uma lei estadual de estímulo a essas iniciativas. Nas mesmas páginas, conferimos a catalogação de 10 tipos de fava, 26 de feijão, dois de jerimum, sete de milho, afora oito tipos de semente crioula de coentro, girassol, sorgo e gergelim. 

“É importante frisar esse papel de fortalecimento das sementes crioulas, que o agricultor guarda, armazenando de geração a geração, e a agroecologia traz isso também, os saberes sobre como guardar uma semente, incluindo ainda os animais, não só os vegetais”, ressalta a agroecóloga Gracilene Macedo, testemunha dos avanços agroecológicos na região do Boqueirão. A sua cidade ganhou uma Tenda Agroecológica, para a venda direta dos produtores, e está numa articulação para a criação de um curso técnico, junto ao Instituto Federal, de Agroecologia e Agricultura Familiar. Um ato de resistência num lugar ainda tomado por agricultores convencionais, mesmo os familiares. “Toda vida, eles foram educados na cultura de passar o trator, queimar, usar o veneno. Então, você tem que ter um cuidado a mais na fala, para tentar fazer diferente, e a agroecologia tem esse ensinamento de respeitar, mas de trazer uma nova forma para esse agricultor”, pontua. 

O epicentro do processo de transição da sua região, no semiárido, é o Coletivo Asa Cariri Oriental, ou Casaco. Com 20 associados, mantém, entre suas ações, um grupo de trabalho de sementes crioulas que reforça a articulação de bancos no território. “De fato, a gente já era guardiões de sementes, só que não tinha isso bem-formado na cabeça, não parava para pensar o quanto era importante para a convivência com o semiárido”, explica a coordenadora do Casaco e agricultora experimentadora Francineide Barbosa de Oliveira. Fran cultiva, na comunidade rural de Lagoa de Jucá, no município de Alcantil, várias plantas medicinais (“chá pra tudo”), usadas no seu dia a dia partilhado com os vizinhos. 

Não muito distante de lá, está a poeta e agricultora assentada Quitéria dos Santos, com quem também falamos ao telefone. Paraibana de um lugar onde chove “um ano sim e oito não”, ela conta que a transição agroecológica, em seu sítio, aumentou a abundância de sua produção, garantindo alimentos saudáveis e excedentes mesmo em tempos de escassez de água. Um dos motivos é a conservação das sementes crioulas, que ela e o marido produzem e guardam com todo carinho: “A gente tem aqui milhos, uma diversidade de feijão, melancia, jerimum. A gente vai escolhendo aquelas sementes que botam mais rápido, as melhores, aquelas sementes da paixão, porque a gente se apaixona mesmo”, diz Quitéria.

Entre as suas favoritas está a do feijão “figo de galinha”. “Um agricultor não tem só uma semente querida não, tem várias. Mas esse feijão, ele bota rápido. Teve ano que a gente plantou que não teve chuva e a gente ainda conseguiu lucrar com ele. Até eu disse a um rapaz daqui: ‘É o feijão do milagre’”, conta a guardiã. O catálogo da AS-PTA na Borborema diz que o macassar fígado de galinha tem sementes que são “resistentes a pragas e doenças, exigem menos tratos culturais, mais produtivas, requerem menos adubação, resistentes à seca e adaptadas à região”. 

Quitéria não é da Borborema, mas de uma mesorregião próxima, o Seridó Oriental. Habitante do Assentamento São Domingos, em Cubati, ela ensina como uma semente tem relação com o local onde brota, o seu clima e as necessidades dos seus habitantes, num saber sintonizado com a natureza. A mudança para o modo de vida agroecológico a ajuda a enfrentar as dificuldades. No ano sem chuva em que plantaram o “feijão do milagre”, por exemplo, apenas cinco das 30 famílias do assentamento conseguiram tirar o sustento dos seus cultivos, porque tinham optado por esse caminho. 

Segundo ela, há uma recusa da comunidade em aderir à agroecologia: “Nos chamam de doidas e abestalhadas”. Enquanto isso, as agricultoras precisam criar barreiras verdes para conter os agrotóxicos dos vizinhos. “A gente não é 100% agroecologia, costumo dizer que a gente está numa fase de transição agroecológica. Um dia, se Deus quiser, conseguimos”, diz a poeta-cultivadora que, com a pandemia e sem feira, passou a vender no “porta a porta”. 

Sua transição iniciou aos poucos e, mais fortemente, a partir de 2014, com movimentos sociais e programas como o Uma Terra e Duas Águas (P1+2), que fornece tecnologia de armazenamento da “segunda água”, destinada à produção agrícola. Além de uma cisterna própria, o projeto de convivência com o semiárido leva ao beneficiado práticas sustentáveis que lhe dão autonomia – e não o velho cabresto político da “indústria da seca”, ainda vigente. 

Quem fala mais profundamente sobre esse conjunto de ações inovadoras é Ivone Sulamita Farias, técnica do Serta – Serviço de Tecnologia Alternativa, através do qual coordenou uma versão robusta do P1+2 em Betânia e Inajá, no sertão de Pernambuco, em parceria com a ASA: “É um programa em que tudo vai acontecendo ao mesmo tempo: formação, demarcação da tecnologia, entrega do material, escavação do buraco, intercâmbio, diagnóstico, visita às propriedades, elaboração do mapa, da história da família. Tem um conjunto de ações partilhadas na perspectiva da produção alimentar de qualidade. É um projeto incrível, que causa um rebuliço na vida do agricultor”. 

Na perspectiva agroecológica, o programa chegou, segundo ela, muito para diversificar a produção de milho e feijão, através de um processo de desconstrução de paradigmas, com conversas, mudas e sementes. Foi Ivone quem nos conectou, via internet, ao Sítio das Baixas, na zona rural de Betânia. Na comunidade quilombola, a agricultora Claudilene de Souza nos recebeu, por videochamada, com água de chuva e sorrisos. Claudinha foi uma das que passaram recentemente pelo tal “rebuliço”, a partir da implantação de uma cisterna de enxurrada em sua propriedade, que hoje tem não só milho e feijão, mas hortaliças, acerola, coco, mamão, goiaba, banana, batata-doce, moringa etc., tudo sem veneno. Sobre a moringa, ela ensina: “Com ela, a gente alimenta os animais e pode também botar na nossa salada. Aprendi com o pessoal do Serta que tem muitos nutrientes e o canudinho dela você pega para quem está muito desnutrido, pisa e bota na comida, como uma farinha”. 

Claudinha diz se sentir “outra pessoa”, “muito feliz”. “Eu como o que planto, sem precisar comprar, tenho em casa o alimento orgânico, sem agrotóxico. Antes, eu comprava goiaba na feira e, quando tomava o suco, sentia a queima. Hoje, com as minhas goiabas, não sinto nada, isso é de uma importância muito grande.” Antes de entrar na transição agroecológica, ela ia uma vez por ano, mais o marido, cortar cana longe de casa, por seis meses. Hoje, só quem vai é ele e, nos tempos de inverno, fica no roçado com a esposa. A cisterna de enxurrada, ela explica, faz a captura da água das chuvas num reservatório de cimento no chão, enquanto a primeira cisterna da casa, de uso doméstico, faz isso pelo telhado. 

Claudinha aprendeu também a reutilizar as chamadas águas cinzas das lavagens de louça, roupa e banho. “Sabe o que é o ciclo da bananeira?”, ela me pergunta e eu digo que não. “É assim, muito ótimo: a gente cava um buraco no chão, tipo um círculo, e, ao redor, mais quatro buraquinhos, que é onde vai ser plantada a bananeira. No do meio, o maior, a gente bota areia, cinzas, pedaço de telha quebrado, esses pau de cerca que já tão quase ficando ruim, picota tudinho e vai botando as camadinhas. Na camada de cima, a gente bota de folha seca para cobrir e não dar mosquito. Aí, o buraco do meio vai filtrando a água e os buraquinhos do lado, recebendo só o molhado para a planta”. 

A técnica-professora Ivone Sulamita fica encantada. “O Sertão tem esse acolhimento com as pessoas, uma riqueza e um potencial muito grandes, e a vida toda foi muito discriminado pela história, pela mídia, com o objetivo de tornar o povo do lugar ‘coitadinho’. Com as políticas públicas voltadas para a região do semiárido (sobretudo de 2000 em diante), essa visão foi sendo ressignificada e, através dos investimentos, inspirando os agricultores a terem uma melhor qualidade de vida e a ficarem no campo”, afirma ela, que escolheu a cidade de Ibimirim, no mesmo sertão de Claudinha, para viver e fazer sua carreira. Vinda ainda adolescente da Zona da Mata Norte, como cria do curso de Desenvolvimento Local do Serta – transformado, depois, no técnico de nível médio em Agroecologia –, a filha de agricultora passou a trabalhar pela instituição como técnica de projetos, ajudando ainda a implementar, em Ibimirim, a segunda sede do curso do Serta, hoje uma referência em Pernambuco. 

DAS MULHERES
A agricultura familiar é uma atividade reconhecida, ainda hoje, como majoritariamente masculina, haja vista a herança do patriarcado na organização das famílias brasileiras, principalmente rurais. Pelo Censo Agropecuário do IBGE, em 2017, 81% dos produtores, dirigentes dos estabelecimentos, se declararam homens, enquanto 18,7%, mulheres, a maioria no Nordeste. Dessa população, descobriu-se que 20,3% das propriedades são administradas por casais. A desigualdade de gênero é explicitamente uma questão. Em contrapartida, existe um trabalho invisível feito por mulheres que “não ajudam os homens no campo, elas trabalham na roça, capinam, plantam, semeiam, colhem, cuidam dos pequenos animais e das hortas e da reprodução social da família, ou seja, o trabalho doméstico também é delas”, como diz a socióloga e educadora Alzira Medeiros. 

A importância do papel das mulheres agricultoras é tanta, que o movimento agroecológico levanta a bandeira “Sem feminismo, não há agroecologia”. Atuante na agroecologia e na economia popular e solidária, Alzira explica como o movimento de expulsão do campesinato, no Nordeste dos anos 1960-1980, fez com que as mulheres se tornassem “as principais guardiãs da terra”. “Isso é importantíssimo para a gente entender o lugar das mulheres na agricultura e como estão hoje. Embora, muitas vezes, esse trabalho não tenha visibilidade, inicia-se um movimento grande delas no campo.” 

Daí podemos pensar a expressividade, desde 2000, da Marcha das Margaridas, realizada pelas trabalhadoras rurais, anualmente, no país (ou até antes da pandemia). No nome, o movimento homenageia a líder sindicalista Margarida Maria Alves, assassinada por fazendeiros, na Paraíba, em 1983. 

São justamente as realizadoras da marcha (da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e da Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais) que afirmam: “As mulheres assumem historicamente um papel fundamental na construção da agroecologia. As experiências agroecológicas são desenvolvidas desde sempre a partir do trabalho das mulheres em seus quintais, fonte permanente de alimentos para a família, verdadeiras áreas de experimentação de variedades de sementes e mudas, e domesticação e manejo de diferentes espécies” (texto da cartilha As mulheres na agroecologia e a agroecologia na vida das mulheres, de 2017). 

Com as práticas agroecológicas, “a mulher ganha mais autonomia, mais empoderamento. Não é que ela é mais ou menos do que o homem, mas ela passa a perceber o valor que tem. Principalmente, porque a autonomia vem com o conhecimento, com a libertação das escravidões”, diz Ivone. 

Fran que o diga: criou os filhos praticamente sozinha, numa máquina de costura, e sofreu muito com o combo machismo mais falta d’água. Morou 18 anos com o marido, mas, há 13, está separada – “graças a Deus, me livrei”. Através das reuniões do Casaco, formado por agricultores locais em torno do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), pelo qual foi beneficiada em 2005, ela se libertou. 

“Fui privada de estudar, sair e trabalhar. A minha vida era resumida apenas a cuidar de casa, de menino, de marido e a costurar, eu não saía para canto nenhum”, conta. Mesmo escolhida para representar sua comunidade nas reuniões, Fran só foi ao encontro um ano depois, pois o marido não permitia. “Ali, pude ver que tinha outro mundo além daquele que eu vivia. Me apaixonei, logo de cara, por aquela liberdade, pela oportunidade de buscar algo melhor para a comunidade e as pessoas mais necessitadas, como eu mesma.” 

Ela é também animadora do Grupo de Trabalho de Mulheres do coletivo, onde desenvolvem uma ação que vem sendo implementada por redes de mulheres no país: a caderneta agroecológica. A ferramenta contabiliza e mostra o trabalho das agricultoras na terra, principalmente nos cultivos dos quintais e ao redor de casa. “É um instrumento muito importante, tem o poder de tornar visível aquilo que você já fazia, mas não dava importância, porque era pouco, mas que, no fim, faz diferença”, conta Fran, que já chegou a economizar, consumindo seus cultivos de ervas medicinais, frutas, verduras e criação de galinhas, mais de R$ 500. 

“Não é só a história da técnica, você tem que trabalhar as mudanças estruturais na própria sociedade e buscar as nossas contradições”, observa Maria Aureliano, do Centro Sabiá. “Não dá para pensar uma agroecologia que tem uma relação saudável, bacana com a terra, com a natureza, mas uma relação nociva e tóxica entre a agricultora e o agricultor, quando você tem machismo, violência contra as mulheres.” 

DOS ENCANTAMENTOS
Para além do movimento, ciência e prática agroecológicos, existem outros campos que nos conectam à mãe Terra com seus nomes próprios – o uso do termo agroecologia, aliás, é recente. Segundo o Dicionário da educação do campo, a difusão e utilização do conceito, no Brasil, veio em 1989, com a publicação do livro Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa, de Miguel Altieri. 

Falava-se, antes, em agricultura alternativa, pois assim foi nomeado o conjunto de pensamentos emergentes desde os anos 1920-30, na Europa e no Japão, que já buscavam, por meio da sistematização de culturas ancestrais, soluções aos problemas da agroquímica e do empobrecimento do solo. No Brasil, chegou mais fortemente nos anos 1970, como resposta à revolução verde, mas “permaneceu inicialmente restrita a um pequeno grupo de intelectuais”. A agroecologia vem depois com o papel de organizar e ampliar algumas dessas técnicas alternativas. 

“Internamente, a gente defende muito essa pegada da agricultura tradicional, ancestral, que é a materialização do viver de muitos dos princípios e conceitos que a agroecologia traz. Mas a nossa fala está posta aqui como uma ‘agricultura modo de vida’, na qual também nos colocamos juntos, de forma solidária, com relação aos movimentos agroecológicos”, anuncia Iran Xukuru, liderança do movimento de transição agrícola – ou retomada – do povo indígena de Pesqueira, no agreste de Pernambuco. 

A força desse processo vem da reaproximação dos xukurus com sua cosmologia sagrada, da qual também foram apartados pelo processo de colonização. Nessa agricultura descolonizadora, há uma compreensão profunda, aliada à prática, de que somos natureza física e espiritual e, por isso, devemos lembrar: temos uma função nos seus ecossistemas. Uma agricultura de cuidadores e cuidados, “que observa a natureza como algo sagrado, inclusive nós, e é promotora da cultura do encantamento”, nas palavras de Iran. 

“Essa agricultura nos possibilita, sendo natureza e se descobrindo enquanto natureza, promover um viver na Terra sem comprometer o viver da própria Terra”, sentencia. Não é, portanto, força de expressão quando pessoas como o teólogo Leonardo Boff dizem que “os povos originários são nossos mestres e doutores” na construção de um mundo melhor; ou quando a ativista indígena Pennie Opal Plant, dos EUA, fala: “Temos nossas instruções originais, anteriores à colonização, de como viver em harmonia e equilíbrio. Não somos seres superiores, habitamos a barriga da mãe Terra, não somos separados de nada”. 

De Pernambuco, o povo dos encantados – dos seres espirituais – tem, portanto, muito a nos ensinar: “Agricultura, para nós, vai muito além do plantar, do colher e do comer. É uma agricultura que trabalha as práticas rituais desse plantar, colher e comer, as práticas da solidariedade, do sistema tradicional de cura e da própria inserção na natureza enquanto natureza”. 

O coletivo Jupago Krekrá – cujo sentido tem a ver com “boas ideias na cabeça para o bem-viver” e do qual Iran é um dos criadores – tem sido, desde 2010, o ponto de força do povo Xukuru para a realização da agricultura modo de vida da qual ele fala. Em sua natureza multidimensional, essa agricultura é o alicerce de cosmovisões que fortalecem social, política, econômica e culturalmente a população de um território já demarcado – ponto muito importante. Eles implementam um modo de vida de resistência às relações nocivas à terra, destruidoras não só da saúde, mas da vida de águas, matas e animais que – antes de nos “servirem” – são “morada dos espíritos e dos encantados” e precisam de atenção e cura. É uma agricultura que trabalha com a mata de pé e ainda ergue floresta, pois eles herdaram uma terra degradada. 

Em parceria com os movimentos de mulheres e jovens, o coletivo construiu e vem gerindo, desde 2012, o Centro de Agricultura Xukuru de Ororubá, o Caxo, situado “num espaço onde os antigos chamavam de Boa Vista”. Na Serra do Ororubá, é ele o epicentro de energias ancestrais atuantes em sintonia com a natureza visível e invisível. O ponto de força é o terreiro de ritual, que “segura os sistemas agrícolas, agroalimentares, agroflorestais, medicinais, incluindo os que são só para os encantados (e não podem ser colhidos)”, como defende Iran, formado em Agronomia e também liderança religiosa. 

Se, em outros territórios dos xukurus, há criação de gado e formas de cultivo convencionais, nesse centro há uma semente de passado-futuro concentrando cozinha, centro de formação, terreiros de cultivo e de ritual e a Casa das Sementes (crioulas, ancestrais). É, aliás, no rastro de uma delas, cultivada por seu avô, que Iran vem dando passos, junto a seu povo, em direção à retomada agrícola. 

Em outra região serrana do estado, no município agrestino de Chã Grande, o agricultor, permacultor, bioconstrutor e meliponicultor Valter França se conecta, de alguma forma, à visão de mundo xukuru na lida com a terra. A sintonia chega no caminho dos aprendizados da permacultura e da agricultura biodinâmica (ligada à antroposofia), pertencentes às ditas “alternativas”. 

Na trilha desta segunda, França guia-se, por exemplo, pelo calendário lunar de cultivos e pela “magia” dos preparados biodinâmicos que nutrem o solo com energias ancestrais. “A minha primeira experiência com agricultura biodinâmica foi em Auroville, onde nós moramos, na Índia. Foi um período muito seco e de muito calor, com temperatura acima de 40 graus. E um dia, à tarde, o responsável pela fazenda orgânica me chamou para fazer um preparado (natural), o chifre esterco, em que você dinamiza, por uma hora, no processo de harmonia e caos (misturando em sentidos opostos, revezadamente). Depois disso, a gente fez a pulverização numa área da terra e, quando terminou, começou a chover. Eu me arrepiei todinho”, relata França, remetendo ao período em que ele e a esposa Maristela Lupe, profissional de yoga e ayurveda, passaram seis meses na ecovila indiana. 

Foi uma verdadeira dinamização na vida do casal que vem desenvolvendo, há quase 10 anos, uma conexão muito bonita com a produção de alimentos naturais e sustentáveis. Tudo isso a partir do sítio Mahabhumi (na livre tradução do sânscrito, “chão grande”), que, de área de pasto, vem sendo regenerado com plantios agroflorestais. Os dois estavam cansados da vida no Recife, onde mantinham a escola de yoga Sadhana, nas Graças. 

A partir da ideia de uma amiga, compraram o terreno e passaram a sonhar com o retorno à vida rural. Retorno porque, quando se conheceram, eram meninos do interior, estudavam na mesma classe da escola do teatro de Nova Jerusalém, em Fazenda Nova (PE). A mãe dela era professora dos dois e França tinha vindo de Brejo da Madre de Deus, a mando da mãe e do pai agricultor. 

“Olhando para esse passado, vejo que eles acertaram porque, se eu ficasse lá, estaria, no máximo, repetindo o que eles fizeram a vida toda. E essa minha saída em busca do conhecimento me trouxe de volta ao campo com uma nova consciência”, acredita França. De colegas da escola, ele e Maristela viraram família, casando-se na adolescência – ela com 15, ele com 17. Estão juntos há quase 40 anos e, além dos três filhos e dois netos, hoje são “pais” de tubérculos, pés de banana, pitanga, amora, acerola, coco, araçá, espécies arbóreas, milhos crioulos e abelhas nativas. A galinha Maria Antonieta, o bode Bito, os bovinos Govinda e Nandi e os gansos José Saramago e Pilar completam a família de estimação, servindo, sobretudo, à fertilidade da terra, pois o casal não come carne. 

Esta, contudo, é só uma parte do Mahbhumi, que nasceu de muito suor para ser um espaço inspirador. Até a chegada da pandemia, eram vários os visitantes, de estudantes a frequentadores das rotinas de bem-estar, com aulas de yoga, meditação, alimentação vegetariana/vegana do sítio, caminhadas na mata e atendimentos terapêuticos com Maristela (o projeto se mantém na pandemia, em menor escala). Tudo isso numa “vila” construída com casas de hiperadobe (técnica de bioconstrução) e ensinamentos práticos de um mundo possível, onde há fossa de bananeira, filtragem de águas cinzas, banheiros secos (e, se molhado, com água reaproveitada), energia solar, o mínimo de impacto ambiental. 

“Nossa proposta é oferecer uma inspiração para quem está na cidade. O incentivo é a gente voltar para o campo tentando deixar esses hábitos da cidade na cidade”, diz França, também coordenador, em Pernambuco, das Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSAs). “Esta terra é como se fosse uma síntese de toda nossa caminhada e sempre falo: Mahabhumi é um espaço construído com seva, que é serviço, e silêncio. A gente busca muito essa harmonia, essa integração, de respeitar tudo. É uma escola viver num lugar desse porque, o tempo todo, a natureza está te ensinando, mostrando a resiliência que ela tem”, resume Maristela. 

Ao longo do percurso, conhecemos, em Pernambuco, histórias de outros casais que voltaram ao campo com nova consciência. É o caso de Fábia Lima Moura e Cláudio Moura, em Bonito, e de Verônica e Júlio Pinto, em Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife. Como Maristela e França, eles também têm origem rural, quer dizer, elas – ambas filhas de agricultores. Enquanto Paulo Fulô, o pai de Fábia, desconhecia o mal das queimadas e dos adubos químicos, Jones Severino Pereira – o pai de Verônica – fez a transição agroecológica em seu sítio quando ninguém falava nisso, nos anos 1990. 

Jones e Lenir, sua esposa, são considerados pioneiros, no estado, da agrofloresta, tecnologia de cultivo baseada na observação das estratégias naturais de crescimento e manutenção de um ecossistema florestal, onde há equilíbrio. Por conta disso, a família viu a escassez se transformar em abundância, começando pelas abelhas. “A gente tinha vergonha, na hora de preencher a ficha, de dizer que era filho de agricultor. Com a implantação dos sistemas agroflorestais, a gente enchia a boca: ‘Sou filha de agricultor agroflorestal’. Mudou completamente nossas perspectivas, pensamentos, renda. Já não tinha mais a vergonha, era um outro universo, apaixonante realmente”, diz Verônica, geógrafa, professora e agricultora agroflorestal. 

Com instruções do agricultor e pesquisador suíço Ernest Götsch, referência no Brasil dos Sistemas Agroflorestais (SAFs), e colaboração da equipe que fundaria, com ele, o Centro Sabiá, Jones virou educador entusiasta da técnica fundamentada no uso da biomassa vegetal na cobertura e fertilização do solo, que os leigos veem como “mato”, “descuido”. Hoje, o único hectare da sua terra é capaz de produzir mais de 15 toneladas de alimentos por ano, dos in natura aos beneficiados (geleias, polpas, salgados), tudo agroecológico. Após a morte de Jones, em 2017, Verônica, Júlio e os dois filhos saíram da cidade para morar no Sítio São João, onde são atualmente responsáveis, junto a Lenir, pela produção e gestão do que ainda sustenta toda a família. A venda, eles fazem, principalmente, nas feiras do Espaço Agroecológico de Setúbal e das Graças, que Jones e Lenir ajudaram a criar, em 1997. 

Como em Abreu e Lima, a história do Sítio Creuza e Paulo Fulô, em Bonito, se inicia com as abelhas, só que de um jeito especial. Sabemos que as “operárias” fazem verdadeiras mágicas no ecossistema: polinizam flores, catalisando a reprodução de plantas e a geração de frutos e sementes; conectam o sistema, produzindo biodiversidade e equilíbrio; e ainda fabricam mel (como alimento delas). As abelhas também são guardiãs e “nos avisam” sobre alterações bruscas de temperatura, cada vez mais comuns com o aquecimento global. Quando isso acontece, elas se estressam e fazem uma revoada sinalizando o problema (aos que sabem ler). Podem até desaparecer se há muito calor, frio, luz indevida ou fumaça de queimada – é quando enfraquecem e viram comida de outros bichos. São seres extremamente sensíveis, inteligentes e tão ameaçados quanto a vida na Terra. 

Foi justamente o desaparecimento de uma delas que fez Fábia e Cláudio mudarem de vida. Ela visitava o sítio do pai no tempo livre e jamais teve o sonho de morar lá “nem na aposentadoria”. Nessa época, ela ganhou, do primo vizinho, a abelha uruçu-amarela – uma das 32 espécies catalogadas em Bonito – e deixou lá. Num de seus retornos ao sítio, descobriu que tinha sumido. Cláudio, então, intrigou-se e foi pesquisar. 

O “como assim, ela desapareceu?” do casal se tornou, anos depois, projeto de vida, principalmente após a morte do pai de Fábia, em 2015, quando herdaram o sítio. Hoje, Cláudio é agricultor, apicultor, meliponicultor e consultor agroecológico, totalmente apaixonado pelas abelhas. “A uruçu é a que tem mais apego emocional com os moradores antigos daqui, um animal de estimação, como se fosse da família. Muito rica na polinização e na produção de mel, ela harmoniza esse sistema da agricultura e fruticultura. Quanto mais abelhas, mais harmônico tende a ficar”, explica o recém-formado pelo curso técnico de Agroecologia do Serta, do qual Fábia é hoje estudante. 

Foi um professor da escola, Paulo Santana – que faz pesquisa de doutorado sobre as estratégias de transição agroecológica em Bonito –, quem nos levou para conhecer o sítio, numa das poucas apurações presenciais desta reportagem. Na caminhada, ele mesmo vibrava com as artimanhas da natureza – uma árvore que cria seu ponto de apoio numa ladeira, um mamoeiro que se esquiva da sombra, a baronesa que filtra as impurezas da água, um cultivo que avisa quando o “vizinho” vai mal. “Agricultura é viciante. Eu reclamava do meu pai, que acordava às 4h da manhã e trabalhava o dia todo. Aí hoje eu me vejo fazendo o mesmo. Digo que vou ali fazer uma coisa e, dali, me entretenho, é uma terapia, um lugar bom de se estar trabalhando, refletindo, meditando, muitas vezes rezando… Oxe, é bom demais esse contato com a terra, a natureza”, alegra-se Fábia. Atualmente, eles vendem no Mercado da Vida, em Bonito, mantido, junto à prefeitura, pela associação de agricultores agroecológicos da qual fazem parte. Eles trabalham para tornar o sítio sustentável economicamente, pois o projeto é, mais do que nunca, permanecerem lá. 

DOS HORIZONTES
Diz o multiplicador de agroflorestas Namastê Messerschmidt que “na natureza, ninguém faz nada sozinho”. E dá o exemplo do corpo humano como um sistema interdependente: “O coração não vive só”, diz ele em conversa, no Youtube, com a culinarista e apresentadora de TV Bela Gil. Ampliando a analogia, percebemos a cooperação como um valor inestimável – e antigo – às transformações socioambientais do mundo, tendo cada um de nós um papel. 

Se observamos o campo e a cidade, vemos uma falsa oposição a esconder uma relação nada segura de dependência. Por isso, precisamos mudar a perspectiva alheia a uma busca mútua por qualidade de vida. 

“A gente tem que olhar para o campo e entender que ele precisa, sim, de tecnologias e que as pessoas que produzem o alimento precisam trabalhar de forma decente, porque a concepção desse trabalho foi construída sob a égide da escravidão”, argumenta o jovem agricultor de base agroecológica Tiago Edvaldo Santos, de Uruçu-mirim, em Gravatá (PE). Responsável pela CSA de sua cidade, onde também participa da feira e entregas, e pela CSA Boa Viagem, no Recife, ele foi o primeiro de sua família a ter um curso superior (em Agronomia), diploma que botou debaixo do braço para transformar a própria realidade, no retorno à sua casa. 

Como o meio rural, o urbano também está em transformação, porque é necessário. Estão aí movimentos mundiais, como o Transition Towns, por exemplo, a reunir as “cidades em transição” com projetos coletivos de sustentabilidade que as tornem “menos dependentes dos combustíveis fósseis e mais integradas à natureza”. 

“As cidades representam, se você for ver, as pequenas porções de terra do país, muito aglomeradas, que só consomem e pouco produzem. Se a gente produzisse mais, não iria suprir toda a necessidade, porque a gente ainda precisa do campo, mas iria aliviar algumas coisas, tendo uma maior prevenção da saúde, com o uso de ervas medicinais e comidas plantadas no jardim”, defende a artista Ianah Maia, autora dos desenhos que ilustram estas páginas, feitos com pigmentos de terra (geotintas). 

Para Ana Maria Dubeux, professora sênior do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Social da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), a discussão sobre agroecologia começa pela questão do alimento e “uma coisa puxa a outra” – respeito à natureza, saúde, educação e mudança de mentalidade. 

“Quando penso em alimento saudável, penso em agroecologia. Epidemiologicamente, o mundo está morrendo por conta dos impérios alimentares – são poucos dominando o planeta. Eles que constroem a alimentação ultraprocessada, essa coisa de homogeneizar tudo, que a indústria fez e o capitalismo faz cada vez mais, estendendo também aos alimentos. A quantidade de gente morrendo com câncer, diabetes, obesidade, não sei quantas doenças ligadas à questão da alimentação, é absurda. Os dados são pandêmicos justamente”, analisa Ana, lembrando que se alimentar é um ato político.  

No livro Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, o biólogo Rob Wallace ensina, através de artigos feitos desde 2007, “sobre as origens da Sars, da gripe aviária e da gripe suína, alertando que, se os seres humanos não modificassem a maneira como criam animais para abate, teriam que lidar, no curto prazo, com novas formas de vírus cada vez mais mortais. E aqui estamos”, anuncia o texto de apresentação da edição brasileira, de 2020. 

“A gente precisa mudar a nossa relação com o alimento, a forma como nosso país trata a terra, a partir de agrotóxicos e de uma indústria que dá o veneno e o remédio, adoecendo do mesmo jeito. Precisamos mostrar às pessoas que isso deve parar, e isso para quando elas tiverem consciência. Que algumas pessoas possam escolher continuar neste modo de vida, mas que ele não seja regra”, defende a bióloga e profissional da transição Geovana de Oliveira, para quem é fundamental ter essa mudança alavancada pela agricultura agroecológica. 

Em maio de 2020, Geovana coordenou, no Recife, o projeto Mulheres e Soberania Alimentar em Tempos de Pandemia, realizado, durante seis meses, através de apoios e parcerias, com as mulheres de Passarinho, comunidade que guarda a memória de ter sido, um dia, um oásis de rio e mata fechada na cidade. A líder comunitária e feminista negra Edicléia Santos, cofundadora do grupo Espaço Mulher, fala que a experiência das “passarinhas” com agricultura urbana começou em 2015, através de um projeto da Casa da Mulher do Nordeste, e foi aprofundada agora com essa iniciativa da rede, envolvendo 20 mulheres em plantas medicinais, armazenamento e reaproveitamento de água, compostagem e elaboração de uma cartilha contendo os sonhos da comunidade e as lições aprendidas. 

A cartilha Somos todxs passarinhxs, também utilizada em duas escolas da cidade e disponível na internet, traz passagens assim: “Na cidade, a Agricultura Urbana pode transformar os lugares e a vida das pessoas, mas é preciso criatividade e ação: quebrar concreto, reflorestar e resgatar nossas raízes”. “A agricultura urbana veio nos fortalecer e nos fazer conhecer coisas que a gente não conhecia. Ela nos acolhe, faz a gente enxergar longe”, atesta Edicléia. Além disso, “trata as mulheres da depressão, da questão da violência, da solidão e, como a gente agora é um grupo bem conhecido, as pessoas vêm perguntar sobre como cuidar das plantas ou fazer a carne do miolo da jaca”. 

A iniciativa estende-se agora, através da Rede pela Transição Agroecológica, por mais oito comunidades periféricas do Recife, afora Passarinho, como resultado de uma campanha virtual de financiamento coletivo. É uma das revoluções que acontecem, na capital, para mitigar problemas de insegurança alimentar agravados pela pandemia, tendo o olhar no horizonte. Na RMR, inúmeras ações agroecológicas quebram o concreto: da agricultura urbana aos grupos de consumo, seguindo uma tendência das cidades do país. No Nascedouro de Peixinhos, a Horta Popular Agroecológica Dandara, da campanha Mãos Solidárias, do MST junto a várias entidades, é uma semente para outras que virão e uma das ações de combate à fome. 

Crises como a da pandemia da Covid-19 nos ensinam que mudanças devem acontecer no contexto local. “Mesmo a gente entendendo que o mundo está globalizado numa perspectiva, é importantíssimo a gente repensar, no local, novas dinâmicas e modos de vida. É no local onde eu vivo e sinto”, defende a socióloga e educadora popular Alzira Medeiros, que atua, há mais de 30 anos, em projetos de melhoria das condições de vida no campo e na cidade. 

“A gente tem discutido muito que a transformação do mundo começa pelo seu espaço de vida”, acrescenta Paulo Santana, educador popular, economista e coordenador de projetos do Serta. “Como escola, o Serta tem colaborado para a mudança nas concepções das pessoas, que vão desde a perspectiva política, ambiental, social e econômica à cultural, contribuindo para a formação de uma consciência ecológica que possa olhar para o território a partir dos seus projetos de vida”, emenda o professor da escola inovadora que, aliás, tem várias crias jovens, no Recife, participando de projetos de transição agroecológica. 

É o caso da própria Geovana de Oliveira, que, além de ter coordenado o projeto de Passarinho, é articuladora e assessora técnica da Rede pela Transição Agroecológica, um movimento liderado por jovens biólogos como ela, nascidos do chão do SAFe/UFPE. O coletivo é responsável, desde 2010, pela mobilização e criação de uma agrofloresta no campus da universidade, como instrumento de aprendizado prático dos estudantes. “A rede é uma porta para que as plantas possam ser as nossas professoras nessa transição agroecológica. Quem gosta de cuidar de planta sabe: a gente cuida delas e elas cuidam da gente 10 vezes mais”, diz a bióloga Mariana Maciel, cofundadora da rede, com quase 50 pessoas. 

“A juventude está nessa luta junto a pessoas que já estão aí na resistência há muito tempo. A gente está neste momento de conseguir falar com as pessoas, de trazer essa pauta, porque é agora ou nunca. Me sinto muito contente de fazer meu canto ecoar”, diz Geovana. “Estamos caminhando para uma construção. Não é utopia, é algo possível.” 

“A transição carrega dentro de si a utopia, não no sentindo do inalcançável, mas do processo. É saber que não existe um ponto final, quando se fala de sistemas sustentáveis, o equilíbrio é sempre uma busca”, sugere Davi Fantuzzi, assessor técnico de mercados para a agricultura familiar e poeta. “Nem todo mundo vai viver no campo, então, é preciso pensar numa vida mais sustentável para quem está na cidade também. Quem produz deve olhar uma forma de gerar menos impactos, quem consome deve pensar em menos produtos que agridam o meio ambiente e consumir do local, gerando um círculo virtuoso para que o recurso retorne à economia local”, acredita ele, que é uma das cabeças envolvidas na concepção da cooperativa Agroecoloja, no Recife. 

Para a professora Ana Dubeux, os consumidores e os cidadãos comuns têm um poder Enorme, mas precisam se organizar. “Uma cidade não entra em transição se não tiver organização coletiva”, pontua ela, atualmente radicada na França, onde assiste a um movimento, cada vez mais intenso, de grupos de consumo e jovens saídos dos grandes centros para virar agricultores no campo. 

“O futuro é uma mistura do resgate com o moderno, aproveitar o que tem de bom na nossa sociedade, a internet, a tecnologia, a ciência e colocar tudo isso a favor desse resgate de como os povos ancestrais viviam, porque a gente não está mais preparado para viver na mata como os indígenas. A gente vai ter que reflorestar e purificar as águas, e a ciência vai ser muito preciosa, mas uma ciência comprometida com a vida e que reconheça, de verdade, essa tecnologia ancestral”, projeta Mariana, que, ainda assim, defende que muitas pessoas devem migrar da cidade para o campo. 

Vinda do Pará para viver no Recife, Matheusa dos Santos, de 23 anos, dá o seu recado, a partir do lugar de fala de preta e indígena egressa do Serta: “Não tem como falar em agroecologia sem falar de processos de retomada desses campos de tecnologia alternativa e o reconhecimento deles como um campo dos povos originários. A maior parte da agroecologia é feita por pessoas brancas cisgêneras e sinto que minha geração é uma geração que fala sobre isso. E isso pode ser feito de diversas formas e tem que tocar o campo filosófico, para além da matéria. Que antes de você colocar uma semente no chão, existe uma jornada, existe um caminho”.

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista e natureza, como você.
IANAH MAIA, artista de arte, afetos e agroecologia.

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