ILUSTRAÇÕES RAYANA RAYO
04 de Dezembro de 2020
Ilustração Rayana Rayo
[conteúdo na íntegra na impressa e digital | ed. 241 | janeiro 2021]
contribua com o jornalismo de qualidade
Leia ouvindo nossa playlist de sonhos
“– Mãe, eu absorvi todo o conhecimento do mundo dormindo.
– Como foi isso?
– Sonhando.”
Vicente, 11 anos, dezembro de 2020
“Ninguém que se ocupe de sonhos pode, creio eu, deixar de descobrir que é fato muito comum um sonho dar mostras de conhecimentos e lembranças que o sujeito, em estado de vigília, não está ciente de possuir.”
Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos, 1900
“As ilusões estão para a alma como a atmosfera para a Terra. (…) A verdade nos destrói. A vida é um sonho. É o despertar que nos mata. Aquele que de nós rouba os sonhos também nos rouba a vida.”
Virginia Woolf, Orlando – Uma biografia, 1928
Nos seis meses que separam a reunião de pauta em que esta reportagem começou a ser delineada e sua publicação na primeira Continente de 2021, o tema dos sonhos estava em todo lugar, não somente nas conversas virtuais de uma redação apartada do convívio diário (como de resto estavam, muito provavelmente, as equipes de trabalho do planeta inteiro), mas também em projetos que buscavam compilar os devaneios oníricos a transcorrer no isolamento social, em livros e podcasts, nas sessões de análise com o Google Meet a substituir o divã e em filmes que, com sua lente hiperbólica ficcional, ajudavam-nos a ruminar a (hiper) realidade de uma existência ameaçada pela pandemia do novo coronavírus.
“A vida é um sonho”, determina a escritora inglesa Virginia Woolf em Orlando – Uma biografia, ecoando o que o dramaturgo e poeta espanhol Pedro Calderón de La Barca vaticinara quase três séculos antes, ao estrear A vida é sonho. Entre a lendária peça de 1635 e a libertária saga de um lorde inglês que se transforma em mulher, escrita por Woolf como uma carta de amor a Vita Sackville-West em 1928, houve A interpretação dos sonhos, arquitetada por Sigmund Freud em 1900 para instaurar a paisagem onírica como “via régia” ao inconsciente. E antes de tudo, no entanto, já se fincavam as religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo, islamismo – a conceituar, a partir das experiências transcorridas durante o sono, um mecanismo de acessar os deuses, interpretar passado e entrever futuro, e se lastreavam religiões e tradições milenares – hinduísmo e budismo – a conceber o que se passa na mente ao dormir como um portal para aguçar a nossa própria consciência.
“Sonhar é como tatear o quarto escuro com uma nesga de luz, quando as paredes são o próprio futuro”, fraseia o neurocientista Sidarta Ribeiro em O oráculo da noite (2019). “Por que sonhamos?”, indaga este pesquisador e vice-diretor do Instituto do Cérebro/ICe da UFRN no primeiro capítulo deste volume que, ao me ser dado de presente, conflagrou a discussão naquela reunião de pauta remota.
Na casa da gestora pública Marcela Molina, a pergunta não é “por que sonhar?” e, sim, “como não amar os sonhos ou tentar decifrá-los?”. “Em 2019, botei uma meta de anotar os sonhos, então dormia com um caderninho do lado para tentar interpretar aquele conteúdo carregado de muitos signos”, lembra. Na capa do seu caderno, uma nadadora na iminência do salto, símbolo apropriado para o mergulho em si que caracteriza o hábito de sistematizar as memórias oníricas. “Falar dos sonhos faz parte do cotidiano com meu filho. Toda manhã, eu pergunto o que ele sonhou. E ele me devolve a mesma pergunta. É um ritual”.
Ernesto, seu filho, completou três anos em setembro de 2020, um mês depois que ela sofreu um aborto espontâneo. Em Esotérico, música de Gilberto Gil que Marcela adora, há um verso recorrente em sua mirada para tudo – “mistério sempre há de pintar por aí”. Ao enviar fotos do seu caderninho para a Continente, ela descobre – a pandemia havia embotado essa lembrança – que, das anotações de novembro/2019, constavam duas entradas proféticas: “24 de novembro (lua minguante): gravidez complicada na Laurindo Coelho (rua em Casa Forte, na zona norte do Recife, onde ela morou na infância e adolescência). 25 de novembro (lua nova): nascimento de menina prematura, ficava tudo bem”.
“Não estava grávida e nem sonhava em estar!”, exclama. “Descobri minha gravidez em julho de 2020. Tive muitos pesadelos durante as duas semanas em que soube que estava grávida. Quando abortei, acordei de madrugada sonhando que estava sangrando, mas fui ao banheiro e vi que não havia saído sangue algum. Achei que era o meu inconsciente com medo de perder o bebê e voltei para a cama, mas, duas horas depois, comecei a sangrar. O sangue é a fase final do processo de abortamento, então nem achei que era bruxaria, e, sim, o corpo sabendo que algo estava fora da ordem. Depois que abortei, tive a minha primeira noite de sono tranquilo”, conta. Como no sonho do ano anterior, ela pressentia que era uma menina e chegou a escolher um nome: Ava.
O oráculo da noite está repleto de relatos afins, enfeixando a leitura com “bruxarias” conjuradas por tudo que envolve o ato de sonhar, com coincidências e premonições, e com a imbricação fantástica dos sonhos na urdidura dramática da nossa própria vida. “Ontem eu tive esse sonho, nele encontrava com você, não sei se sonhava o meu sonho ou se o sonho que eu sonhava era seu… Um sonho dentro de um sonho e eu ainda nem sei se acordei…”, canta a Nação Zumbi em Um sonho, canção de 2014, a mais popular no ranking da banda pernambucana no Spotify (com 12,4 milhões de audições).
Evoco os versos da NZ quando entrevisto Sidarta Ribeiro em outubro de 2020 e indago sobre a sua escrita das elucubrações – bioquímicas, neurais e psicológicas – transcorridas durante o sono REM (rapid eye movement), a fase em que mexemos os olhos com rapidez e nos rendemos ao sonho. “A gente já sonhava antes de ser capaz de escrever”, responde, antes de falar sobre a concatenação da fascinante teia acerca da “história e a ciência do sonho”, o subtítulo do seu livro.
“Os sonhos entraram na minha vida muito cedo e tiveram muita importância, da infância à idade adulta, mas não pensava que ia estudá-los. Isso foi uma descoberta do início do doutorado, quando cheguei a Nova York e tive uma extrema dificuldade. Não conseguia entender as pessoas, nem acompanhar as aulas, e sentia um sono avassalador. Depois de um tempo, decidi me render àquilo, dormir e sonhar. Quando o inverno acabou, tudo mudou. Descobri que esse processo adaptativo foi crucial para minha chegada”, rememora o brasiliense, graduado em Biologia, mestre em Biofísica, doutor em Comportamento Animal e pós-doutor em Neurofisiologia. Listar suas credenciais é uma pista para apreender o volume das ciências coligadas em O oráculo da noite.
Em 459 páginas, viajamos, com deleite, por civilizações antigas, mitologias ameríndios, pela Babilônia, Suméria, Egito, Acádia, pelos proféticos sonhos dos césares do Império Romano, pelos xapiri dos yanomamis, pela evolução biológica, por centenas de pesquisas a empilhar dados e dados na torre de conhecimentos científicos e por Freud e sua vanguarda na vinculação das narrativas oníricas aos “restos diurnos” e elementos do inconsciente… Fãs da psicanálise vão apreciar, via Sidarta, que levou quase um século para a ciência aquiescer ante as postulações de quem, ao analisar icônicos relatos como o do homem dos lobos e da injeção de Irma, escancarou uma janela nunca mais cerrada.
“Com a perspectiva do tempo, Freud e Jung cada vez mais se firmam como verdadeiros pioneiros da etologia humana, honoráveis cumpridores da profecia feita por Konrad Lorenz logo após o fim da Segunda Guerra Mundial: por mais que fosse difícil aceitar suas teorias, seria impossível ignorar suas descobertas”, teoriza o autor na página 346, detalhando algumas dessas agora já denominadas certezas: “Os sonhos não se reduzem ao sono e refletem traços de memórias adquiridas na vigília. Memórias podem ser suprimidas. Sem a atividade de circuitos dopaminérgicos envolvidos no desejo não existe sonho. Relatos de sonho são particularmente informativos sobre o estado psiquiátrico do paciente”.
E tais relatos, tais narrativas produzidas na nossa mente, nos constituem e nos acompanham, às vezes por anos e décadas a fio. Nas ilustrações dessas páginas, por exemplo, os traços de Rayana Rayo lapidam as imagens de um sonho que ela teve aos 13 anos, no qual nadava na piscina do colégio, contígua ao Rio Capibaribe, onde aparecia um jacaré que a amedrontava e do qual ela tentava fugir. Quando conseguia sair da piscina, já estava em casa e entrava num quarto onde seus irmãos estavam com vários filhotes caninos.
Nos últimos cinco anos, C, uma senhora recifense de 77 anos, frequentemente sonha com o perigo de uma enchente: “Preciso passar para o outro lado depois da inundação e tenho que observar o tempo da maré. Às vezes, estou no meio do caminho e a maré enche e fico no meio da inundação. Acordo apavorada, sempre com a sensação de uma enchente por vir e eu não conseguir escapar. A angústia persiste por um bom tempo”.
Nas semanas que antecederam o fechamento deste texto, ao decantar as impressões das entrevistas e catalogar referências como os aterrorizantes sonhos de Laura Palmer com BOB em Twin Peaks, de David Lynch, ou a voz de Ella Fitzgerald em Dream a little dream of me e Roberto Carlos em O quintal do meu vizinho, constatei que minha irmã e eu trazíamos a mesma impotência que riscava sonhos da infância e nos ladeava no cotidiano adulto: sonhávamos que precisávamos correr, escapar de algo, acelerar radicalmente o passo, mas as pernas não obedeciam ao nosso comando. Em mim, sentia dores que, ao despertar, permaneciam alguns minutos como injeções subcutâneas nas minhas panturrilhas. Então Marina me revelou que até hoje tem essa mesma experiência recorrente, mudando os cenários, mas mantendo a agonia de paralisação.
Se a sensação era a mesma, a forma sempre haveria de diferir, pois os sonhos são um filme exclusivamente nosso, em que desempenhamos todas as funções do set e somos a única audiência. Essa metáfora me é sugerida pela psicanalista Susana Mello. “Uma vez, um paciente me contou um sonho e me perguntou o que eu achava. Respondi: ‘O diretor é você, o roteirista também, você escolheu todos os personagens, então posso até lhe acompanhar no relato, mas quem inventou tudo isso foi você’”, comenta Susana, psicóloga de formação, associada ao Círculo Psicanalítico de Pernambuco e atraída por esse tema que lhe cutuca o juízo, “principalmente no canto do inconsciente que eu acho mais fascinante: no sótão!”.
Ela alude a Olho de peixe, uma composição do pernambucano Lenine do álbum homônimo, de 1993. “Ele canta ‘se na cabeça do homem tem um porão, onde moram o instinto e a repressão, diz aí, o que é que tem no sótão?’. Todo mundo sempre fala do inconsciente como o lugar das ameaças destruidoras, dos bichos assombradores, das porcarias e lixos que não queremos olhar. Quase ninguém costuma gastar tempo na ideia do inconsciente como fonte inspiradora da criação, lugar de liberdade, de soltura das amarras, de ‘livre pensar’… Um lindo quarto dos fundos, de saídas para que possamos ampliar nossa compreensão de nós mesmos. O sonho é um caminho régio para o inconsciente, então quanto mais relaxamos a autocensura, mais acesso temos a isso que somos nós. Para nos comunicar com esse sótão, é uma via interessante”, observa a psicanalista.
O sonho do Sidarta é o episódio #37 da Rádio Escafandro, podcast quinzenal concebido e apresentado pelo jornalista e escritor Tomás Chiaverini. Entrou no ar no último 28 de outubro, quando já fazia 16 meses que O oráculo da noite chegara às prateleiras, mas sem diminuição do apreço pelo livro e pela temática. “É um episódio superescutado. As pessoas gostam muito. A minha ideia inicial era ter Sidarta como um dos entrevistados, mas li o livro, achei fascinante e a conversa foi tão legal que na montagem decidi fazer só com ele. A experiência pessoal dele mudou toda a sua carreira acadêmica e o livro mostra que é o sonho que fixa a memória. E a fixação da memória permite que a gente construa toda a nossa cultura. Toda a nossa civilização, portanto, está ligada ao sonho e ao sono”, pontua Tomás.
Sidarta sabia disso, mas, lá atrás, quando deixou Nova York, sabia também que seria “um processo superlongo” perseguir a quimera de erigir essas pontes que alicerçavam civilização, memória, cultura e inconsciente. “No início do pós-doutorado, com mais tempo só para ler, comecei a pesquisar e ver que era possível contar a evolução da consciência humana usando o sonho e o sonho como fio condutor. Percebi que era verdade, mas que não tinha sido feito ainda não porque faltavam peças no quebra-cabeça, e, sim, porque o quebra-cabeça era muito grande. Eram fatos demais para se juntar numa ordem correta para poder fazer sentido. Decidi que, todo domingo, eu ia começar a escrever isso, numa coisa totalmente diletante. Essa bagunça durou de 2001 a 2007”, recorda.
Sem internet, ele sabe, a missão seria impossível. Com esse “bagunçado baú de tesouros”, voltou ao Brasil, escreveu o primeiro capítulo e assinou um contrato com outra editora, sem pegar “adiantamento nenhum”. Entre idas e vindas, como sonhos que cessam de aparecer por alguns anos e depois retomam suas visitações ao nosso córtex cerebral, viu ruir, na cordialidade, o acordo com a primeira casa editorial – “a vida é o que acontece”. Redigiu outro livro, Limiar, e estava em uma feira literária quando foi abordado por Lilia e Luiz Schwarcz, fundadores da Companhia das Letras. Sidarta, morando no Rio Grande do Norte, foi convidado a ir a São Paulo. “Não posso, respondi, e os chamei para vir a Natal. Eles também não podiam, então sugeri: vamos nos encontrar no Recife.”
A gênese de O oráculo da noite, pois, deu-se em meados de 2015, na capital pernambucana, onde ele havia passado férias e sonhado durante sua adolescência. E nos quatro anos que apartam o jantar no Recife do lançamento, seu segundo filho nasceu, sua mãe morreu – ela escolhera seu nome inspirado no Sidarta Gautama, que meio milênio antes do nascimento de Jesus Cristo se tornou o primeiro Buda – e inúmeros acontecimentos, como um golpe de Estado e a eleição de um presidente de extrema-direita cujo ídolo é um torturador, modificaram a vida, e os pesadelos, no Brasil.
Muito mudou, mas a mente de Sidarta Ribeiro, contudo, não estaciona. Em 6 de outubro de 2020, mesma data em que conversou por telefone com a Continente, o chefe do laboratório Sono, Sonhos e Memória do Instituto do Cérebro publicava um artigo na revista Frontiers in Psychology, assinado junto a outros cinco pesquisadores e intitulado The dream of God: How do religion and science see lucid dreaming and other conscious states during sleep?. Aspectos do judaísmo, cristianismo, islamismo, budismo, hinduísmo e espiritismo são repassados sob a perspectiva do “sonho de Deus”. Lucid dreaming, que combina atmosferas do sono REM com a atenção da vigília, pode muito bem ser o que o personagem de Leonardo DiCaprio atinge em A origem (2010), de Christopher Nolan. Muito antes da pirotecnia visual do cinema, entretanto, as religiões e tradições espirituais já propunham inserir a atividade de sonhar, lúcida ou não, no patamar mais elevado da existência.
***
Poucos dias antes de entrar em um retiro de silêncio no Centro de Estudos Budistas Bodisatva – CEBB, na unidade de Timbaúba, Vinícius Paes Barreto me ensina sobre a ioga dos sonhos ou milam. “O budismo é uma tradição espiritual, mais antiga do que o cristianismo. Surgiu no contexto da Índia, da cultura brâmane, extremamente espiritualizada, e traz muitos elementos que já existiam, como a prática da meditação, mas seguiu por uma outra forma. Não é uma religião, como muitos acham, e, sim, um caminho espiritual, uma filosofia em busca da verdade. O Dalai Lama é um líder espiritual, mas não institucional, como um papa na Igreja Católica”, explica o psicoterapeuta, há uma década praticante do budismo e facilitador de práticas budistas no CEBB, fundado pelo Lama Padma Samten. “No budismo, a nossa mente é a base de todas as experiências, do sofrimento à felicidade, inclusive o sono, quando essas experiências são intermediadas pelos sonhos. Quando mergulhamos no nosso primordial, ganhamos acesso a dimensões profundas. É como um telescópio voltado para dentro”, diz.
Sonhos se alinhavam à gênese budista desde que esse caminho espiritual emergiu em 463 a.C., ao sul do Nepal. Maya, a mãe do príncipe Sidarta, sonhou que um elefante branco com várias presas entrava em sua barriga. Ele próprio, após renunciar à opulência da corte “em busca da verdade”, teria sonhado como muitos pássaros a voar em sua direção na noite de sua iluminação. Assim como sua mãe entendeu que seu filho seria especial antes mesmo de engravidar, o Buda Shakyamuni, como ele se tornou conhecido (do páli buddha, “desperto, iluminado, o que compreendeu, o que sabe”), sabia que era apenas um condutor. “Consta que, antes de partir, ele disse aos discípulos: ‘O Buda não morre, pois é a verdadeira natureza”, aponta Vinícius.
E essa verdadeira natureza estaria em tudo, nas plantas, nos seres visíveis e invisíveis, nos rios e, principalmente, em nós. Para experimentá-la, meditar, silenciar, sonhar. “Dentro do caminho espiritual budista, a ioga dos sonhos é um trabalho que nos leva ao plano dos sonhos, a despertar, lucidamente, dentro deles. É uma das vias para desenvolver aquele telescópio e se aprofundar para acessar e pesquisar você mesmo. Com esse método, removemos os véus e mergulhamos nas dimensões profundas. Junto a outras práticas, como a respiração e um modo de vida ético, essa capacidade de discernimento nos sonhos nos ajuda a ter paz interior”, vaticina Vinícius.
Um sonho deu a Tiago Nery, um baiano então radicado em São Paulo, a certeza de que, para obter paz interior, era hora de “seguir o chamado”. Nascido e criado no Rio Vermelho, bairro de Salvador onde o 2 de fevereiro exulta em azul e branco na Festa de Iemanjá, ele era um cético. “Morava praticamente em frente à casa de Iemanjá e perto da Igreja de Nossa Senhora de Santana, a mãe de todos, sendo que Iemanjá também é mãe no panteão africano. Eu era atravessado por tudo isso, mas sempre fui ‘preto no branco’, inclusive nos sonhos. ‘Até dormindo, eu estou acordado’, costumava dizer para a minha família”, conta ele, numa conversa por telefone numa manhã de dezembro de 2020.
Em 2017, Tiago viajou e deixou o carro estacionado na frente do prédio de uma amiga, com guias de Oxóssi e fitas do Nosso Senhor do Bonfim penduradas no retrovisor. Primeiro, essa amiga – vamos chamá-la de I – sonhou com uma voz que lhe orientava a cuidar do “menino de Oxóssi”; depois, sonhou que ele era um índio dentro de uma mata. “Ela me disse ‘acho que você precisa tomar um banho de folhas, mas aceita se você quiser’. Pesquisadora, doutora, da ciência mas também desse universo, ela me levou através dos sonhos”, lembra ele, que passou a ter “materializações espirituais” nos sonhos.
“A virada de chave e o renascimento espiritual” vieram quando I e Tiago compartilharam um chamamento onírico. “Sonhei que estava dentro de uma oca, como um índio nu, e nessa oca estava deitado no chão de palhoça, mirando o teto, que formava uma claraboia em direção ao céu. O céu era a claridade depois desse buraco estreito”, esmiúça Tiago. Ao relatar o enredo para I, descobriu que haviam sonhado a mesma história. “Interpretamos que começava ali uma fase de mudanças, que eu precisava fazer aquela passagem para alcançar outras histórias. Em uma semana, deixei São Paulo, me desvencilhei de pessoas e voltei para Salvador. Hoje sou outra pessoa.”
Na capital baiana, Tiago frequentava com assiduidade, antes da pandemia, a Tenda Umbandista Jornada Espiritual, sob regência de Pai Paulo, e o Ilê Axé Opô Aganju, terreiro de Xangô do babalorixá Pai Balbino de Paula Obaraí. Praticante do candomblé e da umbanda, ele argumenta que é no sonho que somos abraçados pelos orixás. “Sonhos são manifestações da intuição e representações da mediunidade. Todos nós temos alguma mediunidade, que pode ser trabalhada de muitas formas. Não vejo nem ouço os pretos velhos, as pombagiras e as entidades, mas os orixás se conectam comigo nos sonhos. Essa é a minha abertura com a espiritualidade. Toda segunda, peço a Exu para abrir e fechar caminhos e começo a ter visões que o orixá acopla na minha mente. Quando sonho com Oxumaré e quero confirmar a mensagem, peço ao babá para jogar os búzios. E tudo aparece no ifá”, elucida.
É curioso e instigante divisar como, para além do cânone religioso ou intelectual e das robustas engrenagens fisiológicas, os sonhos se consolidam como a canalização do que escapa à racionalidade. Pois também no espiritismo o devir onírico se abre para a mediunidade. Ao encontrarmos os parentes já falecidos, os enredos fogem do enquadramento cartesiano e tendem a soar como a mais arrojada ficção científica, porém a ternura se mescla à consternação para nos invadir e mitigar a saudade. Na temporada 17 de Grey’s Anatomy, Meredith (Ellen Pompeo) padece de covid-19 e, no delírio, reencontra o marido Derek (Patrick Dempsey) em uma praia deserta, sabendo que ele está morto e que ela, bem… Cenas do porvir na série que é a quintessência do melodrama televisivo.
Com 60 anos de idade, e 40 de prática, Roberto Araújo é espírita desde que veio ao mundo. A mãe pertencia à doutrina proclamada por Allan Kardec no século XIX e pequeno ele já circulava pelas salas da Federação Espírita Olindense, onde ainda atua voluntariamente. Ele nos instrui que existem três tipos de sonhos no espiritismo: “O primeiro é o orgânico ou mecânico. Antes de dormir, você comeu uma bela feijoada e encheu seu organismo de alimentação, então o espírito vai precisar ajudar na digestão. Você vai sonhar, mas de uma forma mecânica. O segundo tipo é o influenciável, que acontece depois que você estava vendo um bom filme. Quando for descansar, vai se impressionar e revivê-lo no sonho. E o terceiro é o sonho real, que vem quando, antes de dormir, você faz sua prece ou oração, lê a Bíblia ou o Evangelho, se prepara para descansar o corpo e pede aos seus guias e anjos da guarda que lhe concedam um aprendizado ou uma visita do outro lado”.
Entre agosto e outubro de 2020, enquanto sua mãe estava em coma em um hospital recifense, a advogada Liana Queiroz dormia pouco, diversas noites sob o auxílio de medicamentos. E sonhava. “Nas semanas em que ela estava internada, sonhava com ela saindo do coma, toda elétrica. Logo depois do velório, sonhei que ela estava viva e voltava a trabalhar, e aí as pessoas me questionavam porque eu tinha dito que ela havia morrido”, repassa. No exato dia em que se completaram dois meses da morte de Simiramis, Liana sonhou com a mãe e todas as tias: “Só que elas eram mais jovens. Era como se fosse outra época, mas para mim era 2020 e ela não tinha morrido. Eu ficava querendo ficar perto dela o tempo todo, agarrá-la, e ela falava comigo sem entender nada”.
“No sonho real, somos retirados do corpo e visitamos as paragens celestiais”, prossegue Roberto, “mas o que lembramos é apenas um lampejo. Dormimos oito horas, mas quando vamos contar o sonho, são cinco minutos de conversa”, diverte-se. Segundo ele, “a saudade forte” pode fazer com que os espíritos dos que já desencarnaram façam uma visita.
Conto para ele o caso de D, que ficou triste e enlutada pela partida de um amigo próximo. Sonhou que se encontrava com ele e sua aparência estava ótima. Ele dizia: “Eu sei que você está pensando em mim”. Ela perguntava: “Como você sabe?”. Ele respondia: “Porque você mandou uma mensagem para minha irmã”. Quando falou com a irmã, para quem de fato havia enviado uma mensagem, D soube que uma outra pessoa havia sonhado com ele e feito a mesma pontuação: a de que ele estava com uma cara feliz. “Pode ocorrer, sim, e se duas ou mais pessoas sonham, é real a visita dele para conosco”, define Roberto.
Há seis anos, seu irmão acabara de fazer sua passagem e havia um imbróglio à espera de resolução: divorciado, ele queria ter garantido que a casa ficaria com os filhos, mas morreu brigado com a ex-mulher. “A casa dele é aqui no mesmo terreno onde eu moro. Quando ele desencarnou, o empecilho era uma briga terrível. Em sonho, ele me procurou para ajeitar essa situação, já que a ex-esposa não falava com a família. Intervim e hoje está tudo conciliado: ela mora aqui atrás com os meus sobrinhos. Nunca mais sonhei com ele ”, revela Roberto. Ele ressalta que não é um médium “especial, apenas o mais apto a resolver a situação”: “‘Dai de graça o que de graça recebeste’, diz o Evangelho, então penso que os que quiserem estudar e desenvolver a sua mediunidade estarão fazendo um trabalho em prol do próximo. Todos nós somos médiuns".
A mediunidade está nas sincronias: pensar em alguém e em seguida esbarrar na mesma pessoa, fisgar a memória de uma amiga que lhe telefona simultaneamente, sonhar com um bem-querer que talvez necessite de amparo. Quando a pesquisadora Clarissa Galvão foi passar uma temporada na Colômbia, em 2019, lia Um defeito de cor, a obra seminal de Ana Cristina Gonçalves publicada 13 anos antes. E aí seus sonhos catapultaram-se a uma outra dimensão.
“Um defeito de cor é um livro que tem uma energia circulando, uma relação muito forte com a espiritualidade, com as religiões de matriz africana, e essa espiritualidade permeia a história das personagens. Sonhava muito durante a leitura e, quando apareciam algumas pessoas, era como uma seta. Quando eu entrava em contato, elas estavam passando por alguma coisa: era o aniversário de uma, outra que estava precisando de ajuda. Como se fosse um chamado, um afloramento de abertura dessas conexões”, deslinda.
Contribuindo para atiçar essas conexões e cromatizar ainda mais as sempre muito vívidas narrativas imagéticas da sua mente – passarelas de golfinhos e tsunamis, conspirações na Rússia ou burocracias kafkianas na universidade – está o medicamento antidepressivo que ela toma desde 2018. “Deixou meus sonhos muito mais vivos.” Pergunto ao psiquiatra e professor da UPE Juliano Victor Luna sobre esse elo entre substâncias como o oxalato de escitalopram e os sonhos mais cinematográficos.
“O sono se estrutura nas fases N1 > N2 > N3> REM e é tradicionalmente na fase REM, quando toda a musculatura está paralisada, menos os olhos e o diafragma, que sonhamos. Mas, a rigor, não dá para cravar porque dormimos ou sonhamos. Sabemos que existe o ritmo circadiano, de alternância entre luz e escuridão, e que a luz inibe o sonho, mas por quê? Alguns estudos apontam que antidepressivos que agem sobre a serotonina, como o escitalopram, podem, apesar de, no geral, diminuírem a quantidade do sono REM, facilitar o estágio 1 dessa etapa, em que a musculatura não está tão paralisada assim. E assim a pessoa se sente como se estivesse caminhando, em uma realidade mais intensa. Mas não faço a menor ideia do porquê”, responde.
O oráculo da noite pode ter desnudado muito da arqueologia e arquitetura oníricas, mas alguns enigmas persistem.
***
Na primeira semana de dezembro, prestes a redigir estes parágrafos sob signos e símbolos infinitos, conheci o artista visual amazonense Denilson Baniwa em uma gravação para o Trópicos, o podcast da Continente, e logo o tema nos fisgou. Dias depois, via WhatsApp, com ele de Barcelos, no Rio Negro, engatamos uma conversa sobre o sonho como marcador identitário. “Para o meu povo e para mim, o sonho é importante para tudo. Itápoli – lê-se rítápori – é o sonho; nhitápoli é o sonho específico das pessoas durante o sono. O nome Baniwa (baniua) foi uma denominação dada pelos brancos, mas a gente mesmo se chama de Wakoenai ou Medzeniako, que significa, respectivamente, ‘aquele que pertence ao mesmo tipo de gente que eu’ e ‘aquela gente que fala a mesma língua e se entende’”, ele me disse.
Na cosmogonia baniwa, existem sonhos fundadores. Em um deles, “o pajé virava uma andorinha e sobrevoava uma grande extensão de terra quando via chegar um grupo de pessoas diferentes e com uma pele muito estranha. É o sonho que precedeu a chegada dos primeiros brancos ao nosso território”. E existem cerca de 25 mundos pelos quais é possível transitar. “Antigamente, conseguíamos andar por esses mundos e trocar ideias. Em determinado momento, perdemos essa conexão e o acesso só é feito através dos sonhos”, condensa Denilson. Em novembro de 2018, ele se inquietou ao visitar uma exposição e, na mesma noite, ao sonhar com o “Pajé-Onça”, sentiu-se impelido a agir. A performance Pajé-Onça hackeando a 33ª Bienal de Artes de São Paulo pode ser vista no YouTube.
Tal convicção de que os sonhos se imiscuem nos processos criativos é como um laço “medzeniako”, abarcado por muitos. Para gravar Adupê Obaluaê, faixa do álbum Do meu coração nu, o pianista e compositor pernambucano Zé Manoel precisou apenas dormir. “Sonhei com a melodia e a letra. Sonhei com o refrão. Aí peguei o gravador e já gravei”, contou à Continente Online. Para eleger a alcunha a lhe rebatizar pela vida inteira, o filósofo espanhol Paul. B Preciado se jogou em “uma série de rituais xamânicos”. “Entreguei-me à travessia. Foi assim que, finalmente, sonhei com meu novo nome”, narra em Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (2020).
Na travessia pandêmica no Brasil, uma pesquisa reúne profissionais da UFMG, da USP e da UFRGS, com a colaboração do ICe da UFRN. “Somos um grupo de psicanalistas, pesquisadores e escritores interessados nos sonhos confinados em quarentena. Tem um sonho para contar?”, convoca o perfil @sonhosconfinados no Instagram. A relevância dessa partilha se ancora, também, no que Sigmund Freud preconizava em A interpretação dos sonhos. “Não é o sonho que está lá, íntegro, com o seu sentido, mas, sim, o que vamos dele falar, pois, ao mesmo tempo em que estamos produzindo essas imagens, construímos as associações. Esse também era um chamado de Freud: quem dá sentido ao sonho é o sonhador. Podemos seguir as pistas dessa experiência com menos amarras na realidade e aproveitar esse material para novas interrogações”, opina a psicanalista e psicóloga Júlia Coutinho.
“A noite era uma possibilidade excepcional”… De Onde estivestes de noite, o conto-título da compilação que Clarice Lispector publicou em 1974, irrompe uma feérica sucessão de aventuras como os mais livres sonhos. Em dezembro de 2020, no centenário do seu nascimento, a escritora que radiografava a alma nos deu uma fenda para acreditar nas selvagens extravagâncias da mente, adormecida ou desperta, sempre pronta a sonhar:
Epílogo
Tudo o que escrevi é verdade e existe. Existe uma mente universal que me guiou. Onde estivestes de noite? Ninguém sabe. Não tentes responder – pelo amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus. A-Deus.
EXTRAS:
Leia artigo artigo The dream of God: how do religion and science see lucid dreaming and other conscious states during sleep? (em inglês)
LUCIANA VERAS, jornalista, repórter especial da revista Continente.
RAYANA RAYO, artista plástica.a