Por outro lado, toda a história das artes cênicas europeias nos mostra que artistas, intelectuais e acadêmicos/as sempre recorreram a culturas estrangeiras – para não dizer exóticas – para se retroalimentarem artisticamente. No Brasil, não seria diferente com os jesuítas e, posteriormente, os bandeirantes, os folcloristas e os devotos da cultura popular, porém, de forma endógena e sob o manto da democracia racial. Há algumas décadas, por exemplo, vemos artistas-pesquisadores/as nominando o cavalo-marinho pernambucano de “commedia dell’arte brasileira”, “teatro popular do Nordeste”, “teatro popular de máscaras”, dentre outros termos que remetem a uma hegemonia cênica eurocentrada, assim como pesquisas que misturam bufões com orixás, clowns com cavalo-marinho, nego fugido com Brecht, commedia dell’arte com pombo-giras, buscando conexões que aportem progresso e contemporaneidade em termos técnicos, poéticos e estéticos tão somente às artes cênicas, sob o manto da decolonialidade.
A partir do exposto, a questão do revisionismo no teatro brasileiro também pode ser um engodo, assim como vem sendo o uso das noções da corrente decolonial latino-americana, que prega uma revisão dos cânones artísticos da cena, utilizando as práticas culturais afro-brasileiras e indígenas, como se fossem a salvação das artes cênicas, sem questionar as formas como esses trânsitos se dão, as contrapartidas feitas nos intercâmbios entre artistas e sociedades subalternizadas e seus usos e abusos sobre a cena, que vão da imitação de rituais afro-indígenas à retroalimentação estética de companhias e grupos de teatro, dança e performance. Quando questiono a ideia de revisionismo no teatro é por conta de que tais trânsitos entre artistas-pesquisadores/as e agentes de cultura não levam em conta discussões sobre racismo, negritude, branquitude, democracia racial e apropriação cultural e, geralmente, tangenciam as discussões a partir de um referencial eurocêntrico. Falar em revisionismo ou decolonialidade no âmbito das artes em geral e das artes da cena em particular, sem tocar nestas questões, é manter os lugares de privilégio e poder já sedimentados desde o Brasil colônia, nos quais há uma elite artístico-acadêmica que dita as normas estéticas e conceituais das cenas profissionais, muitas vezes utilizando e usurpando saberes ancestrais das culturas afro-indígenas brasileiras.
Cavalo Marinho Estrela de Ouro (2018). Foto: Jorge Farias/Secult PE-Fundarpe
CONTINENTE A história do teatro brasileiro é fortemente marcada pela exclusão do negro, tanto no protagonismo das narrativas quanto nas demais funções de uma produção teatral. Como era e como é hoje? O que mudou? E o quanto mudou?
ÉRICO JOSÉ Em primeiro lugar, é preciso afirmar em alto e bom som que o racismo é estrutural no Brasile, sequela do projeto colonial, dita todas as relações socioeconômicas e culturais do país. As artes cênicas e o teatro brasileiro não poderiam estar fora dessa perspectiva e a historiografia teatral escancara essa realidade, seja pela ausência de conteúdos e registros sobre as atuações negras nos palcos e produções do país por muitas décadas, seja pelas denúncias e revisões feitas por artistas-pesquisadores/as negros/as que reivindicam seus lugares na história oficial da cena brasileira. Fruto de uma estrutura colonial e racista, o teatro sempre manteve, como já visto, um lugar de privilégio branco e subjugo de negros/as, tanto na perpetuação de estereótipos negativos, no uso de blackface (atores brancos que pintavam o rosto de preto para ridicularizar as heranças africanas e de seus descendentes), na ausência de protagonismo, na criação de personagens subservientes e inferiores, quanto na invisibilização de ações de grupos e companhias teatrais negros/as que, desde sempre, lutavam contra tais métodos de exclusão e aniquilamento das artes negras .
Posso dizer que o corpo negro foi usado sobre a cena – desde o século XVI – para usufruto de interesses dos/as colonizadores/as, se mantendo dentro da perspectiva de objeto a ser manipulado a partir de ideologias dominantes. Esta perspectiva se perpetuou pelos séculos seguintes, sob diversos prismas, já que, entre os séculos XVII e XVIII, os atores negros interpretavam personagens brancos – os únicos com cidadania reconhecida – e, logicamente, estavam em cena por conta da desvalorização da profissão e não por seus dotes artísticos, pois a branquitude não se “sujaria” com um trabalho tão inferior, infame e vergonhoso como o teatro e, por isso, era o/a negro/a quem subia aos tablados. Porém, como seria de se esperar, o momento no qual o Brasil começa a desenvolver seu teatro nacional, através de dramaturgias, atuações e produções brasileiras, ganhando, assim, mais prestígio social com a também ascensão do teatro europeu, a participação de artistas negros/as passa a ser substituída pela de artistas brancos/as, sendo o final do século XIX e início do século XX a proliferação do uso do blackface na cena brasileira.
Nas artes cênicas, a tendência de invisibilidade do corpo negro e suas insurgências seguiu o mesmo padrão, sendo a História do teatro, a dramaturgia brasileira, a encenação teatral, as reflexões acadêmicas escritas por brancos/as com total descarte às ações político-culturais de protagonismo negro. Por isso, acho indispensável reforçar os trabalhos dessas escritoras, artistas e pesquisadoras (Mirian Garcia Mendes, Mabel Freitas, Leda Maria Martins e Cristiane Sobral) no sentido de sedimentar a ideia de que as negruras sempre estiveram ativas em luta contra a hegemonia e sempre foram agentes contra-hegemônicos tanto nas artes cênicas quanto fora delas, com o intuito, inclusive, de caminhar no sentido da construção de signos positivos da presença negra nas artes da cena.
Analisando a história oficial do teatro e a tarefa de artistas-pesquisadores/as em forjar a ferro e fogo a presença dos corpos negros na cena teatral brasileira, e observando a conjuntura atual, percebo que o avanço é mínimo em comparação aos esforços engendrados em prol da visibilidade das artes cênicas negras, pois, a despeito da grande quantidade de grupos e companhias de teatro negro em todo o país, dos desdobramentos de ações pedagógicas, conceituais, teóricas e estéticas múltiplas, ainda há um fosso entre estes conhecimentos e práticas contra-hegemônicas e a oficialidade cênica, sobretudo, em âmbito universitário, pois, até hoje, conteúdos afrocentrados não existem de forma efetiva nos currículos dos cursos de Artes Cênicas do país e esta demanda, feita principalmente por parte de estudantes negros/as, não vem sendo atendida a contento e, mais uma vez, escamoteada por disciplinas optativas, dadas quando há professores/as capacitados/as para tais conteúdos, como paliativos de uma demanda urgente e necessária para a dessacralização de um pensamento e uma ideologia cartesiana e euro-norte-americana instalada como verdade superior.
Saber, por exemplo, que no Recife o grupo O Poste Soluções Luminosas (Samuel Santos, Naná Sodré e Agrinez Melo) são vozes solitárias na luta por espaço para o teatro de referência afrocentrada, demonstra a dificuldade, ainda nos dias atuais, de perspectiva de igualdade nas artes cênicas em relação ao teatro negro. A hegemonia artística e acadêmica das artes cênicas é, fundamentalmente, branca e perpetua um legado colonial e hegemônico como princípio do teatro em âmbito nacional, detendo os espaços de poder na pesquisa, na docência e na produção cênica em suas respectivas cidades. Uma prova dessa afirmação é perceber a quantidade de professores/as negros/as nos cursos de graduação e pós-graduação em artes cênicas no país. No Recife, por exemplo, não há professor/a negro/a no departamento responsável pelo curso de licenciatura em Teatro e não há perspectivas de concurso com enfoque nessa temática. Em Salvador, fui o único professor negro durante 18 anos de docência na Escola de Teatro da UFBA, de 2002 a 2020. Os exemplos se estendem à avassaladora maioria das universidades brasileiras. Além disso, as temáticas referentes à Lei 10.639, de 2003, que institui o ensino da história africana e afro-brasileira, reforçadas pela Lei 11.645/08, de 2008, que inclui conhecimentos indígenas, são completamente ignoradas nos cursos superiores em Artes Cênicas. São quase 20 anos de criação de uma lei que implementa conteúdos não-hegemônicos no ensino básico brasileiro, sem engajamento algum, praticamente, por parte da intelligentsia acadêmica das cenas brasileiras. Este curto panorama reflete o descaso e a falta de interesse em mudar a realidade racista e colonial em nosso país.
Naná Sodré, Samuel Santos e Agrinez Melo, do grupo O Poste Soluções Luminosas.
Foto: Arlison Vilas Boas/Divulgação
CONTINENTE Quando e como surgiu na academia a discussão sobre o negro no teatro brasileiro e a decolonialidade?
ÉRICO JOSÉ As discussões decoloniais, no âmbito da América Latina hispânica (sem a participação do Brasil), se consolidaram a partir do final da década de 1990, com pensadores/as das ciências sociais e jurídicas que se debruçaram sobre a colonialidade como fenômeno de perpetuação de uma estrutura capitalista/moderna opressora e que construiu um modelo epistêmico de pretensão universal para o domínio das sociedades não ocidentais, além de ter dividido a humanidade em raças. As artes cênicas começam a transitar pelo universo das teorias decoloniais tardiamente, a partir do início da década de 2010, isto é, praticamente, 20 anos após as primeiras elaborações decoloniais. Na verdade, vejo a decolonialidade como um guarda-chuva conceitual que abarca questões nodais da manutenção do pensamento colonial, como o racismo, o sexismo, a LGBTQIAP+fobia, a intolerância religiosa (contra as culturas afro-brasileiras e indígenas, sobretudo) etc. A partir da genealogia proposta por Luciana Ballestrin , observo que a rede Modernidade/Colonialidade (M/C) vem aprofundar e atualizar discussões geradas por movimentos sociais e intelectuais anteriores, como o pós-colonialismo africano e indiano, frutos de uma luta de emancipação de seus sistemas imperial e neocolonial.
O pós-colonialismo se refere a um dado temporal, período de libertação e independência dessas nações do julgo colonialista de forma efetiva a partir do século XX, e, ao mesmo tempo, são correntes teórico-conceituais, sobretudo nas áreas literárias e culturais, sobre as consequências e perpetuações de modelos e mentalidades coloniais, mesmo após o rompimento oficial dessa estrutura escravagista. O mais irônico é que essas correntes teóricas são desenvolvidas e alimentadas, sobretudo, nos Estados Unidos e na Inglaterra, territórios identificados como emblemas imperiais e coloniais nesse processo de espoliação dos países considerados não ocidentais. E, nesse contexto, a máxima de Silvio de Almeida (2019) se concretiza: as potências capitalistas e colonizadoras são as mesmas que discutem e manipulam as noções e tendências teóricas que as criticam. Na verdade, isso não é uma ironia, é uma estratégia: as sociedades opressoras são as mesmas que repercutem teorizações sobre as situações dos/as oprimidos/as, mantendo, assim, seus lugares de privilégio através das ciências, das políticas, das economias e das culturas, já que o sistema colonial veio a ruir, pelo menos historicamente. Mudam-se as formas de controle e domínio sobre tais países e continentes, mas, no fundo, as estruturas coloniais continuam ali, como as fortes colunas gregas, sustentando as instituições de poder e suas diversas formas de racismo.
A moda decolonial adentra as artes cênicas, por incrível que pareça, por uma maioria de artistas-pesquisadores/as brancos/as que começam a discutir (e afirmar), sumariamente, que as artes cênicas brasileiras são decoloniais a partir do momento em que se relacionam com as práticas culturais afro-indígenas, reconfigurando suas técnicas, poéticas e estéticas cênicas a partir do substrato cultural das sociedades subalternizadas. O teatro negro, nesse caso, não necessariamente se atribui a alcunha de decolonial, apesar de haver artigos acadêmicos que fazem essa relação. O desejo decolonial nas artes cênicas parte, sobretudo, de uma branquitude interessada em manter os vínculos com culturas afro-brasileiras e indígenas, ancorando suas pesquisas sob os auspícios da teoria decolonial, em sua maioria, para justificar suas experiências interculturais. Não há, via de regra, nenhuma análise crítica sobre o pensamento decolonial, no sentido de perceber que a decolonialidade latino-americana de base hispânica não se aplica completamente às especificidades coloniais do Brasil, como, por exemplo, o racismo à brasileira, o mito da democracia racial e a reflexão sobre apropriação cultural. E é por isso que meu direcionamento de pesquisa parte do pressuposto de que a noção de decolonialidade usada no âmbito das artes cênicas, em suas veredas acadêmicas e artísticas, não trata de questões e discussões nodais desse campo, sobretudo as étnico-raciais, mas usa-as, de forma geral, para legitimar a continuidade de procedimentos de exclusão e apagamento dos corpos negros nas esferas estrutural, institucional e individualista das relações políticas, educacionais, culturais e artísticas no Brasil, no intuito da manutenção de seus privilégios seculares.
Nas rodas de seminários e colóquios sobre decolonialidade organizadas por artistas-acadêmicos/as brancos/as, por exemplo, vemos menções a “nonas pretas”, “bisavôs indígenas”, “tataravós caçadas a laço” etc. Toda uma ascendência construída para justificar suas presenças e suas falas sobre as negruras e suas práticas artísticas e/ou culturais, sempre tendo-as como objetos de pesquisa e nunca como protagonistas de suas próprias histórias. O discurso também caminha pela via da “nossa” cultura brasileira, no intuito bem nacionalista de se achar detentor/a das culturas brasileiras pelo simples fato de ter a mesma nacionalidade, evitando discussões necessárias como sobre apropriação cultural. Se, por um lado, há um ínfimo movimento de branquitude que se coloca sensível à causa da discriminação racial (até o momento em que não interfira em seus privilégios), tendo sua “não racialidade”, sua “neutralidade racial” como um escudo, uma égide, há, por outro lado, o movimento da negritude cujo protagonismo em defesa da igualdade e equidade sociais estão nas mãos dos/as próprios/as negros/as que partem em direção às batalhas e enfrentamentos contra o racismo e suas devastadoras consequências.
Na verdade, a moda decolonial é, principalmente, acadêmica e traz um procedimento equivocado em tentar nomear as culturas alheias como decoloniais. Para mim, torna-se evidente a complexidade e atualidade desta questão, já que, via de regra, a prática acadêmica brasileira transita nestes dois lugares: o da subserviência aos cânones ocidentais e hegemônicos e a prática alastrada de falar pelo/a “outro/a”, mesmo quando o discurso se diz decolonial. É através do discurso hegemônico que as questões das sociedades subalternizadas são evidenciadas, num ciclo vicioso de manutenção de status quo e de lugares de privilégio. Aos/às pesquisadores/as e intelectuais as benesses de olhar pelos/as “excluídos/as”, a estes a invisibilidade e a permanência em seu lugar de inferioridade e desprestígio socioeconômico. Percebo de forma contundente que não há representação efetiva de negros no movimento decolonial desde seu início e isto é uma constatação que denota, pelo menos até esse momento, que há muito o que se debater sobre decolonialidade, para além do desejo de tê-la como salvadora de problemáticas seculares, sobretudo, nas artes cênicas brasileiras.
CONTINENTE Quando falamos de decolonialidade nas artes cênicas, estamos falando de quê, na teoria e na prática? Em quais aspectos a questão precisa avançar?
ÉRICO JOSÉ Meu posicionamento sobre a decolonialidade nas artes cênicas é crítico e analítico e não subserviente, por isso, exponho aqui dois lados de uma mesma moeda: o discurso acadêmico que se propõe a catalogar práticas decoloniais nas artes da cena e nas culturas brasileiras, justificando que se faz uma arte não colonial e evitando o mergulho em conteúdos necessários para um olhar mais vertical de um lado; e, de outro, uma tradição de diálogo intercultural que se dá desde que o teatro existe, entre artistas e intelectuais e culturas do mundo. Nos dois casos há uma supremacia branca que parte em direção às sociedades subalternizadas (não brancas) para extrair delas conteúdos que sejam otimizadores de “revoluções” cênicas, no sentido de inovações técnicas, estéticas, conceituais e teóricas.
Se pegarmos a história do teatro pelo viés do surgimento do/a encenador/a, vamos perceber que a sistemática é a ida em culturas distantes para alimentação de um teatro europeu quase estagnado por se propor canônico e universal. Cada grande nome do ocidental tem em seu currículo abordagens sobre culturas não europeias, como Copeau, Artaud, Grotowski, Eugenio Barba, Peter Brook, Ariane Mnouchkine, dentre tantos/as outros/as que buscavam a “reteatralização” do teatro. Porém, somente agora se vem questionando, através do revisionismo na área, quais as éticas empregadas nesses trânsitos interculturais. Essa prática também se alastra pelo Brasil com uma maior complexidade, pois ela se dá, em sua maioria, por meio de um colonialismo interno, endógeno, e não, necessariamente, por viagens transatlânticas. Porém, o procedimento é, praticamente, o mesmo: companhias de teatro, dança, performance vão ao encontro de culturas afro-indígenas nos quatro cantos do país com o intuito de revigorar pedagógica e artisticamente suas técnicas corporais e estéticas cênicas. Então, para o bem e para o mal, a teoria decolonial também pode ser usada como justificativa para relações de poder entre cenas e culturas, ao mesmo tempo em que pode servir para uma reflexão séria sobre ética artística, racismo, negritude, branquitude, democracia racial e apropriação cultural.
Em meus estudos e pesquisas sobre o que se vem escrevendo sobre decolonialidade nas artes cênicas, o pensamento crítico sobre a teoria é mínimo e sobre as práticas interculturais, quase inexistente. Há uma sede de se autoafirmar decolonial que supera qualquer possibilidade de análise sobre tais procedimentos e, ainda mais grave, quem se propõe a ser uma voz dissonante nesse contexto é completamente invizibilizado/a e escanteado/a do meio artístico-acadêmico. Portanto, a meu ver, falar de decolonialidade nas artes cênicas é, antes de qualquer coisa, discutir criticamente a quem serve essa empreitada. Partir para uma visada analítica, inclusive, sobre os limites dessas premissas teóricas em relação ao Brasil e, de forma séria e aprofundada, levantar as mazelas seculares que ainda impõem uma mentalidade colonial no seio das artes em geral e das artes cênicas em particular, cujo racismo é um fator estrutural e primal da discussão. Não se pode discutir decolonialidade no Brasil sem se discutir sobre racismo e sobre o lugar da branquitude na cena, porém, artistas-pesquisadores/as passam ao largo dessas discussões e, acredito piamente, não inconscientemente.
Érico José no espetáculo Gato-corvo, de Edgar Allan Poe. Foto: Diney Araújo/Divulgação
CONTINENTE Como você analisaria a presença do negro no teatro brasileiro hoje?
ÉRICO JOSÉ A presença negra sempre existiu como combate à discriminação e ao racismo cênicos e, hoje em dia, já é possível ter uma parcela mínima dessa história com pesquisas que trazem movimentos artísticos negros desde o final do século XVIII aos dias atuais, como relatos oficiais de apresentações teatrais de 1733, em meio às festas religiosas de Minas Gerais e, possivelmente, de outros Estados da Federação, nas quais artistas e músicos eram negros/as ou mestiços/as. Essas festas públicas vararam o século XIX e, provindos/as das irmandades dos homens pretos e dos homens pardos, muitos/as artistas foram profissionalizados na arquitetura, nas artes visuais, na música e no teatro, para suprir a demanda social de reforço do poder português em forma de cortejos cênicos e espetáculos teatrais .
Entre o final do século XIX e início do século XX, temos Benjamim de Oliveira, considerado o primeiro palhaço negro do Brasil e sua luta com o circo teatro, as companhias negras como as de De Chocolat (João Cândido Ferreira): Companhias Negra de Revistas (1926) e Teatral Ba-Ta-Clan Preta (1927); a presença de Grande Otelo nas companhias de revistas, no teatro e, posteriormente, no cinema e na televisão; Haroldo Costa e Solano Trindade no Teatro Folclórico Brasileiro; Mercedes Baptista, a primeira bailarina negra do corpo de balé do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e fundadora do Ballet Folclórico Mercedes Baptista; Mário Gusmão e sua trajetória como artista e ativista; o Tepron – Teatro Profissional do Negro, dentre tantas outras iniciativas que se perderam no curso de uma história até pouco tempo contada por uma elite cênica branca com os olhos voltados para o “Norte Global” . Desde o século XX, inúmeros grupos de teatro negro surgem, ressurgem e se estinguem pelo país afora e outros permanecem no embate contra o racismo e na luta por igualdade de direitos civis.
A pesquisadora Mabel Freitas (2017) vem construindo um verdadeiro inventário sobre esses grupos em nível nacional, demonstrando que a iniciativa é persistente, mas, esbarra em muitos limites, inclusive o econômico, além da falta de políticas públicas e de espaço digno para o tratamento de tais temáticas. Portanto, sob minha perspectiva, a presença do/a negro/a no teatro brasileiro hoje é símbolo de persistência, resistência e ativismo cênico, criando, a despeito das dificuldades, seus espaços, aquilombando-se, formando redes de trocas e diálogos, o que denota que as artes cênicas “oficiais” ainda não assimilaram esta corrente artística, impelindo-a sempre à margem das pesquisas e cenas brasileiras. Em toda a minha trajetória na licenciatura em teatro da UFPE, por exemplo, nunca ouvi falar em teatro negro, em Solano Trindade (pernambucano, por sinal), em Abdias do Nascimento e nenhum dos movimentos que relatei anteriormente, isto é, há um real apagamento da temática negra nas artes cênicas universitárias e, se esta realidade vem mudando aos poucos, é por conta de uma geração de artistas-pesquisadores/as negros/as que vem impondo seu espaço, com muito custo, na historiografia e na prática cênica, pautando as demandas desse nicho artístico.
CONTINENTE Como você situaria a importância de Abdias do Nascimento no percurso histórico dessa discussão?
ÉRICO JOSÉ Abdias do Nascimento é considerado um ícone dos movimentos político e cênico negros, pois sua atuação não se restringiu somente ao teatro, mas integrou a educação, a política, redes pan-africanas de discussões, as artes visuais, a literatura, abrangendo a discussão sobre a condição do/a negro/a no país e o racismo velado como fator genocida da população. É indiscutível sua importância no cenário nacional e internacional e sua luta não pode ser esquecida. Não há pesquisa historiográfica de cunho negro que não toque em seu nome e em seu legado. Porém, ao mesmo tempo em que reverencio sua existência, acho importante refletirmos sobre essa tendência da sociedade em encontrar representatividade em casos isolados, pois isto é uma criação de mentalidade cristã que em nada contribui de forma efetiva para a visibilidade negra enquanto coletividade.
Como Abdias do Nascimento, muitas outras pessoas se empenharam em combater a estrutura colonial e racista nas artes brasileiras e também merecem espaço, como forma de fortalecimento de uma conjuntura negra ampla. Um caso evidente é o de Solano Trindade, poeta, folclorista, pintor, ator, teatrólogo, cineasta e militante do Movimento Negro e do Partido Comunista, pernambucano esquecido que teve grande influência na luta pelo teatro negro brasileiro, tendo passado pelo TEN (Teatro Experimental do Negro) ao lado de Abdias do Nascimento e, em seguida, criado o TPB (Teatro Popular Brasileiro), ao lado de secretárias do lar, operários/as, estudantes, comerciários/as etc. Também idealizou, em 1934, I Congresso Afro-Brasileiro no Recife, um marco nas discussões raciais no Brasil. Enfim, penso que o legado da luta negra nas artes cênicas é imenso, apesar de pouco conhecido e difundido em lugares de poder como nas universidades, por exemplo, e que Abdias do Nascimento é presença basilar e fundamental, juntamente com tantos/as outros/as que não tiveram a sorte de ter suas histórias registradas.
Solano Trindade, poeta, folclorista, pintor, ator, teatrólogo, cineasta e militante.
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