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Os expressivos olhos de Naná Sodré sinalizam o vigor que marca os seus mais de 20 anos de carreira nas artes cênicas. Nascida Nazaré Sodré da Silva, no Rio de Janeiro, vivenciou desde muito nova o que é ser uma mulher negra num país em que o racismo é estrutural. Mas as dificuldades que enfrentou em decorrência dessa realidade foram tomando forma de resistência. Aos 17 anos, partiu rumo à capital pernambucana para experimentar novas possibilidades no universo que ocupa até hoje, unindo a aptidão em comunicar-se à paixão pela arte. Além de atriz, Naná atua como professora de artes, produtora cultural e na direção teatral.
Após a graduação em Artes Cênicas, momento no qual também foi recorrente o sentimento de não pertencimento, já que era uma das únicas negras da turma, passou a dedicar-se à função de iluminadora, área na qual ganhou proeminência, tornando-se uma das mais requisitadas do Recife na função. Por quase 10 anos, dedicou-se exclusivamente à arte de fazer luz, até sentir a necessidade de voltar aos palcos. Ao lado de Agrinez Melo e de seu marido, o diretor e dramaturgo Samuel Santos, foi transformando o grupo O Poste Soluções Luminosas, fundado em 2004, num espaço teatral integrado por artistas negros.
O espaço de resistência, localizado na Rua da Aurora, centro do Recife, desde 2014, promove cursos, sedia atividades artísticas e desenvolve pesquisa continuada nas matrizes africanas, tomando como base a ancestralidade corporal e vocal pelo viés teatral, traçando um paralelo entre as incorporações dos orixás nos terreiros de candomblé e umbanda, e buscando aproximar essa investigação aos processos de Michael Chekhov, Eugenio Barba e Jerzy Grotowski.
Desse significativo trabalho, nasce o projeto Luz negra: o negro em estado de representação, que atua no rompimento de paradigmas de preconceito através da própria presença do ator negro nas artes cênicas, para que, dessa forma, público e artista se reconheçam e se sintam representados. A mostra traz como proposta uma programação que engloba apresentações de peças teatrais – incluindo as de autoria do grupo –, solos de dança, ópera, contação de histórias e leituras dramatizadas.
Nesta entrevista à Continente, Naná compartilha a sua trajetória inserida num contexto de luta para conquistar o seu lugar enquanto atriz negra, o seu ativismo dentro e fora dos palcos, discute sobre racismo e representatividade, além de explanar sobre os princípios que permeiam as ações do grupo e como se dá essa busca pela valorização do artista negro e sua poética pela ancestralidade na cena contemporânea.
CONTINENTE Como ocorreu o seu contato com as artes cênicas? Você recebeu influência de casa?
NANÁ SODRÉ Não, não recebi nenhuma influência. Engraçado… Uma vez eu estava vendo novela, aí eu virei para minha mãe e disse: “Quando eu crescer, quero ser advogada”. Aí ela: “Eu não vejo você como advogada. Você gosta muito de se comunicar com as pessoas, eu vejo você dando aula, por exemplo”. Ela pensou em muitas possibilidades, mas eu lembro bem que ela não falou a palavra “artista”. A história de me aproximar do teatro foi aqui em Pernambuco, quando eu entrei na UFPE, no curso de Artes Cênicas. Vi como uma possibilidade de trabalhar essa questão da comunicação. Comunicação com arte. Porque eu vim de uma vivência do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Eu saí de lá com 17 anos para morar no Recife e aqui eu buscava algo que fizesse aflorar a possibilidade artística que eu já havia aguçado. Mas eu não tinha essa consciência de “eu vou fazer o curso de teatro, porque eu sempre quis atuar”. O curso era de Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas, e era esse universo que eu queria conhecer. Mas não tinha ninguém na minha família com essa identificação de assumir-se artista, apesar de ter algumas afinidades, porque eu acredito que naquela altura os negros da minha família não se viam representados. E isso é muito significativo, sabe? Naquele período eu não entendia muito bem… É por isso que eles enveredaram por outros caminhos.
CONTINENTE Então, como essa questão da representatividade – ou da não representatividade – influenciou nas suas escolhas?
NANÁ SODRÉ Essa coisa do “assumir-se negro” vem com o tempo. E é um tempo diferente para cada negro e negra. Tem gente que desperta para essas questões já na infância, dependendo do tipo de engajamento que a família tem, do conhecimento, das ações afirmativas, das políticas em relação à negritude. Esse não foi o meu caso… Os meus pais não eram alienados em relação ao racismo, eles entendiam como algo estrutural, mas também não eram engajados em ações, no ativismo. O meu pai, principalmente, sempre falava muito sobre a falta de representatividade. Na hora da janta, quando a gente geralmente estava vendo novela, ele chegava do trabalho com uma capanga embaixo do braço, olhava para televisão e dizia: “Que mentira! Desde a mesa posta no café da manhã até as relações familiares. E os negros estão onde?”. Eu me lembro bem disso… E em tudo o que ele fazia tinha uma escolha particular pela representatividade. Ele não usava a palavra “representatividade”, mas ela estava lá: nas músicas, nos programas que ele assistia, nos artistas que admirava. Mesmo ele não sendo uma pessoa que constituía movimentos. E isso me influenciou diretamente. Através dele, eu tive contato com Ray Charles, com artistas negros brasileiros, como Jorge Ben Jor, Alcione, Clara Nunes… Esse pessoal todinho ali, permeando minha infância e me dando, mesmo sem muita consciência, um lugar: “Existe um lugar que é meu, ao qual pertenço, que ainda não sei direito qual é, mas que gosto, que me sinto feliz…”.
Naná Sodré, Samuel Santos e Agrinez Melo formam o grupo O Poste Soluções Luminosas. Foto: Arlison Vilas Boas/Divulgação
CONTINENTE E como desenvolver essa consciência?
NANÁ SODRÉ Hoje eu tento fazer diferente com minha filha Luana. Nós somos ativistas, até porque O Poste é um espaço de resistência. Ela tem 13 anos e já sabe o que é representatividade, visibilidade positiva e negativa da negritude, sabe o que é sustentar uma coroa, que é um black afro que as mulheres negras estão assumindo. Já ouve falar de solidão da mulher negra… Em todos esses assuntos que estão sendo discutidos, ela está presente. E isso é muito significativo para a formação. É uma outra geração, né? E essa questão do “assumir-se negro” chega mais fortemente com a criação dos filhos. Mesmo tendo essa consciência dentro de casa, a Luana chegou um dia da escola, quando era mais novinha, e disse que seria muito bom se ela tivesse o cabelo liso. A partir disso, eu e o meu marido começamos a nos preocupar em como as questões da negritude estavam sendo tratadas na escola. E o que é que a gente fez? O Samuca imediatamente comprou uma série de livrinhos de histórias com várias personagens negras para que ela se identificasse, se visse representada, no cabelo, na cor da pele… E aí eu peguei os livros, botei embaixo do braço, e fui conversar com a professora e a diretora. Contei que Luana havia chegado em casa com esses questionamentos e perguntei como a escola estava tratando disso. E depois apresentei os livros, porque é isso que a gente tem que fazer enquanto pessoa negra. Quando começamos a perceber isso tão próximo da gente, mesmo tendo relação com o ativismo, precisamos questionar se estamos fazendo o suficiente. Se a gente fala tanto em representatividade, o que é que eu, enquanto atriz negra, estou fazendo para tratar disso? Nos meus espetáculos e até nas minhas falas e ações do dia a dia? Esse foi o grande pontapé para chegarmos até a criação deste espaço aqui. Porque é vida, né? A arte tem uma relação com a vida, ela lhe atravessa. Então, se eu tenho uma filha que está dentro de um contexto e vira para mim dizendo “Ah, seria tão bom se eu tivesse o cabelo liso…”, eu digo: “Que ela tenha o cabelo liso, que fique careca, que tenha o cabelo azul, rosa ou amarelo, mas que ela aceite o cabelo dela, entendendo que faz parte de uma estrutura, um tipo, uma etnia… Ela pode alisar o cabelo? Pode! Ela pode fazer o que quiser. Mas com isso não tenha vergonha de mostrar quem é de verdade.
CONTINENTE Você descreveu essa situação com sua filha como o grande pontapé que foi moldando o que O Poste é hoje. De que forma isso influenciou nas ações do grupo?
NANÁ SODRÉ Então, no mesmo período em que Luana apresentou essas questões, o filho de Agrinez, Léo, também. E isso tocou muito fortemente na gente, porque são as crianças, é o “daqui a pouco”. Foi quando a gente percebeu que precisava realmente visibilizar. Não adianta ficarmos só no nosso umbigo, e é aí que a coisa cresce… A gente começa a entrar ativamente na busca e na desconstrução de muita coisa que está aí. Por exemplo, aquela velha história de chamar atores negros só para papéis menores, isso é uma coisa que a gente combate muito. Foi criado pelo grupo um cadastro de atores negros, e uma das premissas que a gente fala para as pessoas que nos procuram para ter acesso a esses cadastros é: “Vejam direitinho onde vocês estão colocando esses atores”. Porque quando você, enquanto ator ou atriz negra, faz o seu cadastro, significa que confia em mim, na minha postura política, e isso é uma coisa que a gente defende quando entrega o cadastro. Nós criamos a mostra Luz negra justamente para defender nossa luta de que o negro pode e deve atuar como qualquer personagem. Por que vai fazer só o porteiro, a menina do café, a que varre o chão? E isso é muito louco, porque esses atores têm graduações, se preparam por anos, muitos atuam em grandes cargos, e aí, na ficção, vão fazer algo que subalterniza. Ah, mas o faxineiro não tem valor? Tem sim! Principalmente se ele tiver vida na trama. Ele tem vida? Tem família? Tem uma jornada? Tem esperança? Ou ele só vai passar lá no fundo varrendo, com a camisa da empresa de serviços prestados?
Em Ombela, o grupo montou um espetáculo falado em duas línguas: umbundo e português. Foto: Fernando Azevedo/Divulgação
CONTINENTE E como essas questões são trabalhadas nos espetáculos?
NANÁ SODRÉ Se a gente fala de afrocentrismo, cultura afro-brasileira, também sentimos a necessidade de dar um pulo na África. Então, surge a vontade, de repente, de montarmos um espetáculo com uma língua que seja daquele continente, de autores que tenham uma relação com aquela realidade, é quando a gente monta Ombela, que é um espetáculo que fala em duas línguas: umbundo e português. A partir daí, a gente faz toda uma pesquisa, chama uma antropóloga, um professor de umbundo para ensinar a língua para gente, estuda um pouco da cultura, tentando entrar ao máximo nesse universo natural africano, nas questões ritualísticas. A gente tem uma pesquisa chamada O corpo ancestral dentro da cena contemporânea, onde vamos para dentro dos terreiros de candomblé e umbanda verificar que tipo de equivalência corporal tem o nosso corpo de ator com aquele corpo que está lá naquela gira, os pontos energéticos… Porque quando a gente trabalha com os rituais, estamos trabalhando com os quatro elementos da natureza. Assim, nós atuamos com teóricos de teatro que nos dão essa possibilidade de assimilar justamente quais são as equivalências do nosso corpo, do nosso trabalho artístico e teatral, com aquilo que está dentro do terreiro, que é tão próximo da nossa cultura, que tem uma relação direta com a matriz africana. Então, cada vez mais, ao “assumir-se negro”, nossos trabalhos também seguem esse mesmo caminho.
CONTINENTE Na sua concepção, o que é o teatro? Como você se utiliza dessa linguagem artística para construir os seus discursos?
NANÁ SODRÉ Eu posso usar como exemplo o espetáculo A receita, um solo meu de 40 minutos que fala sobre violência contra a mulher. Então é aquela questão: você é mulher, mulher negra, você sabe dos índices de violência contra a mulher, você tem um solo que fala sobre isso, mas você se aproxima dessas mulheres? Como é que esse teu espetáculo chega até elas? Com A receita, a gente tem escutado. As mulheres, as feministas, as donas de casa, as senhorinhas, as jovens… A gente dá um espaço de fala para elas. E isso é uma prática do grupo: depois de toda apresentação, abrimos para uma conversa, porque achamos significativo aproximar palco de plateia. A gente busca tornar o teatro mais próximo, menos elitista. Muito mais do que falar da técnica da atriz e da dramaturgia, o que vem depois de A receita são depoimentos, que a gente pede permissão para entrarem no espetáculo, de várias formas. E assim a gente vai moldando-o. Às vezes, nessas discussões, percebemos mudanças que precisam ser feitas, do tipo: “Olha, não se está mais falando dessa maneira” ou “Isso aqui é perigoso entrar na apresentação, porque reforça coisas que não deveria reforçar”. O espectador não vai até lá apenas para ter a fruição estética de um espetáculo. Tem isso, mas também tem outras questões a serem trabalhadas. O teatro para mim tem essa importância, esse cuidado. E eu, particularmente, gosto do teatro físico, que dá um olhar mais apurado pro corpo. Tem a questão do texto, claro, mas o corpo também fala muito. Eu gosto do teatro mais expressionista, que é muito a linha do nosso trabalho. Gosto de falar com o corpo.
O espetáculo Cordel do amor sem fim (2009) marca a volta de Naná Sodré aos palcos como atriz. Foto: Aryella Lira/Divulgação
CONTINENTE Como você se sente enquanto mulher negra ocupando esse universo das artes cênicas?
NANÁ SODRÉ Já foi mais sofrido. Mas o sofrimento foi dando lugar às ações. Antes da gente assumir o grupo O Poste como espaço teatral, ele já existia desde 2004 como um grupo de iluminação cênica. Coisa que tem muito a ver com a questão da falta de representatividade, isso ainda na faculdade. Eu não via muitas atrizes negras, então era como se aquilo ali não fosse para mim. Aí, em 2009, me volta a vontade de encenar, vontade minha e da minha sócia Agrinez. Com Cordel do amor sem fim, espetáculo nosso que já teve oito prêmios, eu senti na pele a transição da iluminadora para atriz. Começamos a entender que fazer luz não era algo menor, que com a mesma energia que a gente fazia luz, poderia também voltar a atuar. Só que isso não era o pensamento de todo mundo. O racismo é institucional, e a gente sentiu. Mas também foi fortalecedor, porque a gente sabia muito bem o que queria. E aí abraçamos Cordel com unhas e dentes. Com o tempo, fomos deixando de fazer luz, porque não tínhamos mais tempo. São dedicações diferentes. Ou eu assisto ao seu ensaio para montar a iluminação, ou eu ensaio o meu espetáculo. E a gente teve que assumir isto: fazer teatro, entrar em cena. Algo que exigia de nós uma disciplina, uma estrutura de presença. E essa presença não poderia ser fragilizada, tinha que ser inteira. Assim, tivemos que reconstruir a representatividade dentro da gente. Mas você precisa entender o sentido real do que é ser negro no Brasil para conseguir. Se você ainda não entendeu o que é isso, você não vai. Você desiste!
CONTINENTE Por seu trabalho de valorização e visibilidade da mulher negra, você foi homenageada pela União Brasileira de Mulheres (UBM) de Pernambuco em 2017. Qual o significado que esse reconhecimento tem para a sua carreira?
NANÁ SODRÉ Isso é um extrato significativo de que estou no caminho certo, um caminho de muito respeito. Porque, hoje, a gente discute muito mais essa questão da visibilidade feminina, e tem todo aquele espírito de darmos as mãos, mas ainda tem muito a ser percorrido. Nós somos ancestrais, natureza, intuição, isso é muito poder! Esse prêmio foi de muita importância para a minha luta até aqui. A União Brasileira de Mulheres é uma instituição muito forte, ativista, que está na linha de frente. Então ser representada por elas é uma honra. E isso é algo ainda que eu preciso e quero chegar mais junto, estar presente nas reuniões, desenvolver trabalhos junto com essas mulheres… Não é só ser homenageada.
Foto: Priscilla Buhr
CONTINENTE Como você avalia a existência do grupo nessa questão de promover a representatividade do corpo negro no teatro?
NANÁ SODRÉ O Poste é uma referência. Uma forte referência, inclusive… Para que você se aprofunde nas questões relacionadas às ações afirmativas para a negritude no contexto contemporâneo. As pessoas nos procuram quando querem fazer algum trabalho direcionado a essas temáticas, quando querem desenvolver algo sobre representatividade, por exemplo. Principalmente pessoas engajadas em movimentos negros, que estão trabalhando em ações pela cidade. Somos consultados a todo momento: “Como vocês estão vendo isso?”, “O que eu estou querendo fazer é uma atitude racista?”, “Eu estou trabalhando a questão do lugar de fala corretamente?” e por aí vai… É gratificante saber que nosso trabalho é reconhecido e traz resultados. O Poste é uma família. Eu, Agrinez e Samuca, cada um com seu temperamento e energia, características responsáveis pela força que nos fez chegar aonde estamos. Fomos desenvolvendo uma maturidade ao longo dos anos, que nos ajudou a entender que o importante na caminhada é o macro, e não o micro. E o Luz negra não é nosso, é para além. É realizado por nós, ok, mas não está mais preso ao grupo. E isso foi bastante perceptível nesse último ano. Ele anda, ele acontece, as pessoas fazem acontecer, e ele é muito maior do que a gente poderia mensurar. Ele atravessa.
CONTINENTE Tem mais alguma coisa que você gostaria de compartilhar?
NANÁ SODRÉ Gostaria de agradecer por mais essa possibilidade de visibilidade, porque quando você me convida para dar uma entrevista, você não está falando só com Naná, está falando com muita gente e vai atingir muita gente também. E isso é extremamente salutar. Porque entendemos que não é só sobre nós do grupo O Poste, que existem muitas outras questões ali que estão sendo tratadas. Somos semente, e por isso continuamos nessa luta.
Extra:
Assista abaixo a teaser do espetáculo Ombela
SAMANTA LIRA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.