Reportagem

Arte, cultura e o teste do tempo

Processo de revisionismo impulsiona outras leituras sobre produtos artísticos e culturais, ajudando a desconstruir estereótipos e abrir espaço para múltiplas narrativas

TEXTO DÉBORA NASCIMENTO
ILUSTRAÇÕES KARINA FREITAS

01 de Agosto de 2022

Ilustração Karina Freitas

[conteúdo na íntegra para degustação | ed. 260 | agosto de 2022]

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Numa época longínqua em que imaginar a Terra achatada como um prato não era coisa de negacionista, o navegador italiano Cristóvão Colombo decidiu lançar-se na aventura de tomar o caminho do oeste nos mares para chegar à Índia. Após receber algumas respostas negativas ao seu projeto, conseguiu, na Espanha, o financiamento da viagem, o fornecimento de três navios (Pinta, Nina e Santa Maria) e a tripulação. Enfrentando o risco teórico de esbarrar nas bordas do planeta ou de despencar pelas beiradas dele, Colombo, aos 41 anos, despediu-se da esposa Filipa Moriz, benzeu-se e zarpou do porto espanhol de Palos no dia 6 de setembro de 1492, 530 anos atrás.

Em pouco mais de um mês de jornada marítima, pisou em terra firme no dia 12 de outubro. Como afirmou o escritor Eduardo Bueno em seu canal no YouTube: “Colombo é o cara que, quando saiu, não sabia para onde estava indo e, quando voltou, não soube dizer onde tinha estado”. O navegador morreu no dia 20 de maio de 1506, acreditando que havia desembarcado na Ásia, quando, na realidade, tinha chegado ao Caribe, mais precisamente em Cuba. Ao falecer, aos 55 anos, não poderia supor que, séculos depois, sua imagem novamente tombaria, desta vez como uma morte simbólica do seu epíteto, há muito tempo registrado nos livros de História, o “descobridor” do “Novo Mundo”.

Em julho de 2021, na cidade de Barranquilla, na Colômbia (país cujo nome, pela lógica, deveria ter sido dado a todo o Continente, em vez de América, em homenagem a Américo Vespúcio), uma das estátuas de Colombo espalhadas pelo mundo recebeu em volta dela, mais uma vez, uma corda, para que manifestantes pudessem melhor derrubá-la. No lugar do monumento em homenagem ao navegador, as pessoas subiram no pedestal e ergueram a Wiphala, bandeira dos povos originários da região da Cordilheira dos Andes, como um gesto representativo dos estimados 9 milhões de nativos que existiam no Continente cinco séculos atrás e que passaram a sofrer todo tipo de desventuras após a invasão dos europeus no território.

No Brasil, em 30 de setembro de 2016, um dia após o debate eleitoral pela prefeitura de São Paulo, no qual os candidatos João Dória e Marta Suplicy afirmaram que a pichação era um dos maiores problemas da capital paulista, o Monumento às Bandeiras, na Vila Mariana, e a estátua de Borba Gato, no distrito paulista de Santo Amaro, amanheceram pichados. O fato gerou discussões acaloradas nas redes sociais, portais de notícias, universidades. Criado pelo escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret, o Monumento reproduz imagens de bandeirantes, indígenas, negros e brancos “unidos” em prol das Bandeiras, ação ocorrida no século XVII.

Em julho de 2021, um novo ataque à estátua do bandeirante Borba Gato provocou um longo debate sobre a depredação de patrimônio público e homenagens a esses homens que engendraram sequestro e escravização de indígenas e negros. Foram apresentadas propostas de retiradas oficiais de monumentos que homenageiam escravocratas. Há projetos de lei na Câmara dos Vereadores da capital, na Assembleia Legislativa do estado e na Câmara dos Deputados. Um dos projetos proíbe a “utilização de expressão, figura, desenho ou qualquer outro sinal relacionado à escravidão” em espaços públicos de todo o país. Segundo o Coletivo Negro de Historiadores Tereza de Benguela, há 180 monumentos em 24 estados brasileiros homenageando escravocratas.

“Nós sabemos que essas representações são muito contestadas hoje em dia. A sociedade pode decidir retirar monumentos, como decidiu colocá-los. O que eu penso é que os monumentos vão parar em algum lugar. Se eles saem daqui pra algum lugar, o problema continua”, afirma o historiador Paulo Garcez Marins, professor de História da USP e curador do Museu do Ipiranga (Museu Paulista da Universidade de São Paulo). “Nós temos que aprender a desafiar imagens o tempo todo. De imagens que chegam por celular a imagens que estão na praça pública, nos museus, nas televisões. Ou seja, todas as imagens são resultados de escolhas, resultados de desigualdades, de hipervisibilidades ou de opacidades. E de visões que não necessariamente são aceitas por todo o segmento da sociedade.”

O professor, que estuda a iconografia dos bandeirantes, afirma que a construção da imagem heroica do bandeirante serviu para enaltecer o passado paulista e também as elites republicanas em São Paulo do século XX, que eram descendentes deles e que queriam construir uma narrativa, uma epopeia, uma celebração desses ancestrais para que São Paulo tivesse um passado glorioso à altura da economia do café. “Nós sabemos que São Paulo do século XVII não era Olinda, não era Salvador, não era o Rio de Janeiro e também não era Ouro Preto do século XVIII, nem São Luís. São Paulo era uma cidade muito rústica, muito simples. E a construção desse mito de valorização do bandeirante permitiu a construção de uma monumentalização de uma cidade que mal tinha construções do período colonial, ao contrário do Recife, de Olinda, do Rio e de tantas outras que lideraram a economia do Brasil durante o período colonial. Então, os bandeirantes eram uma compensação, e esta foi construída com um hiperenaltecimento dessas elites brancas e obviamente com uma construção antitética de esmagamento da visibilidade ou das formas de vida e resistência política das populações negras e indígenas. E isto está em plena discussão. Essa construção deve ser entendida como racista.”

Quando o Monumento às Bandeiras foi pichado em 2016, o site do Parque do Ibirapuera publicou artigo do professor de História da Arte e crítico Roberto Carvalho de Magalhães criticando a pichação: “Ver nesse monumento, simplesmente, uma propaganda da hegemonia dos colonos e um símbolo do massacre dos índios pelos bandeirantes – e, por extensão, um ‘símbolo da opressão do povo pela elite econômica paulista’ – é um grande equívoco, além de cômico. Essa propaganda está, fundamentalmente, nas palavras emprestadas ao monumento e não no monumento em si. Sim, a história precisa ser reescrita e liberta da propaganda. Mas a própria propaganda já se tornou parte da História – nas obras de arte, nos monumentos, nos filmes, nos romances, nas novelas etc. – e, removê-la, seria, entre outras coisas, perder a oportunidade de compreender os mecanismos históricos mais profundamente”.

“Além do mais, há algo que está acima disso tudo: a arte. Essa é a maior obra de Victor Brecheret, um monumento déco tardio, que está ligado a uma época e a uma linguagem artística e arquitetônica que nos reconduz a São Paulo pós-Semana de Arte Moderna. Reduzir o monumento somente a um símbolo de propaganda de um regime sanguinário é desconsiderar o seu lado artístico, a sua linguagem arrojada, que está nos alicerces da arte brasileira. Deveríamos, agora, reivindicar a remoção de todas as igrejas porque participaram, no passado, desse processo de submissão dos povos ameríndios e justificaram a escravidão dos negros?”, argumentou o historiador.

O crítico tocou em aspectos que, principalmente neste século, são muito caros aos indivíduos e às coletividades, no que se refere a expressões artísticas. O principal deles hoje: a arte pode mesmo estar acima de tudo? Com a rapidez da circulação de ideias, opiniões e articulações através das redes sociais, a recepção a uma obra artística não passa mais apenas por círculos orgânicos. A seleção não depende mais apenas do arbítrio dos detentores de poder (curadores, produtores, financiadores, executivos, comunicadores) com seus critérios práticos, subjetivos, ideológicos, acadêmicos, comerciais, políticos e/ou financeiros. Novos parâmetros da sociedade podem pautar a criação (como ela se apresentará ao mundo), a recepção (como ela será vista e revista pelo mundo) e a distribuição (como ela será compartilhada pelo mundo). O tempo de vida de uma obra hoje pode depender disso. O tempo de sobrevivência dela vai depender de como será vista, revista e (re)inserida na sociedade.

REVISIONISMO
Tudo isso faz parte da revisão histórico-ética sobre a arte. A palavra revisionismo é hoje carregada de preconceito, não tem boa fama, pois foi capturada por representantes da extrema-direita para divulgar teorias estapafúrdias, como a negação da existência do Holocausto. É comumente apontada como sinônimo de negacionismo. No entanto, o termo é antigo e tem a ver com uma atitude comum a historiadores no que se refere a fatos, dados, documentos, teorias: rever, revisar.

“A disciplina histórica é sempre construída a partir de interpretações que se situam no presente. E o presente é móvel. Portanto, ela está sempre se atualizando, porque os historiadores mobilizam as fontes a partir de questões colocadas pelo presente, de inquietações e referências teóricas de novos presentes”, aponta o historiador Paulo Garcez, do Museu do Ipiranga. “Faz parte da disciplina histórica a transformação das interpretações e o acúmulo de pontos de vista diferenciados. Então, os historiadores não temem e não devem temer as revisões das interpretações que existem sobre o passado. Já o negacionismo significa o juízo de valor, negar alguma coisa antes de analisar, de refletir, de lançar mão de documentos.”

Com um imenso acervo de 450 mil itens que abrange, inclusive, retratos e estátuas de bandeirantes, o Museu do Ipiranga, após quase 10 anos fechado para reformas estruturais, prepara-se para se adequar, na sua reabertura, no dia 7 de setembro, data do Bicentenário da Independência, aos novos tempos. O museu será reaberto com 12 exposições, triplicando a área expositiva em comparação ao que havia em 2013, alcançando um conjunto mais amplo da sociedade, aumentando o acervo relativo a populações afro-brasileiras, indígenas, imigrantes, migrantes internos, mulheres, crianças. Há uma mudança também de abordagem dos velhos acervos a partir de novas perspectivas, com equipamentos multimídia. Quadros como O ciclo da caça ao índio, de Henrique Bernardelli, não terão o nome revisto, mas haverá textos informativos.

Além de oferecer a possibilidade de visitantes tecerem comentários, a partir de 2023, o museu vai lançar editais de seleção de propostas de ocupação dos espaços por pessoas que tenham outros pontos de vista e que possam debater os acervos da instituição. “Não é só a voz dos curadores, voz institucional, mas queremos vozes dissonantes. Porque a história são construções de narrativas. E estas, muitas vezes, estão em dissonância. Quanto mais o museu puder fomentar a discussão, o debate, mais eficiente ele vai ser e mais o visitante vai querer voltar”, reflete Garcez.

O Brasil insere-se no contexto do revisionismo que está ocorrendo em diversos museus ao redor do mundo. Um dos exemplos ocorreu no restaurante The Rex Whistler, vinculado à Tate Gallery, em Londres, conhecido como “a sala mais divertida da Europa”. O estabelecimento retirou esse slogan, pois na parede principal há o mural A expedição em busca de carnes raras, no qual o pintor que intitula o estabelecimento comercial retrata uma criança negra sendo arrastada por uma corda. A mudança veio em agosto de 2020, após protestos nas redes sociais, no contexto da revolta pelo assassinato de George Floyd, sufocado por um policial branco, em 25 de maio de 2020, no estado de Minnesota (EUA).

Essa modificação faz parte de uma onda de revisionismo na Europa. Instituições estão investindo em lidar com o histórico do Velho Continente. Um dos recursos é, em vez de retirar obras, atualizar legendas expondo o passado. Intitulado National Gallery e o legado da escravidão britânica, o projeto do museu londrino identificou 67 patronos da instituição que se beneficiaram da escravidão de maneira direta ou por vantagens financeiras. O acervo tem quadros datados do século XIX e que pertenciam a esses homens.

Um deles era John Julius Angerstein, dono da coleção de 38 pinturas adquiridas pelo governo britânico para inaugurar a National Gallery. Retratado em quadros pintados por Thomas Lawrence, o escravista ficou rico com seguros marítimos e apólices para navios negreiros e embarcações que transportavam mercadorias cultivadas por escravizados da região do Caribe. A intenção do museu agora é tornar transparente a origem de suas coleções.

Um dos revisionismos mais necessários nas artes hoje tem a ver com o passado colonial do Brasil e ele ocorre nas artes cênicas. “O teatro em nosso país, especificamente, floresce dentro de um projeto colonial, caso levemos em conta que a introdução do teatro – dito ocidental e universal –, no que viria a se chamar de Brasil, se deu a partir das missões jesuítas e suas práticas cênicas inseridas na ‘catequização’ dos povos originários. A meu ver, esta primeira intervenção intercultural já se deu com seus nefastos objetivos de genocídio das sociedades que aqui viviam, através da extinção cultural, epistemológica, espiritual e física que se efetivou em todo o continente chamado de ‘Mundo Novo’. O teatro, portanto, considerado de forma romântica por muitos/as artistas ainda hoje como fenômeno revolucionário, também pode ser uma ferramenta de poder opressora e letal em termos de conhecimento plural das sociedades”, reflete o ator e encenador Érico José, professor do Departamento de Artes Cênicas (e da Pós-Graduação) da UNB, organizador do livro Artes cênicas e decolonialidade, lançado neste ano.

Segundo Érico José, em entrevista à Continente (publicada na íntegra no site da revista), é importante perceber que este marco jesuítico, enquanto projeto capitalista/colonial/moderno, cravou suas garras epistemicidas e impôs uma imagem ideal, a do branco, heterossexual, cristão, europeu. “Com isso, a construção da noção de raça (assim como de gênero e classe social) também foi um dos mecanismos de controle e de exploração sobre as sociedades não brancas em vários continentes que, ao se diferenciarem do padrão hegemônico alçado à referência universal de valores e dogmas a seguir, se viram obrigadas a se adaptar por uma questão de sobrevivência, sem nunca deixar de criar estratégias de luta contra o sistema aniquilador vigente. Nesse contexto, as artes cênicas, de forma geral, e o teatro, em particular, foram – e continuam sendo, em certa medida – agentes difusores de colonialidade, opressão e exclusão. A partir daí, todas as referências cênico-teatrais introjetadas no ambiente cultural brasileiro que singraram as transformações políticas e socioculturais do país (Colônia, Império e Repúblicas), foram referenciadas pela hegemonia europeia, num primeiro momento, e euro-norte-americana, em seguida, como orientação filosófica, estética e ideológica do que seria ‘arte maior’ (as artes ocidentais e das potências econômicas) em contraposição às ‘artes menores’ (toda forma de expressão de referência não eurocentrada e das classes subalternizadas).”

Para o pesquisador, a colonialidade do poder, do saber e do ser – conceito do semiólogo argentino Walter Mignolo – continua atuando e também através do próprio processo revisionista no âmbito das artes cênicas. “Uma das facetas da colonialidade – que é estrutural no Brasil, assim como o racismo – é nomear a diversidade com a grafia hegemônica. A partir dessa lógica, as práticas rituais, celebrativas, festivas e culturais de sociedades antigas passam a ser ‘teatro’, pois são analisadas a partir da perspectiva da espetacularidade, teatralidade e corporalidade. A esses/essas pensadores/as, a naturalização de uma expressão ocidental (teatro) para definir a pluralidade epistêmica das sociedades não ocidentais é algo isento de questionamentos. A três por quatro, encontramos práticas culturais africanas ou afro-brasileiras sob a nomenclatura de ‘teatro das origens’, ‘pré-teatro', 'prototeatro' etc. O que me parece incongruente é que não se discuta esse procedimento, sendo o termo teatro carregado historicamente de um fardo tão negativo, em se tratando de arma de guerra colonial, hegemônica e epistemicida.”

De acordo com o professor, as discussões decoloniais, no âmbito da América Latina hispânica (sem a participação do Brasil), se consolidaram a partir do final da década de 1990, com pensadores das Ciências Sociais e Jurídicas que entenderam a colonialidade como fenômeno de perpetuação de uma estrutura capitalista/moderna opressora e que construiu um modelo epistêmico de pretensão universal para o domínio das sociedades não ocidentais, além de ter dividido a humanidade em raças. “As artes cênicas começam a transitar pelo universo das teorias decoloniais tardiamente, a partir do início da década de 2010. Na verdade, vejo a decolonialidade como um guarda-chuva conceitual que abarca questões nodais da manutenção do pensamento colonial, como o racismo, o sexismo, a LGBTQIAP+fobia, a intolerância religiosa (contra as culturas afro-brasileiras e indígenas, sobretudo) etc.”

De acordo com Érico, a partir da genealogia proposta pela pesquisadora Luciana Ballestrin, o grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) vem aprofundar e atualizar discussões geradas por movimentos sociais e intelectuais anteriores, como o pós-colonialismo africano e indiano, frutos de uma luta de emancipação de seus sistemas imperial e neocolonial, a partir do século XX. “Ao mesmo tempo, são correntes teórico-conceituais, sobretudo nas áreas literárias e culturais, sobre as consequências e perpetuações de modelos e mentalidades coloniais, mesmo após o rompimento oficial dessa estrutura escravagista. O mais irônico é que essas correntes teóricas são desenvolvidas e alimentadas, sobretudo, nos Estados Unidos e na Inglaterra, territórios identificados como emblemas imperiais e coloniais neste processo de espoliação dos países considerados não ocidentais. Na verdade, isso não é uma ironia, é uma estratégia: as sociedades opressoras são as mesmas que repercutem teorizações sobre as situações dos/as oprimidos/as, mantendo, assim, seus lugares de privilégio através das ciências, das políticas, das economias e das culturas, já que o sistema colonial veio a ruir, pelo menos historicamente”, discorre.

“A moda decolonial adentra as artes cênicas, por incrível que pareça, por uma maioria de artistas-pesquisadores/as brancos/as que começam a discutir (e afirmar), sumariamente, que as artes cênicas brasileiras são decoloniais a partir do momento em que se relacionam com as práticas culturais afro-indígenas, reconfigurando suas técnicas, poéticas e estéticas cênicas a partir do substrato cultural das sociedades subalternizadas”, destaca o pesquisador. “Ao teatro negro, nesse caso, não necessariamente se atribui a alcunha de decolonial, apesar de haver artigos acadêmicos que fazem essa relação. O desejo decolonial nas artes cênicas parte, sobretudo, de uma branquitude interessada em manter os vínculos com culturas afro-brasileiras e indígenas, ancorando suas pesquisas sob os auspícios da teoria decolonial, em sua maioria, para justificar suas experiências interculturais”, destaca.

Segundo o estudioso, não há, via de regra, nenhuma análise crítica sobre o pensamento decolonial, no sentido de perceber que a decolonialidade latino-americana de base hispânica não se aplica completamente às especificidades coloniais do Brasil. “Como, por exemplo, o racismo à brasileira, o mito da democracia racial e a reflexão sobre apropriação cultural. E é por isso que meu direcionamento de pesquisa parte do pressuposto de que a noção de decolonialidade usada no âmbito das artes cênicas, em suas veredas acadêmicas e artísticas, não trata de questões e discussões nodais desse campo, sobretudo as étnico-raciais, mas usa-as, de forma geral, para legitimar a continuidade de procedimentos de exclusão e apagamento dos corpos negros nas esferas estrutural, institucional e individualista das relações políticas, educacionais, culturais e artísticas no Brasil, no intuito da manutenção de seus privilégios seculares.”

O revisionismo, que abrange questões de racismo, também está na literatura. E o caso mais famoso no Brasil refere-se a seu autor infantil mais celebrado. No ano passado, chegaram às livrarias do país e dos Estados Unidos novas edições de livros de Monteiro Lobato com a retirada e a modificação de trechos racistas em algumas obras. Dentre as opções de: manter os trechos de cunho racista, acrescentando notas contextualizando-os; suprimi-los sem informações ou banir o autor, a mudança das frases, mas com notas de rodapé, foi a solução encontrada para o dilema.

Sendo assim, uma frase como “Na casa ainda existem duas pessoas – Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo” ficou “Na casa ainda existem duas pessoas – Tia Nastácia, amiga de infância de Dona Benta que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo”. Já “Dona Carochinha botou-lhe a língua, uma língua muito magra e seca, e retirou-se furiosa da vida, a resmungar que nem uma negra beiçuda” ficou assim: “Dona Carochinha botou-lhe a língua, uma língua muito magra e seca, e retirou-se furiosa da vida, a resmungar.”

“Quanto às mudanças feitas pela Cleo Monteiro Lobato, meu posicionamento é o seguinte: enquanto professora e pesquisadora, em princípio, sou contra a modificação de textos literários que não seja operada pelo próprio autor ou, pelo menos, com a sua anuência (impossível no caso de Lobato). Esse meu posicionamento, entretanto, não se aplica a traduções e adaptações, uma vez que elas são textos que se prestam a outras circunstâncias de produção, circulação e recepção”, frisa Tâmara Abreu, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, doutora em Teoria e História Literária e pesquisadora da obra de Monteiro Lobato.

“Enquanto leitora não especialista, a coisa pode ser diferente. Penso que essas modificações podem ser vistas como bem-vindas a alguns leitores adultos na qualidade de mediadores de leitura, por exemplo. Muitos professores não se sentem (e não são) suficientemente preparados para ler Lobato e verbalizar os epítetos de natureza racial com os quais ele às vezes se referia a Tia Nastácia: ‘a boa negra’, ‘a negra’, ‘a pobre negra’… Os professores ainda carecem de formação para encararem um texto como o de Lobato e não apenas pelo que ele pode ter de anacrônico e preconceituoso na linguagem, no modo de se referir às pessoas negras, mas por toda a riqueza de referências culturais, históricas, geográficas, científicas, filosóficas e políticas que esses textos trazem em si”, avalia Tâmara.

“Para muitos militantes antirracistas, o gesto da Cleo é uma tentativa de apagamento do racismo do bisavô. Para outros leitores, negros ou não, talvez se revele uma solução porque essas eliminações / omissões podem finalmente dar um tratamento digno à personagem de Tia Nastácia, antes desrespeitada pelo autor. Acho que há um sério problema em toda a discussão envolvendo os livros de Lobato: as pessoas não conhecem a sua obra. E conhecem muito menos a sua vasta correspondência e sua produção para adultos. Sem contar a biografia, que tem fases de pensamento bastante diferentes na evolução do escritor”, completa.

Colega do grupo de pesquisa de Tâmara, Cilza Bignotto, professora de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Federal de São Carlos (SP), em artigo publicado em fevereiro do ano passado na Folha de SP, pondera sobre a questão: “Julgar obras literárias por frases é arriscado. (…) Fragmentos de textos precisam ser analisados não apenas em relação a outros da mesma obra, que podem apresentar perspectivas diversas, mas também a outros textos de autores diversos da mesma época. Mas praticamente todos os outros livros da época desapareceram. Nos que sobraram, não havia personagens negros”.

A professora defende que o Saci, do autor, é o primeiro herói negro em livro infantil brasileiro. “O Saci das lendas orais era maldoso, monstruoso, filho do demônio. O Saci bonito, defensor da natureza e amigo das crianças, celebrado atualmente, foi inventado por Lobato. Ele tirou os estigmas (ainda) associados à pele negra e atribuiu ao personagem qualidades como inteligência, bondade e erudição.” Segundo a pesquisadora, o escritor também teria sido o primeiro editor brasileiro a estabelecer cota para autores negros, publicando o livro de estreia de Gabriel Marques, Os condenados (1923).

Outro importante autor de obras infantojuvenis também enfrentou o julgamento do tempo: Mark Twain. Há 10 anos, as novas edições americanas de As aventuras de Tom Sawyer (1876) e As aventuras de Huckleberry Finn (1884) receberam algumas alterações. No primeiro, o personagem denominado de Injun Joe passou a ser chamado de Indian Joe. Injun é um termo obsoleto, como “índio” no Brasil. No segundo livro, uma obra-prima da literatura norte-americana, foi retirada de suas páginas a palavra nigger (em português, “crioulo”), um termo pejorativo para referir-se a pessoas afrodescendentes e hoje proibido de ser mencionado ou escrito nos Estados Unidos. A palavra aparecia 212 vezes na narrativa.

No anúncio das mudanças nas novas edições, o New York Times publicou um editorial contrário à iniciativa: “Nós estamos horrorizados e pensamos que a maioria dos leitores, sejam puristas ou não, também ficarão (...). É impossível ‘limpar’ Twain sem causar danos irreparáveis a sua obra”.

A tradutora Vera Lúcia Ramos, em sua tese de doutorado pela USP, de 2018, defendeu Huckleberry Finn: “A obra ataca o racismo. E como isso se dá? Na caracterização positiva do negro” e o “termo nigger cumpre o papel de denúncia. Twain explicita a maneira desrespeitosa de como os negros eram tratados”. Para Ernest Hemingway, “toda a literatura moderna americana vem de um livro de Mark Twain chamado Huckleberry Finn”.

Segundo os acusadores de Twain, reforça a tese do racismo o fato de ele ter se alistado, aos 20 anos, como voluntário no Exército Confederado, do Sul do país, região que lutava pela manutenção da escravidão. No entanto, três semanas depois, ele decidiu desertar. Já os defensores relembram que, aos 49 anos, o escritor pagou os dois últimos anos de estudos de Warner McGuinn (1859-1937) na Universidade de Yale, em Connecticut, após ter conhecido o então estudante e saber que ele trabalhava bastante para pagar o curso. McGuinn, primeiro aluno negro a cursar a instituição, tornou-se advogado e importante ativista pelos direitos civis dos negros. Ele e Twain ficaram amigos até o final da vida do autor, em 1910.

A literatura infantil, tão importante para despertar a leitura e a visão de mundo, é objeto de estudo a partir de seus títulos mais populares no mundo. Os contos de fadas são os exemplos mais conhecidos de problemas que se estendem a outras formas de arte até hoje. “Fiquei tentada a investigar mais e analisar como eles (os contos de fadas) foram distorcidos, os contos orais primitivos, quando caíram nas mãos daquele grande representante do patriarcado, Charles Perrault. Analisei tudo que vai da oralidade flutuante e criativa – tão defendida pelos gregos e tão bem-apresentada às mulheres de outras culturas – ao poder estratificado de escrita (...) a partir daí assumi a aventura de devolver os contos mais clássicos de Perrault não ao seu modo, mas, sim, para o que eu acho que era a intenção original do antigo narrador oral. Exemplos de liberdade em vez de chamadas para submissão”, disse a autora argentina Luísa Valenzuela em 2001, quando lançou o livro de releituras de contos de fadas Cuento de Hades (1993).

Na história original, Chapeuzinho Vermelho se salva sozinha, mas foi inventada a figura do lenhador e a protagonista se transformou no clichê denominado de “a donzela em perigo”, a ser salva por um homem. Esse antigo mito segue na literatura, no cinema, nos desenhos animados e até nos vídeo games. O tropo (recurso narrativo recorrente na ficção) tem origens na mitologia grega, com a história de Perseu. Andrômeda estava prestes a ser devorada por um monstro marinho, depois de ser acorrentada nua a uma rocha, como sacrifício humano. Perseu mata a fera, resgata a princesa e então a reivindica como esposa.

Na Idade Média, a donzela em perigo era um lugar-comum em canções, lendas e contos de fada medievais. Na virada do século XX, jovens mulheres à mercê de algum vilão ou vitimizadas por algum problema se tornaram o clichê preferido de várias expressões artísticas, como na aventura pulp Tarzan, o homem maio, de Edgar Rice Burroughs (1912), em que Jane é capturada por um macaco gigante. Até em um dos cartazes de recrutamento para a Primeira Guerra Mundial, Destroy this mad brute: enlist (1917), do designer Harry Ryle Hopps, o recurso aparece.

REPRESENTAÇÕES
A iniciante indústria cinematográfica norte-americana se esbaldou nesse clichê. Para os realizadores, era irresistível não cair na tentação do enredo fácil e eficaz. Esse mito aparece em várias produções, como A corrida pela vida de Barney Oldfield (1913), O nascimento de uma nação (1915) – filme inovador em vários aspectos técnicos, mas acusado de ter estimulado o ressurgimento da Ku Klux Klan, que, no enredo, salva a donzela em perigo de um homem negro –, O mistério do Gorila (1930), um dos primeiros desenhos de Mickey Mouse, e em Popeye (1933) – em praticamente todas as histórias, o protagonista recupera Olivia Palito das mãos de Brutus. No mesmo ano de lançamento do desenho do marinheiro que come espinafre para resgatar sua amada, a RKO colocou nas telas King Kong.

O mito da “donzela em perigo” saiu do cinema e da TV e foi parar nos vídeo games. Um vídeo do canal Feminist Frequency, Damsel in Distress: Part 1 – Tropes vs Women in Video Games, faz um apanhado histórico desse advento: “Em 1981, a Nintendo confiou a Shigeru Myiamoto a tarefa de criar um jogo. A ideia seria lançar Popeye. Mas a Nintendo não conseguiu os direitos de uso. O designer criou os personagens inspirado em King Kong, que virou o jogo Donkey Kong. Antes, Myiamoto havia criado o jogo Sheriff, com o mesmo recurso. Anos depois, reciclou os mesmos personagens e criou Super Mario Bros, lançado em 1986. Pauline (de Donkey Kong) se tornou modelo para a Princesa Peach. E o saltador virou um encanador muito famoso. A princesa é excluída das ações e muito raramente se pode jogar com ela”.

No vídeo do canal Feminist Frequency, é resgatada a história de um jogo que nunca foi jogado, pois ia contra a corrente da época: “Em 1999, a empresa de design de jogos Rare fez um título original para a Nintendo 64 chamado Planet Dinosaur. O jogo seria protagonizado por Krystal, uma heroína de 16 anos. Ela viajaria no tempo para lutar contra monstros pré-históricos com seu bastão mágico e salvar o mundo. O jogo nunca foi lançado. O lendário designer de jogos Shigeru Miyamoto e sua equipe reescreveram e refizeram o design do jogo e lançaram-no como Star Fox Adventures para o Game Cube em 2002. Nessa reformulação, de heroína, Krystal vira uma ‘donzela em perigo’ detida em uma prisão de cristal, esperando para ser resgatada pelo novo herói, Fox McCloud. Krystal ganhou uma roupa menor e mais sexualizada. Fox usa o bastão mágico, que antes seria dela, para salvá-la. O tropo da ‘donzela em perigo’ desempodera personagens femininas”.

Em entrevista à Continente, a ativista norte-americana e mulher trans Carolyn Petit, que participa do podcast e canal do Feminist Frequency analisando filmes e jogos, aponta mudanças que vêm ocorrendo nas narrativas dos games: “Nos últimos anos, vimos um afastamento dos antigos padrões limitantes que costumavam dominar as representações de mulheres e pessoas queer nos jogos. As mulheres, por exemplo, já foram uma vez esmagadoramente apresentadas como donzelas em perigo, objetos sexuais e recompensas sexualizadas para o jogador e, embora isso não seja inteiramente uma coisa do passado, os últimos anos viram um aumento significativo de personagens femininas jogáveis que são humanizadas e não sexualizadas, e outras personagens femininas que se apresentam como seres humanos plenos e complexos”.

“Acho que vimos um arco semelhante em relação à representação queer, à medida que as pessoas queer se tornam mais propensas a serem retratadas como uma parte ‘normal’ dos mundos que os jogos oferecem, e não como um grupo apenas para ser ridicularizado, temido ou atacado. Hoje, eu diria que é muito mais comum do que há 15 anos ver personagens queer em jogos para quem sua estranheza é apenas mais uma faceta de sua humanidade, personagens que são apresentados como seres humanos completos que, por acaso, são queer, em vez de serem apresentados como objetos de medo ou ridículo por causa de sua estranheza”, avalia Carolyn.

Alguns desses antigos jogos estimulavam homofobia ou transfobia nos jogadores. “Em Leisure Suit Larry 6, de 1993, um jogo de aventura da Sierra, você, jogando como Larry, conhece uma mulher na praia para um encontro romântico. A ‘revelação’ de que ela tem um pênis – provavelmente uma referência ao filme The crying game (1992) – é usada para choque, nojo e risadas. Enquanto isso, também da Sierra, no jogo de 1993, Police quest: open season, você está em busca de um serial killer travestido, que você pode derrotar ao incendiá-lo com um isqueiro e uma lata de spray de cabelo. Há também muitos jogos em que personagens gays são apresentados de passagem como um pouco de ‘alívio cômico’, onde a ‘piada’ é simplesmente sua homossexualidade estereotipada. Os jogos Grand theft auto, por exemplo, às vezes têm personagens não jogadores genéricos em seus mundos que soltam frases que soam estereotipicamente gays, enquanto também têm outdoors e empresas no ambiente que são ‘piadas’ homofóbicas ou transfóbicas. Ao mesmo tempo, há representações de identidade queer que podem ter sido inicialmente consideradas desanimadoras, mas que alguns membros da comunidade reivindicaram. Por exemplo, os jogos Metal gear solid apresentam um vilão bissexual chamado Vamp.”

De acordo com a crítica, embora o primeiro jogo com a participação dos personagens queer tenha sido lançado em 1989 (Caper in the Castro, em referência ao bairro gay de São Francisco), a presença de avatares queer humanizados começou a se tornar mais proeminente nos jogos comerciais convencionais, tanto de desenvolvedores independentes quanto de grandes estúdios, de fato, no início dos anos 2010: “Gone home, de 2013, sobre duas alunas do ensino médio se apaixonando em meados dos anos 1990, foi, para alguns jogadores queer, uma revelação, pois parecia a primeira vez que eles viam algo parecido com suas próprias identidades e experiências refletidas em um jogo. Então, 2014 nos deu The last of us: left behind, DLC de história para o sucesso de bilheteria do PlayStation, The last of us, no qual os jogadores assumem o papel de Ellie e experimentam, via flashback, sua conexão romântica com sua amiga Riley. Desde então, personagens queer humanizados em jogos têm sido um pouco mais comuns do que eram antes. A sequência de The last of us, lançada em 2020, mostra Ellie em um relacionamento com sua namorada, Dina, e apresenta um personagem coadjuvante trans em Lev. Outros jogos de alto perfil comercial bastante recentes com personagens queer incluem os RPGs da BioWare (os jogos Mass Effect e Dragon Age), Overwatch, vários jogos recentes de Assassin’s Creed, Apex Legends, Life is strange e muitos outros”.

Após citar alguns video games, Carolyn faz uma ponderação: “Quero mencionar que quando critico um jogo, ou um filme ou qualquer trabalho, por perpetuar estereótipos prejudiciais sobre pessoas queer, ou mulheres ou membros de qualquer outro grupo, não é realmente sobre o jogo individual, mas sobre o maior padrão de representações nocivas na mídia, em que qualquer obra é sempre uma pequena parte. Se vivêssemos em uma sociedade verdadeiramente igualitária e tivéssemos um cenário de mídia em que as pessoas queer tivessem sido historicamente representadas na medida completa de nossa humanidade, a representação ‘negativa’ ocasional aqui e ali provavelmente não importaria muito. É o fato de vivermos em uma sociedade onde forças como homofobia e transfobia são muito reais, e onde muitas pessoas absorvem atitudes negativas sobre grupos marginalizados de padrões generalizados na mídia, que torna tais representações prejudiciais”.

A observação de Carolyn se refere a padrões que criam ou reforçam estereótipos e preconceitos de uma forma geral. Isso também se dá no cinema. E nele, se existe o mito do “homem salvador”, também existe outro mito bem mais específico, o do “branco salvador de outras etnias”. Ele aparece em filmes diversos, como O último samurai (2003), Diamante de sangue (2006), Green book, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2019, e Histórias cruzadas, uma das maiores bilheterias de 2011.

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