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“O artista deve lutar contra as armadilhas da dependência”

TEXTO Débora Nascimento

01 de Setembro de 2015

Siba

Siba

Foto José de Holanda

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 177 | set 2015]

CONTINENTE
Por que a decisão de fazer De baile solto por conta própria, sem lei de incentivo? De que forma isso interferiu no processo de realização do disco?
SIBA Foram vários os motivos. O principal foi um certo incômodo com a posição central que o financiamento acabou ocupando na produção independente de música no Brasil. Assim, desde o início do processo de produção, fui adiando e resistindo à ideia de me render aos editais. Mantive o foco no processo criativo, ao mesmo tempo em que tentei formular um projeto realizável com pouca grana. Na hora de fazer o disco, não tinha dinheiro suficiente, mas estava rodeado de gente altamente envolvida e o projeto está se pagando aos poucos com orgulho e dignidade. Não sou contra o financiamento público para a cultura, pelo contrário, em muitos momentos foi muito importante ter acesso a isso no desenvolvimento de meu trabalho, mas acho que o artista deve lutar contra as armadilhas da dependência.

CONTINENTE Você considera que os lançamentos estão atrelados a esse calendário de financiamento?
SIBA É claro que uma agenda de financiamento acaba induzindo a de produção. Vivemos, até recentemente, uma longa temporada de facilidade, de muita oferta de patrocínio e isso, de alguma forma, acabou dominando o horizonte de possibilidades de articulação e iniciativa. No caso da vasta produção musical que fica de fora dos padrões restritos das rádios e TVs, parece-me que ficou fácil produzir, mas continua difícil circular de forma independente, numa escala maior. E a promoção, apesar de facilitada enormemente pela internet, nem sempre consegue expandir a visibilidade de um projeto de um modo proporcional ao seu potencial.

CONTINENTE Isso tem a ver também com a frase que colocou no seu site:“negar ao dinheiro o lugar central que lhe permitimos ocupar em nossas vidas”?
SIBA Uma das ideias centrais do disco é o questionamento do desenvolvimentismo a todo custo como valor central, como meta pessoal e social. O fato de não podermos parar tudo e saltar fora do capitalismo com o qual estamos todos comprometidos em algum nível não deve nos impedir de pensar alternativas, mesmo que pequenas. Nisso, eu acho que as culturas populares e as chamadas comunidades tradicionais têm muito a nos dizer. Em relação ao disco, tê-lo feito dessa forma foi coerente com o que o seu discurso propõe. Não fiz o disco sem patrocínio para poder falar dessas coisas, mas o discurso do disco ganha força sem a logomarca de uma empresa, um governo de estado, um ministério da cultura.

CONTINENTE O seu disco foi direto para download gratuito. Você não acredita mais nas vendagens de discos físicos?
SIBA A vendagem de disco físico funciona bem para mim. Nossa loja virtual não para nunca. Depois do show, que é um momento especial de contato do público com o artista, acontece uma coisa muito gratificante, que é presenciar, nas pessoas, o prazer de levar para casa um disco que tem a ver com uma apresentação ao vivo que acabou de gerar um estado de espírito diferenciado nelas. Vender disco é um negócio pequeno, um dinheiro “pingado”, mas de retorno bom. A disponibilização para download é importante porque potencializa a escuta da obra de um jeito infinitamente mais rápido e abrangente, pois as pessoas baixam, ouvem, compartilham e multiplicam o seu alcance. Quem gosta de comprar disco não deixa de fazê-lo só porque baixou. E quem não compra não vai comprar mesmo, mas pode ouvir.

CONTINENTE Você, que está no mercado há mais de 20 anos, como o avalia hoje?
SIBA Eu, que venho dos anos 1980, quando fiz a opção de risco de ser artista, de viver a partir do meu próprio trabalho, posso dizer que vivemos um momento de muitas possibilidades, pois nos anos 1980 era loucura se assumir artista e viver da própria obra. Mas é impossível não notar que não conseguimos estabelecer um mercado realmente independente e sustentável para a música, depois de tanto tempo. Ainda está por vir uma política para a cultura que, no caso da música, fomente o empreendedorismo e não a dependência de patrocínio. Para a cultura popular, a coisa é ainda mais complicada, pois esta ocupa uma posição indigente na cabeça dos nossos representantes. O consolo é o espaço múltiplo da internet que sempre traz, ao menos potencialmente, a chance de novas estratégias a cada dia.

CONTINENTE Avante era mais confessional e De baile solto, digamos, mais político. Isso foi intencional ou retrata o momento que está vivendo?
SIBA Avante foi um retrato de pessoa fragmentada, que olha para si e tenta recompor um todo qualquer. De baile solto é um quadro incompleto de alguém que olha ao redor e tenta dar conta da complexidade que o rodeia. O ponto de partida é a recente história de perseguição policial aos maracatus da Mata Norte de Pernambuco, um acontecimento local, mas de grande significado simbólico, por reunir temas como políticas de segurança pública e racismo, discriminação, controle e manipulação dos modos de organização populares, apropriação do “patrimônio imaterial” popular por parte do Estado. No momento do ápice desenvolvimentista pernambucano, a forma de expressão cultural mais autêntica da população mais pobre sofreu a pressão restritiva mais forte da sua história conhecida.

CONTINENTE Li que você considera haver no maracatu de baque solto uma postura rock’n’roll. Gostaria que discorresse sobre isso.
SIBA O baque solto tem em comum com o rock os elementos expressivos que são marca da diáspora africana: música, dança, poesia, teatro e artes plásticas conectados num todo indivisível, ritmo, intensidade, gosto pela distorção e volume alto, presença corporal, incorporação do ruído e do grito etc. Comparando o baque solto com o rock, tento estabelecer uma conversa que, de outro modo, vai ser guiada por referenciais pejorativos como folclore, raiz e, mesmo, cultura popular. Curiosamente, quando levei pessoas da Europa, dos EUA ou do Japão a um terreiro de maracatu, muitas vezes músicos ou artistas de longa estrada, fui testemunha da possibilidade de leituras mediadas por um conceito de tradição que não pressupõe o “perdido no passado”. No Brasil, tradição só ocupa o presente se for bluessouljazz

CONTINENTE Percebo que há poucos artistas da nova geração que recebem essa influência da cultura popular pernambucana. O que acha disso?
SIBA Eu não vivo fazendo essa conta e acho que as pessoas não têm que se obrigar a se referenciar na cultura popular. Mas não posso deixar de pensar que ignorar totalmente o que acontece nos subúrbios do Recife ou no interior do estado demonstra uma boa dose de arrogância, desprezo, ignorância e preguiça, porque esses modos de expressão locais têm uma força tão grande na constituição do lugar, que é inimaginável pensá-lo sem a presença deles. Assim, acabo achando sempre que falta alguma coisa em quem desenvolve um trabalho artístico em Pernambuco sem levar em conta, no mínimo, o incômodo que sente ante a vitalidade da cultura popular.

CONTINENTE Você acredita que, de alguma forma, está conseguindo quebrar o preconceito que as pessoas tinham ou têm em relação à cultura popular?
SIBA Quem tem realmente preconceito preza por ele e o cultiva. É um tipo de ilusão de superioridade que está muito relacionado ao racismo velado à brasileira, esse que “não existe” e que é a base para quase todos os modos de segregação que cultivamos há séculos como coisa natural. No caso da cultura popular, acho que precisaríamos começar banindo todo um vocabulário de palavras pejorativas como folclore, raiz, manifestação e até mesmo cultura popular, para, quem sabe, oferecer um lugar mais digno a cada uma dessas tecnologias sociais e artísticas que tanto têm a oferecer a um país que se afunda cada vez mais em seu sonho de enriquecer, esterilizando tudo ao seu redor. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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