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Diretas: O renascimento do Brasil

Com a redemocratização, o desejo de liberdade se manifestava através do humorismo e da arte, expressões pelas quais se revive o espírito da época

01 de Março de 2014

Charge de Ricardo Melo

Charge de Ricardo Melo

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 159 | mar 2014]

Em 1984, os Titãs estreavam com um álbum que levava
o nome da banda. A quarta faixa se chamava Go back e, composta por Sérgio Britto, trazia a íntegra do poema homônimo de Torquato Neto (1944-1972). Os versos denotavam o pessimismo no Brasil, então sob o jugo da ditadura militar: “Não é o meu país/ é uma sombra que pende concreta/ do meu nariz em linha reta”. Torquato se suicidou durante o governo de Emílio Garrastazu Médici, 28º presidente e o mais incisivo e violento no combate às guerrilhas urbanas e rurais que ousavam se contrapor ao regime. Doze anos após a sua morte, uma banda novata usava suas palavras para sugerir outro diagnóstico do mesmo país: “...de repente a madrugada mudou/ e certamente aquele trem já passou/ e se passou, passou daqui pra melhor, foi!/ só quero saber do que pode dar certo/ não tenho tempo a perder”.

A ditadura ainda persistia, encabeçada pelo general João Baptista Figueiredo, mas a campanha pela realização de eleições presidenciais diretas, abraçada pela nação no mote Diretas Já, mobilizava milhares de pessoas e repercutia nas rotinas e na cultura que se produzia e se consumia por quem passara duas décadas sem o direito de votar. “Havia um sofrimento acumulado de 20 anos, as pessoas tinham sido alijadas de tudo, invadidas dentro do seu próprio país, mas já não havia o medo. Figueiredo era péssimo e a ditadura, uma farsa com hora para acabar. O Rei da Notícia nasceu nesse clima e com a pretensão de criar os próprios enunciados”, conta Clériston Andrade, cartunista, professor universitário e fundador do jornal lançado no Recife em outubro de 1983.

O Rei da Notícia durou até 1987, com uma tiragem “mais ou menos” mensal de mil exemplares, a influência do carioca O Pasquim e uma equipe que incluía Geneton Moraes Neto, Amin Stepple Hiluey, Paulo Santos de Oliveira, entre outros. Era um jornal que “não queria derrubar o regime, não era ligado a nenhum partido e dava liberdade total aos colaboradores”.

“Mas o próprio fato de termos nos reunido e bolado um jornal já indica que os tempos eram outros. Por isso, escolhemos este símbolo, um macaco com a coroa na bunda, que achamos em um livro velho, de autoria desconhecida. A ironia de um rei que não sabia onde colocar a coroa é uma crítica ao poder ilegítimo, um rei que no título do jornal verbalizava a figura do general Figueiredo”, relembra Clériston. Na época, ele trabalhava como chargista do Diario de Pernambuco, no qual também publicava quadrinhos problematizando questões da época, e era segundo-tenente da reserva do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Recife), “lugar onde passei anos sem consciência do aviltamento que era a ditadura”, afirma ele.

Em agosto de 1984, a Emenda Dante de Oliveira já havia sido derrotada, adiando o desejo de ir às urnas para escolher o presidente. Contudo, a nova configuração política e social do Brasil era irrevogável. Daí o escracho do número inaugural (bem como das edições subsequentes) do Papa-Figo, outro periódico surgido no Recife.


Graúna, cartum de Henfil, e a pressão política descontraída. Imagem: Reprodução

“O humor foi a grande saída para driblar a censura da ditadura. Quando os jornais adotaram a charge, isso ficou ainda mais evidente. Henfil dizia: ‘é a mão do povo que desenha’”, afirma Manoel Bione, psiquiatra, médico do trabalho e um dos três pais do Papa-Figo, ao lado do cartunista Romildo Alves Lima, o RAL, e do jornalista José Teles.

Bione diz que sua “veia de humor e ânsia de liberdade” acompanham-no desde sempre. Conheceu RAL em 1974; juntos criaram A Xepa, outro humorístico. “Foi a pré-história do Papa-Figo. Depois, publicamos uma página no Jornal da Semana. Durou 33 números, morreu com a idade de Cristo”, recorda. RAL não esconde que a vontade era emular o emblemático hebdomadário de Jaguar, Sérgio Cabral, Ivan Lessa e Millôr Fernandes, do qual tanto ele como Bione eram colaboradores e admiradores.

“A gente queria fazer O Pasquim daqui. Fazíamos uma sátira aos jornais locais e aos políticos porque já era possível, já tínhamos essa liberdade. O Papa-Figo era feito numa mesa da churrascaria em frente à minha casa”, rememora. “Virou uma coqueluche. A gente chegava na Livro 7, na sexta-feira, para distribuir e já tinha gente esperando. Quem viveu a ditadura sabia o que significava ter os ventos da liberdade soprando no país”, acrescenta Bione, uma vez admoestado por um político local não por tê-lo achincalhado e, sim, por nunca tê-lo mencionado no jornal. Ser vítima da mordacidade do Papa-Figo era símbolo de status, prova do quão revigorantes eram os idos de 1984. Em todas as regiões e searas artísticas brasileiras.

“Em 1984, o cinema brasileiro viveu um ano de ouro. Eduardo Coutinho venceu o internacional FestRio com Cabra marcado para morrer. Nelson Pereira dos Santos causava sensação com Memórias do cárcere. Sílvio Tendler lotava salas com Jango, um documentário visto por quase 800 mil pessoas. As sessões de Jango, e fui a várias delas, eram missas leigas, atos de civismo. Na saída, as pessoas se abraçavam, conversando sobre o ‘mundo novo’ que chegaria com o fim da ditadura militar. Os três filmes foram para o Festival de Havana e venceram os prêmios principais: Memórias ganhou o Coral de melhor ficção, Cabra, o de melhor documentário, e Jango, o prêmio especial do júri. Nunca mais isso se repetiria, em Havana, para o Brasil ou para outra cinematografia latino-americana”, testemunha a jornalista, pesquisadora e escritora Maria do Rosário Caetano.

Morando em Brasília, Rosário encarou a estrada para participar de dois lendários comícios em prol das Diretas na capital paulista; um, na Praça da Sé e, outro, no Vale do Anhangabaú. No ocaso da ditadura e sem o temor da repressão, a política era o “alimento cotidiano”. Ali, Cabra marcado para morrer irrompe nas telas com uma força até hoje impressionante.


Na metade dos anos 1980, surgiu no Recife, o Papa-Figo, periódico que tinha o deboche como princípio. Imagem: Reprodução

“A principal personagem era dona Elizabeth, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, mãe de quase uma dúzia de filhos, que saía das Ligas Camponesas, na Paraíba, para viver como lavadeira, sob nome falso, no Rio Grande do Norte. Além de ser nitroglicerina pura para nossas vidas politizadas, o filme de Coutinho realizava um potente inventário do Brasil de 1964 até 1984, personificado na imagem miúda e aparentemente frágil de dona Elizabeth. Fertilizou nosso imaginário de tal forma, que, hoje, tempo de descrença política e fragmentação cultural, poucos podem entender”, argumenta.

Não era apenas o cinema que expressava a ânsia de transformação. Na música, Os Paralamas do Sucesso bradavam em Fui eu, do disco O passo de Lui: “os carros passam – vêm e vão/ Eu dobro a esquina/ Eu vou na onda/ Pego carona na multidão”. Havia o sentimento de coletividade. Para artistas e público, após as trevas, era hora de buscar a luz.

GERAÇÃO 80
Nada mais solar do que Como vai você, geração 80?, coletiva aberta no Parque Lage (RJ), em julho de 1984, reunindo 123 artistas no que o curador Marcus Lontra descreve como “a primeira grande instalação artística do Brasil”.

“Era um clima de festa, uma lufada de juventude numa época em que a gente tinha mais é que se expor, botar a cara nas paredes. Na mostra, a gente queria todas as tribos, os punks e os panquecas, e isso só foi possível menos por causa da luta pelas Diretas Já e mais pela eleição do Brizola, em 1982. Só pudemos fazer essa exposição porque o Brizola era o governador e o vice era o Darcy Ribeiro”, aponta o carioca, que aos 28 anos assumiu o Parque Lage por incumbência de Darcy (1922-1997), que também era o secretário de Ciência, Cultura e Tecnologia do governador Leonel Brizola (1922-2004).

Ele, Paulo Roberto Leal (1946-1991) e Sandra Magger assinaram a curadoria de Como vai você, geração 80?. No ano anterior, Lontra e Leal haviam sido jurados do Salão Nacional de Artes Plásticas. Outro curador, Paulo Herkenhoff, era diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas da Fundação Nacional das Artes – Funarte. “Num determinado momento, durante nossas viagens, reparamos que o fenômeno que víamos no Rio de Janeiro, que era de um retorno à pintura, estava, no Brasil todo. Eram vários artistas começando a trabalhar com mídias tradicionais e a discutir gênero, etnias. Um belo dia, a gente viu que tinha que fazer uma exposição”, narra Lontra.


Seguindo a mesma linha do Papa-figo, O Rei da Notícia também surgiu na capital pernambucana, nos anos 1980. Imagem: Reprodução

Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Leda Catunda, Luiz Pizarro, Victor Arruda, Luiz Zerbini, Leonilson (1957-1993), Jorge Guinle (1947-1987) e Alex Vallari (1949-1987) foram alguns dos artistas selecionados e cujas carreiras foram impulsionadas pelo evento.

O alagoano Delson Uchôa foi um dos participantes. “A exposição cobriu a produção dos jovens artistas brasileiros e foi surpreendente descobrir a diversidade e a qualidade do que era feito naquele momento. O Brasil parecia ter acertado o passo com a arte contemporânea universal, começávamos a viver intensamente a pós-modernidade”, considera. Suas duas obras estavam em consonância com o espírito livre intrínseco à mostra. “A festa no céu era uma pintura no teto da escadaria que dava acesso para o terraço, e Você prefere Zorro ou dom Diego? propunha um diálogo, um jogo, uma guerra com os adereços dos dois personagens que eram o mesmo sujeito: espada, bengala, capa, luva, máscara. Ação e processamento intelectual lutando eternamente entre si, em torno da marca do Zorro, com rasgo em Z no centro da tela”, detalha.

Como vai você, geração 80? fez mais do que compilar artistas, atestar possibilidades estilísticas ou apontar caminhos para as artes visuais.

Como é impossível não perceber na arte uma tradução do espírito do tempo, naquele ano, o Brasil, prestes a se despedir da ditadura, refletia-se nas pinturas, nos filmes, nas músicas, no humor e, principalmente, na acolhida por um público carente, a quem a fruição artística na sua inteireza havia, de várias formas, sido negada por duas décadas de censura. A arte, talvez como em nenhum outro período da história recente do país, catalisava um sentimento de união.

Afinal, era o fim do tempo em que “dormia a nossa pátria mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações”. Também de 1984, Vai passar, de Chico Buarque, tornou-se hino da redemocratização, uma convocação para que os brasileiros, em uníssono, saíssem de casa para reencontrar o país. “Meu Deus, vem olhar/ vem ver de perto uma cidade a cantar/ a evolução da liberdade/ até o dia clarear”. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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1984-2014 - Arte e democracia no Brasil

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