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Altiva e corajosa, a despeito de ideologias

A professora Socorro Ferraz contou com a ajuda de Maria das Dores de Oliveira, que trabalhava na sua casa, para encarar os primeiros anos do golpe

TEXTO Samarone Lima

01 de Março de 2014

Historiadora teve várias pessoas da família presas durante a ditadura

Historiadora teve várias pessoas da família presas durante a ditadura

Foto Diego Di Niglio

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 159 | mar 2014]

Membro Comissão da Verdade e professora de História da UFPE
, Socorro Ferraz teve uma trajetória de militância política junto com o marido, Fernando Barbosa. Após o golpe, houve um momento em que estavam quatro pessoas da sua família presas: o pai, o irmão, o próprio marido e o cunhado.

Mas uma recordação forte que ela guarda com especial carinho e respeito é a de Maria das Dores de Oliveira, uma mulher simples, de origem humilde, que trabalhou durante muitos anos em sua casa. Era 20 anos mais velha que Socorro, tinha experiência no ramo de hotéis, era sindicalizada, não aceitava trabalhar aos finais de semana, muito menos no Carnaval. Nunca pertenceu a nenhuma organização que lutou contra a ditadura, certamente não imaginava quem era Karl Marx, o caráter da revolução brasileira, o que seria o “foco guerrilheiro”, o “cerco da cidade pelo campo”, motivo de discussões entre as organizações.

Mas era altiva, corajosa. Começou a acompanhar, antes mesmo do golpe, as reuniões que aconteciam na casa de Socorro, com os camponeses, lideranças populares. Após o golpe, ficou chocada com o tratamento dado àqueles homens que lutavam por seus direitos e pela reforma agrária.

Socorro e o marido ajudavam os que foram presos. Mantimentos, alguma roupa, material de higiene. Como Fernando e ela eram muito visados, quem poderia levar essas coisas às diferentes prisões do Recife?

–“Pode deixar comigo, dona Socorro, eu resolvo isso”, disse Maria das Dores.

Levava os mantimentos, dizia que era tia de um, prima de outro. Aproveitava para pegar informações, saber como estava a “barra” nas prisões, quem tinha sido torturado, o estado de saúde, necessidades urgentes, um recado para a família.

Numa dessas viagens solidárias, levando frutas para o camponês Amaro Félix Pereira, o “Procópio”, preso em um quartel em agosto de 1973, foi informada de que ele tinha sido solto e “estava na casa da família”.

Maria não perdeu tempo. Com o endereço, foi imediatamente à casa de Amaro. Ele não tinha aparecido. E nunca mais apareceu. No relatório da Comissão da Verdade, há o relato de um médico, informando que Amaro foi espancado até a morte por funcionários da Usina Central de Barreiros. A Comissão da Verdade está investigando o caso.

A “MALA SUBVERSIVA”
Socorro contou também com a solidariedade de Maria das Dores logo nas primeiras horas do golpe. Sabia que sua casa poderia ser invadida a qualquer momento. Os livros, material de propaganda, revistas, papéis, seriam motivo para levá-la à prisão.

“A polícia chegando aqui, era um prato cheio”, lembra Socorro. Numa rápida conversa, o destino do “material subversivo” foi resolvido.

“Pode deixar, dona Socorro. Bote tudo numa mala, que eu escondo.”

Maria morava numa pensão, na Rua Leão Coroado, na Boa Vista. Saiu do prédio com a mala enorme, cheia, chamou um táxi. Disse que estava indo embora da casa da patroa. Guardou tudo em seu quarto e foi se desvencilhando do material aos poucos. Se tivesse sido pega com aqueles livros e revistas, Maria teria passado por suplícios, para revelar onde os conseguira. Mas não teve tempo para ter medo.

Numa das vezes em que a polícia chegou, Socorro e Fernando moravam numa casa na Várzea e já tinham as três filhas. Maria foi rápida.

“Saiam, saiam, vão embora que me viro!”, disse, praticamente dando ordens aos patrões. Socorro saiu com uma das filhas e o marido, pelos fundos da casa. As outras duas, já maiores, ficaram com a cúmplice.

Maria soltou imediatamente os dois cachorros, que ficaram perto do quarto das crianças. Quando os policiais entraram, disse que o casal tinha saído de casa logo pela manhã, numa viagem de emergência.

–“Estamos aqui na frente desde cedo e não vimos ninguém saindo”, retrucaram os policiais.

–“Então é porque não prestaram atenção”, respondeu ela.

–“Num momento desses, ter em casa uma pessoa que é cúmplice, é algo muito importante”, lembra Socorro.

Em 1973, Maria das Dores teve um AVC, e ficou em um abrigo da Igreja Católica. Socorro contratou uma mulher que tinha sido das Ligas Camponesas para cuidar dela. No ano seguinte, Socorro e Fernando foram estudar na Alemanha, levando as filhas. Na volta ao Brasil, em 1980, a historiadora visitou a amiga pela última vez. Pouco depois, ela morreu. Mas nunca foi esquecida. 

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