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Ele nem imaginava que tratar a mulher do general teria tanta serventia

TEXTO Samarone Lima

01 de Março de 2014

Psiquiatra se arriscou para salvar a vida de Sylvia Montarroyos, que chegou ao Ulysses Pernambucano em estado catatônico

Psiquiatra se arriscou para salvar a vida de Sylvia Montarroyos, que chegou ao Ulysses Pernambucano em estado catatônico

Foto Diego Di Niglio

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 159 | mar 2014]

Jamais passaria pela cabeça do psiquiatra Othon Bastos
que, um dia, ele iria viver uma situação-limite como aquela – salvar uma vida que estava sendo destruída pelas torturas. A vida formava um quebra-cabeça que parecia difícil de acreditar.

Ele tinha concluído o curso de Medicina aos 23 anos, em 1959, mas, três anos antes, cumprira suas obrigações no CPOR, saindo como 3º sargento. A primeira oportunidade de trabalho que surgiu, no segundo semestre de 1959, foi uma vaga para a psiquiatria do Hospital Geral do Exército (HGR), onde estava o núcleo do IV Exército. Fazia atendimentos psiquiátricos e assinava laudos. Seu vizinho era um marechal conhecido pela baixa estatura, andar desengonçado, ausência quase completa de pescoço, um cearense chamado Humberto de Alencar Castelo Branco.

Estava em sua sala, quando recebeu um telefonema. Um dos assessores de Castelo Branco o convocava para uma missão delicada. A esposa do marechal, Argentina Castelo Branco, estava com câncer terminal e não conseguia dormir. Precisava de alguém que a fizesse relaxar. Foi a primeira vez que não estacionou seu carro no HGR, e, sim, defronte à casa do marechal. Fez uma avaliação e constatou rapidamente o quadro.

“A ansiedade dela é natural, reativa à situação. O que cabe aqui é uma sedação, para tirar a dor. Ela não dorme porque está com muita dor.”

O nome do remédio era morfina. Ela foi medicada, e o problema foi resolvido. Othon ainda voltou à casa do marechal mais uma vez, mas pouco tempo depois, o marechal ficou viúvo.

“Ele tinha uma verdadeira adoração por ela. Ficou muito grato a todos os médicos que a acompanharam.”

As pedras se moviam. Depois de alguns meses no HGR, Othon foi estudar na França, retornando ao Brasil no final de 1963, quando o clima político era de absoluta tensão. O golpe já estava sendo gestado.

Othon passa a trabalhar como psiquiatra no Hospital Pedro II, tem seu próprio consultório, no centro do Recife, e também assume o posto de médico da assistência do “Hospital de Alienados”, antigo nome do Hospital Ulysses Pernambucano, a Tamarineira, no qual ficaria somente alguns meses.

Do seu consultório, assiste a toda a movimentação do golpe. Nas primeiras horas do dia 1º de abril, procura os amigos que seriam fatalmente perseguidos. Leva para a casa de seu pai um grande amigo, Miguel Newton Arraes de Alencar, seu colega de faculdade. Alguns dias depois, usa seu fusca para levá-lo a Itabaiana, na Bahia.

Num dia que não consegue precisar, em dezembro de 1964, chega para o plantão na Tamarineira e recebe uma informação.

–“Doutor, tem uma moça que foi trazida ontem à noite pela viatura da Rádio Patrulha. Ela é estudante, está em estupor”, informou uma enfermeira.

Othon foi ao encontro da jovem.

“Ela estava imóvel, mal abria os olhos, parada. Não comia nada, não bebia, estava com o corpo todo marcado. Estava catatônica, uma morte em vida. Dava pena. Ela fora deixada lá para morrer”, lembra Othon.

O diagnóstico era “estupor pós-traumático por maus-tratos, sevícias sexuais, falta de alimentação”. Pesava 23 quilos.

“Quando a vi, eu disse – se ela ficar aqui, vai morrer.”

Sem pensar nas consequências do que iria fazer, assinou um laudo, transferindo-a para o Hospital Pedro II, onde também trabalhava, e que tinha um atendimento-modelo em psiquiatria. Com a ajuda de uma enfermeira, colocou Sylvia em seu fusca.


Comissão da Verdade investiga o uso do Hospital Ulysses Pernambucano para internar presos políticos. Foto: Diego Di Niglio

Graças ao atendimento imediato, dois dias depois, ela retornou. Othon perguntou:

–“Minha filha, o que houve com você?”

–“Não me bata, não me bata”, pedia ela.

–“Somos médicos, queremos saber o que houve com você.”

–“Aqui é o Dops?”

–“Não, aqui é o Hospital Pedro II.”

–“Foi no Dops, na polícia...”

–“Quem foi que te bateu?”

–“Muita gente.”

–“Mas... o seu carrasco?”

–“Tinha um senhor, de olhos claros, que todo mundo abria as portas para ele.”

Quase 50 anos depois, em depoimento à Comissão da Verdade, Othon Bastos recordou o delegado influente, que tinha olhos claros, e viria a ser secretário de Segurança Pública, em 1971, Armando Samico. Todos saíam da frente quando ele chegava.

Sylvia foi tratada, voltou para a Tamarineira, mas ficou em outra cela, onde estavam os menos perigosos. Sobreviveu e conseguiu sair do Brasil em abril de 1966.

VÃO PRENDER MEU PAI?”
Dois dias depois de atender Sylvia, um jipe estacionou defronte à casa de Othon Bastos, com dois soldados e um mensageiro. Quando um deles chegou à porta, o filho de Othon, de quatro anos, perguntou:

–“Ô, senhor soldado, o senhor veio prender meu pai?”

Era uma intimação para comparecer ao IV Exército. Ao chegar à sala onde teria que prestar esclarecimentos, o médico se adiantou.

–“Quero lhe comunicar que sou 2º tenente da R2, da reserva médica.”

O oficial queria saber de tudo. Queria saber o motivo do tratamento à presa.

–“O senhor sabia que ela era uma presa política?”

–“Não. Nunca tive nenhuma participação política.”

Numa das respostas, Othon foi direto.

–“Foi uma das piores coisas que eu já vi como médico. Era uma morte iminente, e alguém iria responder por isso. O que fiz não tem caráter político. Foi um gesto humanitário, ético, de cidadania.”

Ele foi liberado. Alguns anos depois, soube da “recomendação sigilosa” do marechal Castelo Branco, o primeiro a assumir o comando do país após o golpe. Todos os médicos e enfermeiros que tinham cuidado de sua mulher, Argentina Castelo Branco, deveriam receber um “tratamento especial”. Como não sabia da recomendação, Othon foi ao IV Exército levando algumas roupas e coisas pessoais, numa sacola.

“Pensei que iria ser preso”, lembra.

O encontro de Sylvia com a Comissão da Verdade rompeu um silêncio público de quase cinco décadas. O psiquiatra que a livrou de uma morte iminente revelou publicamente ter sido um profissional que não se acovardou diante de um regime que dava início a torturas sistemáticas, que resultariam em assassinatos e desaparecimentos.

Os heróis anônimos, que recusam este substantivo, foram muitos, num período em que a solidariedade poderia resultar em prisão, tortura, demissão do trabalho.

“Parece um ato de bravura, mas foi de humanidade. Tive até medo de ficar lá, preso, mas fiz porque era um ato humano, de cidadania. Isso é a ética médica – o paciente está em primeiro lugar. Nas entrelinhas, tinha uma ação política, mas eu não era um militante. Muita gente ajudou”, lembra Othon. 

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