Arquivo

Siba: O caminho ao posto de mestre

Ex-integrante do Mestre Ambrósio e do Fuloresta do Samba firma-se, com seu segundo disco solo, 'De baile solto', como um dos melhores compositores de sua geração

TEXTO Débora Nascimento

01 de Setembro de 2015

Siba

Siba

Foto José de Holanda

Dez de vários artistas pernambucanos estão agora divulgando seus novos discos. Embora sejam recém-lançados, estão recebendo excelente repercussão do público e da crítica. Esse retorno é consequência de um trabalho que não começou hoje, mas que vem de uma longa formação. Também indica que a criatividade está conseguindo superar os entraves do mercado e gerar produção e patrimônio artístico. nas mais diversas linguagens musicais. Abordamos a carreira de uma dezena dos profissionais da música pernambucana, que lançaram discos por esses dias: Alessandra Leão,D Mingus, Eddie, Graxa, Johnny Hooker, Lirinha, Matheus Mota, Zeca Viana, Zé Manoel e Siba, que abre a série de textos a seguir.

O primeiro som que se escuta nos dois álbuns solo de Siba é o de uma guitarra. Em Avante, de 2012, a aparição dela causou estranheza em quem estava acostumado a ver o artista encostar uma rabeca no ombro esquerdo por quase duas décadas. Agora, em De baile solto, o instrumento ícone do blues e do rock segue com força nos arranjos do músico e, dessa vez, mais a serviço de gêneros tradicionais nordestinos, como o protagonista desse álbum: o maracatu de baque solto.

Surgido em Pernambuco, no século 19, o ritmo vinha sendo tratado como uma peça de museu, ganhando visibilidade somente no período carnavalesco. Nos anos 1990, assim como ocorreu com outras expressões da música popular pernambucana, o baque solto passou a receber mais atenção, principalmente após virar alvo do interesse de jovens artistas como Siba e Chico Science, que tornou icônica a vestimenta do caboclo de lança no videoclipe da sua versão de Maracatu atômico, de Jorge Mautner.

Em meados daquela década, Siba já havia deixado de lado a guitarra, o instrumento que o fez querer seguir, aos 14 anos, a carreira musical. O contato com o cavalo-marinho tinha despertado nele a vontade de tocar rabeca, que acabou se transformando numa espécie de emblema do músico, junto às roupas coloridas, chapéu e bigode – bem ao estilo dos mestres dessa manifestação. Mas, em 2012, ele surpreendeu todos ao deixar de lado essa indumentária e a rabeca, cuja execução já dominava.

O retorno à guitarra, segundo o artista, foi árduo, exigiu um reaprendizado. No entanto, esses dois discos evidenciam que o regresso teve uma inesperada aliada, a bagagem adquirida com os ritmos oriundos dos folguedos pernambucanos. O seu cuidadoso manejo do instrumento, exibido nesses dois últimos álbuns, mostra que essa redescoberta não o fez refém de clichês. Siba usa a guitarra ao modo dos africanos, dos paraenses, como Mestre Vieira, dedilhando as cordas com zelo, criando belíssimos fraseados que surgem, envolvem e acabam por conduzir as músicas, levando-as a alcançar momentos sublimes, como em Três carmelitas.

A faixa é, também, um dos exemplos de sua apurada técnica de letrista. Ele consegue mesclar a experiência da poesia popular, do repente, das toadas do cavalo-marinho e das letras da músicapop e popular brasileira, exibindo domínio de estrofes e rimas, algo evidenciado nas nove composições do álbum, que inicia com o discurso anticapitalista de Marcha macia, uma crítica à aceitação passiva da engrenagem social movida em torno do dinheiro.

Com De baile solto, Siba lança um manifesto poético, paradoxalmente atual e anacrônico, de licença à utopia, mas que necessariamente relembra à plateia e aos próprios artistas o sentido e o objetivo da arte autêntica, profundamente distinta das ambições pecuniárias da indústria do entretenimento. De canto declamado, cheio de orgulhoso sotaque nordestino, permeado por reflexões e lirismo, aquele jovem Sérgio Veloso dos anos 1990, hoje aos 46 anos, se tornou um trovador idealista, um mestre obstinado nas suas convicções, tal como foram os papas do folk Woody Guthrie e Pete Seeger.

Essa música popular oriunda das brenhas, sejam do Brasil ou do mundo, que costuma ser tratada como “folclore”, encontra no músico diálogo possível e produtivo com variados ritmos e instrumentos, como a já citada guitarra influenciada pela sonoridade do Congo, que destila beleza em faixas como a maravilhosa ciranda Mel tamarindo.

PROJETO PESSOAL
Além das duas guitarras (ele e Lello Bezerra), a sua concisa e eficiente banda é formada por bateria (Antonio Loureiro), percussão (Mestre Nico) e tuba (Leandro Gervázio), que ocupa perfeitamente o lugar do baixo – herança adquirida na Fuloresta, grupo formado em 2002 por ele e instrumentistas de Nazaré da Mata, com os quais lançou dois discos e realizou quatro turnês europeias entre 2004 e 2009.

Canções como Mel tamarindo e Meu balão vai voar nos fazem recordar que outros artistas já realizaram intercâmbios sonoros, a exemplo de Paul Simon em Graceland (1986), que inaugurou a expressão world music – rótulo que caberia a Siba no exteriorEntretanto, ao contrário do cantor norte-americano, o pernambucano assume a música da cultura “alheia” não somente como influência passageira de um ou outro álbum e, sim, como uma escola, um projeto pessoal e artístico. Esse contato começou em tenra idade, devido aos familiares naturais de cidades do interior do estado e por ter vivido a infância em Olinda, lugar que aglutina diversas expressões populares, independentemente do período carnavalesco.

Se o début solo, Avante, angariou uma recepção tão positiva, tendo algumas faixas virado hitsde sua carreira, como ArianaPreparando o salto, Qasida e Brisa, agora, De baile solto cumpre bem a sina do “segundo disco”.

Realizada propositadamente sem verbas de lei de incentivo, a obra acabou sendo produzida pelo próprio Siba, que, no anterior, teve o guitarrista Fernando Catatau como coprodutor. O resultado:De baile solto soa mais cru, incisivo e pessoal. Em entrevista à Continente (leia a seguir), na qual fala sobre a carreira, o mercado musical e o segundo álbum, o artista deixou escapar uma autocrítica que denuncia a alma de um perfeccionista: “Quem entra fundo na escuta, desmascara um produtor improvisando um disco de não produtor, meio bruto, meio tosco e, nesse sentido, muito próximo da selvageria do baque solto”. Com tanta música pasteurizada e padronizada por aí, isso está bem longe de ser algo ruim. 

Leia também:
“O artista deve lutar contra as armadilhas da dependência”
Eddie: mais adulta e cosmopolita
Lira: o peso da palavra, do declamador ao autor
Alessandra Leão: Mergulho na produção
Zé Manoel: Talento lapidado pelo piano clássico
Graxa: burilando as possibilidades do lo-fi
D Mingus: A sujeira da sonoridade
Zeca Viana: A capacidade de se reinventar
Matheus Mota: Um olhar sobre o homem comum
Johnny Hooker: Porta-voz das vítimas do amor

veja também

Artes visuais: O papel das instituições

Gênese de uma capa

Mário Pedrosa reeditado