Esse contexto de intensas transformações sociais e culturais reacende uma pergunta que se transformou numa obsessão da nossa literatura: “Afinal de contas, o que é o Brasil?” A busca pela real e verdadeira identidade nacional, a constituição de uma verdadeira cultura “brasileira” retornam com toda a força possível no Movimento Armorial. Com tantos conflitos, tanta transformação e tanta Coca-Cola, a verdadeira “alma” do Brasil estaria ameaçada? Essa foi a inquietação que moveu Ariano Suassuna a escrever A Pedra do Reino, que, sem sombra de dúvidas, é a obra que faz a síntese dos pressupostos armoriais. Podemos dizer que é na literatura que se encontra o “coração” do armorial. Não apenas porque o seu idealizador é um escritor, mas porque foi na prosa e no verso que Ariano Suassuna refletiu as questões fundamentais sobre o movimento. A palavra armorial, por exemplo, aparece pela primeira vez não em 1970, ano de lançamento oficial do movimento, mas, sim, na poesia de Ariano Suassuna, com o poema Canto armorial, escrito em 1950.
LITERATURA DE COMBATE
E que pressupostos seriam esses? Segundo Carlos Newton Júnior, no livro O pai, o exílio e o reino, o armorial queria criar uma cultura erudita a partir da cultura popular, para combater um suposto processo de vulgarização da cultura nacional em decorrência das transformações que foram citadas antes. O armorial possuía duas linhas de ação: recriar uma arte erudita a partir do romanceiro popular nordestino e aproximar essa criação à heráldica, à cultura dos emblemas, dos estandartes e das alegorias.
No caso do romanceiro popular, os escritores deveriam retomar personagens, formas fixas e imagens poéticas da poesia popular, bem como se aproximar de uma certa atmosfera mágica, encantada, épica e barroca, que seriam típicas desse popular. Na proximidade com a heráldica, reside, possivelmente, o grande achado do armorial: os emblemas, os glifos, as alegorias e os esmaltes fazem parte de uma vertente importante da cultura nordestina, seja nos estandartes das procissões e penitências, nos campos de futebol, ou nas estripulias carnavalescas das ladeiras de Olinda, e conferem uma visualidade muito marcante às obras dessa estética.
A poeta Deborah Brennand esteve entre os autores que se agregaram
inicialmente ao movimento. Foto: Arquivo Cepe
O armorial foi, em nossa literatura, o último projeto de matriz regionalista. Não porque aderisse a uma concepção neonaturalista de linguagem, mas, sim, porque vinculava a uma região específica, o nordeste sertanejo, o cerne da constituição de uma identidade nacional e de uma cultura “verdadeiramente” brasileira. Outra não é a tese de Sônia Lúcia Ramalho de Farias, professora do Departamento de Letras da UFPE, que publicou o livro O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna, no qual traça paralelos e afinidades entre o movimento, em especial A Pedra do Reino, e as ideias regionalistas de Gilberto Freyre.
Aproximar o romance de Suassuna do regionalismo significa inseri-lo numa tradição literária que pode ser traçada a partir do Romantismo brasileiro, passando pela Escola do Recife, pelo Manifesto Regionalista de 1926 e alcançando o seu último momento nos poemas e na prosa armoriais. O projeto literário do armorial também é o nosso último projeto “humanista” e “moderno” por excelência: nas décadas seguintes, a literatura contemporânea seria mais fragmentada e proporia projetos mais fluidos e/ou corrosivos. Foi a última tentativa da criação de um mundo coeso, com certa unidade e que pudesse dar conta de uma série de inquietações simultaneamente. Essa energia de agregação em torno de um projeto de país e de cultura não se repetiu em nossa literatura.
Se o primeiro romance do autor, A história do amor de Fernando e Isaura, ainda constitui um exercício, e o seu último romance publicado, o esgotado O rei degolado ao sol da onça caetana, perde-se na vontade de tomar um partido político e cultural, A Pedra do Reino consegue, em vários momentos, um excelente equilíbrio. Quando impera o humor, o mágico, o imagético, a ambiguidade, as visagens e a jurema, o romance faz jus à condição de uma das obras mais importantes da ficção brasileira nas últimas décadas. Há também, nas suas entrelinhas, um senso trágico e uma certa melancolia que lhe acrescentam ótimos sabores (vejam, por exemplo, o capítulo A aventura dos cachorros amaldiçoados). No entanto, quando é preciso explicar em excesso o Brasil, expor e sintetizar os pressupostos do armorial, o romance se desgasta.
POETAS E PROSADORES
Segundo Idellete Muzart Fonseca dos Santos, no livro Em demanda da poética popular, uma série de poetas e prosadores se aproximou de alguma maneira do Movimento Armorial. Os nomes de maior destaque foram Ângelo Monteiro, Deborah Brennand, Janice Japiassu, Marcus Accioly, Raimundo Carrero e Maximiano Campos. Eles foram escritores armoriais? Da leitura da obra desses escritores, percebe-se que a adesão ao armorial foi muito mais em relação ao seu contexto de produção do que à profunda incorporação dos seus elementos estéticos. Dessa forma, sugere-se a hipótese de que a literatura armorial por excelência continua a ser a prosa, a poesia e a dramaturgia de Ariano Suassuna. Isso não impede que os chamemos de armoriais; contudo, há evidência de que, em diversos casos, a estética armorial teve uma influência secundária na constituição das suas obras.
Várias das obras de Suassuna são ilustradas por ele mesmo.
Imagem: Reprodução
Aquele que seria o livro-adesão de Ângelo Monteiro, Armorial caçador de nuvens, apesar da presença de reinos, caçadas, brasões e de formas poéticas populares, sofre muito mais a influência do hermetismo, do Surrealismo, dos problemas propostos pela filosofia (elemento marcante da poética de Monteiro, que já se revela aqui) e, principalmente, de Jorge de Lima. Algo semelhante ocorre com Marcus Accioly. Seu livro Nordestinados, de 1971, é geralmente associado ao armorial. Se aqui a sua poesia e o Movimento Armorial compartilham o interesse em retomar, no erudito, as formas populares (mas esse interesse não parece suficiente para classificar por si só uma obra de armorial), estão ausentes o mágico, o heráldico e a atmosfera de encantamento que também seriam as marcas dessa literatura. Pelo contrário, faz-se presente, do início ao fim do livro, a influência de João Cabral de Melo Neto, assim como o compromisso de mapear, poeticamente, todos os aspectos da cultura nordestina, das pedras às habitações.
Com a obra de Raimundo Carrero, acontece um caminho oposto à de Accioly. Se, neste, a aproximação com o armorial ocorre pelo interesse em construir uma cultura e uma identidade do Nordeste, em Carrero a aproximação se dá na pura imagem. No seu romance de estreia, associado por Ariano ao armorial, A história de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, somos levados a acompanhar uma história de emblemas, cavalos-fantasmas, visagens. Embora a história se passe em uma fazenda, não há nenhum compromisso em pensar o Sertão, problematizar questões sociológicas e políticas do Nordeste, ou criar uma cultura brasileira. Muito pelo contrário: como aconteceria também com Sombra severa, publicado mais de uma década depois, a história de Bernarda Soledade acontece no mundo rural mais intensamente porque nesse espaço Carrero pode desenvolver alguns dos temas que são recorrentes no seu trabalho: a violência, a questão do mal, a sexualidade vivida em seus extremos, a corrosão da própria identidade, o império sobre o Outro. Longe está, já nesse primeiro livro, o compromisso de pensar o nacional.
CONTEMPORANEIDADE
De que maneira o Movimento Armorial ecoa na nossa literatura, hoje? Um nome de destaque é Carlos Newton Júnior, que tem retomado a estética e os pressupostos do movimento em seus ensaios e na sua poesia.
Há pouco tempo, o poeta e dramaturgo pernambucano, radicado na Paraíba, Astier Basílio, escreveu a peça Ariano, que reconta a biografia do criador de Quaderna através de elementos estéticos do armorial. Em seu livro de poemas Searas do sol, uma série de versos possui afinidade com a poética armorial. A partir da década de 1990, no Ceará, o poeta Virgílio Maia também se aproxima do movimento.
O romance de estreia do autor, A história de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, aproxima-se do movimento pela imagística. Foto: Divulgação
Em Pernambuco, dos anos 1980 para cá, vê-se pouca presença da literatura armorial, principalmente no caso da poesia. Nomes surgidos no contexto da poesia independente (também chamada de marginal), como Cida Pedrosa, Luiz Carlos Monteiro e Miró, não têm especial proximidade com o movimento. Da mesma forma, jovens escritores surgidos a partir do final dos anos 1990 e início do 2000, publicados nas duas antologias Invenção Recife, ou nas revistas literárias Crispim, Vacatussa, Entretanto, Interpoética e nos títulos da editora independente Livrinho de Papel Finíssimo, não dão continuidade à estética. Isso também parece ser verdade para grupos como Nós Pós & Freeporto. É digno de nota, contudo, que no romance O grau Graumann (2002), de Fernando Monteiro, e em Galileia (2008), de Ronaldo Correia de Brito, existam algumas críticas ao armorial. No caso do primeiro livro, o discurso de Ariano Suassuna é parodiado; já no romance de Ronaldo, há uma evidente crítica às matrizes regionalistas com as quais o movimento possui afinidades.
E o que as novas gerações de escritores podem aprender com o armorial? Se a constituição do Brasil e de uma cultura nacional já não são preocupações das gerações recentes de criadores, nem dos teóricos atuais, outros aspectos do movimento, como o diálogo com o popular, o exercício da imaginação, das visagens e da sedução dos olhos, a valorização das tradições literárias e o sempre bem-vindo humor, podem se tornar um caminho fecundo de inspiração. São os principais motivos, aliás, para que continuemos a ler o “tijolão”, vulgo de A Pedra do Reino, e que confirmam a relevância da literatura armorial.
CHRISTIANO AGUIAR, mestre em Teoria Literária.
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