Arquivo

Dança: Movimentos corporais a partir dos brincantes

Premissas que motivaram a criação do Balé Popular do Recife reverberam nas coreografias de expoentes como o Grupo Grial e o multiartista Antônio Carlos Nóbrega

TEXTO Liana Gesteira

01 de Outubro de 2010

Criações do Grial refletem a pesquisa com os brincantes populares em suas comunidades

Criações do Grial refletem a pesquisa com os brincantes populares em suas comunidades

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 118 | outubro 2010]

Na dança, o Movimento Armorial também
tem sua participação significativa na ampliação do olhar da sociedade para as práticas corporais dos brincantes e dos artistas populares. Historicamente, Ariano Suassuna sempre buscou estimular as iniciativas de dança que utilizassem símbolos das manifestações populares para a construção de uma arte erudita brasileira. Faz-se necessário refletir sobre quais questões a perspectiva armorial da cultura popular trouxe para o corpo da dança, e como os criadores da área articulam essas informações.

Hoje, o armorial conta com dois representantes sólidos no cenário nacional: o Grupo Grial e o artista Antônio Carlos Nóbrega. Mais conhecido por sua atuação em música, Nóbrega tem reconhecida contribuição para o corpo da dança, a partir dos espetáculos Figural (1990) e Passo (2008). Além disso, tem se dedicado a disseminar as danças populares, a partir da série de documentários intitulada Danças brasileiras, veiculada pela TV Brasil, e das aulas ministradas no seu espaço, o Instituto Brincante, em São Paulo.

A presença da dança no armorial ocorre desde os primórdios de sua fundação. Em 1975, quando estava à frente da Secretaria de Educação e Cultura do Recife, Ariano Suassuna fez sua primeira investida na criação de uma vertente de dança para o movimento, ao fundar o Balé Armorial do Nordeste. Tal iniciativa representou um marco na profissionalização da cena de dança recifense, pois esse foi o primeiro grupo financiado por um órgão público, que pagava salários mensais aos integrantes.

O Balé Armorial do Nordeste teve seu apogeu na montagem Iniciação armorial aos mistérios do Boi de Afogados, que cumpriu temporada em junho de 1976, no Teatro de Santa Isabel. Nele, deu-se a inserção de bailarinos populares num espaço ocupado predominante pela “arte erudita”, ao levar à cena os brincantes do Boi Misterioso de Afogados, do Mestre Capitão Antônio Pereira.


O Balé Armorial do Nordeste foi criado, em 1975, por Ariano Suassuna, então secretário de Educação e Cultura do Recife. Foto: Reprodução

Em 1977, Ariano investiu na criação do Balé Popular do Recife, que durante três anos também foi subsidiado pela Secretaria para pesquisar as danças populares e realizar espetáculos. Posteriormente, o Balé Popular desvinculou-se do Movimento Armorial, e iniciou trajetória autônoma, criando uma metodologia própria de catalogação das danças brasileiras, o método Brasílica. O grupo é responsável por disseminá-lo pelas escolas do Recife.

A experiência profissional desses dois grupos, juntamente com outros fatores, contribuiu para que a trajetória de dança em Pernambuco tivesse a cultura popular como uma de suas principais fontes de criação. Hoje, a dança produzida no Estado é reconhecida nacionalmente, também, por essa vertente. Assim, o Movimento Armorial pode ser considerado como uma importante influência para a constituição profissional da dança local, bem como da difusão das danças populares como matéria investigativa para criação.

A reflexão atual que se faz dessa contribuição, entretanto, é sobre a visão épica da cultura popular proposta pela estética armorial, reconhecida apenas pelas referências ibéricas e mouras na sua constituição. Essa perspectiva insinua uma cultura de raiz única, original, estanque, negando o processo dinâmico de qualquer cultura, ao se relacionar com outras influências ao longo do tempo. No discurso de Ariano Suassuna, fica evidente a negação da inclusão de elementos culturais de outras nações no corpo da arte brasileira.

REELABORAÇÃO
Um olhar mais atento sobre a produção dos atuais representantes da dança armorial aponta para um corpo que reelabora o discurso da cultura popular. Tanto Maria Paula Costa Rêgo, diretora do Grupo Grial, como Antônio Carlos Nóbrega, trazem em suas práticas recentes um olhar mais dinâmico sobre o fazer do artista popular. Essa perspectiva, provavelmente, é decorrente do contato frequente desses criadores com as manifestações e seus ambientes.


O Balé Armorial do Nordeste teve apogeu com Iniciação
armorial aos mistérios do Boi de Afogados, de 1976.
Imagem: Reprodução

Na criação do espetáculo Iniciação aos mistérios do Boi de Afogados, em 1976, o elenco do Balé Armorial do Nordeste, formado por bailarinos clássicos e estudantes de Educação Física, tiveram aulas de caboclinho, pastoril e bumba meu boi. Mas, para isso, os mestres da cultura popular se deslocaram para as salas de ensaio do grupo, sem que o elenco tivesse contato com o ambiente das manifestações que aprenderam. Esse caminho de criação influenciou a cultura popular para que entrasse em cena por seus símbolos e não tanto por sua poética.

As criações de Maria Paula e de Antônio Nóbrega incidem em um contato maior com os brincantes populares em suas comunidades, em seus ambientes de manifestações. Dessa forma, apreendem as práticas corporais desses artistas de modo mais coerente com suas poéticas e absorvem também todas as mudanças que esses folguedos vêm realizando. Bem como influenciam para que essas mudanças aconteçam, como é o caso da inserção da presença feminina no ambiente do maracatu de baque solto, decorrente do contato direto de Maria Paula com o Maracatu Leão de Ouro do Condado.

Em sua tese de doutorado, a professora Roberta Ramos, do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, aprofunda a discussão sobre a relação da dança com a estética armorial. Na conclusão, ela traz uma reflexão interessante para as comemorações de quatro décadas do Armorial: “Um movimento estético só pode perdurar por tanto tempo se, assim como o corpo, for pensado em sua condição viva, na qual é impensável concebê-lo sem movimento, ou seja, sem deslocamentos, mudanças ou pontos de instabilidade”.

Ao que parece, o corpo da dança tem contribuído para que o Movimento Armorial chegue aos 40 anos com um novo fôlego. O grupo Grial e Antônio Carlos Nóbrega conseguiram reelaborar, em suas práticas, o discurso estético desse movimento e, assim, permitem que novos caminhos sejam trilhados pelo corpo armorial. 

LIANA GESTEIRA, jornalista, bailarina, coordenadora do Acervo Recordança. Dedica-se a uma especialização em dança.

Leia também:
"O 'Auto da Compadecida' era uma bandeira armorial"
Música: Ritmos de um rico simbolismo instrumental
Artes cênicas: Um modo brasileiro de representar
Visuais: Um território entre o delineado e o indefinido
Cinema: Marcos de uma tradução imagética

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”