Visuais: Um território entre o delineado e o indefinido
Poucos artistas podem ser apontados hoje como evidentemente armoriais, embora o legado do movimento esteja presente na produção pernambucana atual
TEXTO Diana Moura
01 de Outubro de 2010
detalhe de 'Azougue', de Dantas Suassuna. Tela de técnica mista
Imagem Reprodução
[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 118 | outubro 2010]
As gravuras bem-talhadas de Samico, as telas que misturam uma profusão de tons terrosos de Dantas Suassuna, o universo mágico percorrido por Romero de Andrade Lima. O Movimento Armorial é um fio delicado a unir artistas plásticos de tendências tão diferentes entre si quanto singulares em si mesmos. Quem quiser se arriscar, procure uma só imagem capaz de sintetizar o armorial dentro das artes plásticas e tente explicar por que um deles seria mais representativo que o outro.
Talvez o artista armorial mais conhecido seja Samico, o homem capaz de dar formas fantásticas a uma imensidade de histórias que vagavam soltas no nordeste brasileiro. Monstros, narrativas bíblicas recontadas em cordéis, autos populares, mitologias indígenas vieram se encontrar na cultura popular nordestina e serviram de base ao pensamento pictórico de Gilvan Samico. Considerado o maior gravurista brasileiro da atualidade, não foi com nenhum artista local que Samico aprendeu o rigor e a beleza de sua talha. Foi aluno de dois grandes mestres da xilo, Osvaldo Goeldi e Lívio Abramo, quando residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente.
Para Samico, a face armorial de seu trabalho não está, como muitos pensam, na transformação das capas dos folhetos de cordel em uma composição erudita. O artista explica que já era um xilogravurista quando, numa conversa com Ariano Suassuna, se apercebeu da beleza das histórias populares e decidiu recriá-las a seu modo, numa reinvenção desse imaginário. Desta forma, Samico também ajudou a refundar a xilogravura nordestina, transportando-a do campo rústico (mas não precário) e do funcional (capa do folheto) para dar-lhe uma visibilidade altamente formal, erudita e sofisticada. Ou seja, o artista cumpriu, ponta a ponta, todas as etapas preconizadas pelos armoriais.
FAMÍLIA ARMORIAL
Outros dois importantes artistas do movimento são Manuel Dantas Suassuna e Romero de Andrade Lima. Filho do escritor Ariano Suassuna, Dantas é um dos incontornáveis nomes da atual pintura pernambucana, mas seu trabalho tem se destacado em outras áreas. Desde os anos 1990, ele tem se dedicado também à cerâmica, ao vídeo, à criação de figurinos e cenários. Em 2007, por exemplo, foi um dos principais responsáveis pelo visual da minissérie A Pedra do Reino, da Rede Globo. A cenografia, em tudo, traduzia a reunião de influências culturais que caracteriza o Movimento Armorial e o Romance d’A Pedra do Reino.
Obra do artista Romero de Andrade Lima aponta influências da arte
indígena, ibérica e africana. Imagem: Reprodução
Romero de Andrade Lima, sobrinho de Ariano, também voltou boa parte de sua obra à pesquisa e construção de uma imagem que retratasse a poética das diversas influências que compõem, inicialmente, a base central da formação cultural brasileira: arte indígena, ibérica e africana. Embora o trabalho de Romero, atualmente, esteja passando por outra fase, o artista ficou muito conhecido, dos anos 1990 até o princípio dos 2000, pela criação de trabalhos que reuniam texto, música ao vivo, iluminação, figurinos, cenários, maquiagem dos atores – compondo com todos os elementos uma obra de arte complexa, que não poderia ser resumida puramente a teatro ou artes plásticas. O que lhe interessava em seus espetáculos, como ele dizia na época, era proporcionar experiências novas na apreensão da obra de arte.
Essa proposta de aproximação e contaminação das artes sempre esteve presente no pensamento armorial. O próprio Ariano Suassuna é ilustrador de seus livros. Depois, criou vários álbuns de iluminogravuras – que, baseadas nas iluminuras medievais, reúnem, numa só lâmina, poesia, desenho e pintura.
DESDOBRAMENTOS
Um dos desafios da contemporaneidade, em inscrição local, é investigar quais os desdobramentos do Movimento Armorial na arte pernambucana. É verdade que a arte – não só no Estado, mas de uma forma universal – vive de ciclos de aproximação e afastamento das raízes populares. É igualmente verdadeiro afirmar que, em Pernambuco, a assimilação de matrizes populares passa por fases duradouras e profundas, que se apresentam de formas variadas, em vertentes distintas. Esse, talvez, seja um dos reflexos mais importantes do armorial na arte do Estado: a aceitação dessa estética – que não é formal nem acadêmica – pelos artistas, criando-se assim uma situação de convivência pacífica, mesmo para aqueles “não armoriais”.
A imagética do gravurista Gilvan Samico funde elementos da cultura
popular nordestina. Imagem: Reprodução
E se o armorial não sugere práticas artísticas fechadas – sendo permeável a criações que se proponham mergulhar no universo pictórico das influências primitivas da arte brasileira –, o movimento pode ecoar tanto num trabalho urbano, como o do grafiteiro Derlon, ou na obra de Marcelo Silveira – que atua numa eficiente reelaboração de signos populares.
Outros artistas remetem à estética armorial também pelo uso de materiais. Inicialmente associada à arte primeva, a cerâmica ocupa lugar de destaque na produção contemporânea, notadamente a partir dos anos 1990. O seu uso mais sofisticado, no Estado, começa nos anos 1970, com Francisco Brennand, que influenciou gerações posteriores. Artistas como o citado Dantas Suassuna, José Paulo, Christina Machado, Maurício Silva (hoje radicado na França), Flávio Emanuel, entre outros, utilizaram-se das técnicas de modelagem e cozimento do barro. Alguns deles seguiram essa trajetória, descobrindo formas diferentes de trabalhar com o material.
Não se deve, de forma simplista, alinhar os artistas aqui citados ao Movimento Armorial. Mas, a partir da observação de suas obras e de outros artistas não mencionados aqui, é possível afirmar que existe, em Pernambuco, uma relação complexa entre a produção artística considerada erudita – a que frequenta galerias, museus e bienais de arte – e as criações populares. Isto se dá de diversas maneiras: da simples escolha de um material até a referência a artistas assumidamente ligados ao movimento. É possível que seja esta a principal demanda do armorial, no tocante às artes plásticas: uma presença que não indica uma maneira única de ver e representar o mundo, que não exige semelhanças estéticas, mas que assevera a relevância da arte popular na expressão erudita.
DIANA MOURA, jornalista, mestre em Comunicação.
Leia também:
"O 'Auto da Compadecida' era uma bandeira armorial"
Música: Ritmos de um rico simbolismo instrumental
Artes cênicas: Um modo brasileiro de representar
Dança: Movimentos corporais a partir dos brincantes
Cinema: Marcos de uma tradução imagética