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Artes cênicas: Um modo brasileiro de representar

Desejo de criar peças que usassem a música, a dança e as roupagens imaginosas dos espetáculos populares nordestinos moveu o teatro armorial

TEXTO Carlos Newton Júnior

01 de Outubro de 2010

A partir de sua estreia no rio, em 1957, 'O auto da Compadecida' já foi traduzido para vários idiomas

A partir de sua estreia no rio, em 1957, 'O auto da Compadecida' já foi traduzido para vários idiomas

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 118 | outubro 2010]

Quando lançou oficialmente o Movimento Armorial,
em 1970, Ariano Suassuna já era um dramaturgo consagrado, reconhecido pela crítica e pelo público, tanto no Brasil quanto no Exterior. Desde a estreia no Rio de Janeiro, em 1957, a sua peça mais famosa, o Auto da Compadecida, corria o mundo, traduzida, montada e editada em diversos países; outras comédias de sua autoria, a exemplo de O casamento suspeitoso, O santo e a porcaA pena e a lei e Farsa da boa preguiça, escritas entre 1957 e 1960 e montadas pelas melhores companhias do país, já haviam sido consideradas, pela crítica especializada,obras-primas da dramaturgia nacional, juízo que a história do teatro, nos anos seguintes, só fez ratificar; livros, ensaios e artigos acadêmicos sobre a sua dramaturgia já haviam sido publicados, e não faltavam propostas para a realização de adaptações de suas obras para a televisão, sempre recusadas pelo autor até o início da década de 1990.

Assim, quando começou a expor, sistematicamente, sobretudo em artigos de jornal, os princípios estéticos que norteavam o seu movimento, ainda no início da década de 1970, tais princípios, no que importa ao teatro, não eram outros senão aqueles que já haviam confirmado a sua própria dramaturgia e vinham sendo debuxados por Suassuna desde a segunda metade da década de 1940, sobretudo durante a participação do autor em dois importantes movimentos teatrais surgidos no Recife: o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) – que foi, na verdade, muito mais do que um movimento teatral – e o Teatro Popular do Nordeste (TPN).

A rigor, portanto, o teatro armorial antecede o movimento que lhe dá nome, e deve vincular-se, ainda, ao trabalho de Hermilo Borba Filho, escritor sob cuja liderança formou-se o TEP, em 1946, e que foi, juntamente com Suassuna, fundador do TPN, em 1960. Em um depoimento escrito em 1964, Suassuna ressaltava a importância fundamental de Hermilo, sobretudo através do trabalho desenvolvido à frente do TEP, na gestão de ideais que seriam, em um futuro próximo, aprofundados e concretizados pelo Movimento Armorial: “No que se refere à nossa geração, não há ninguém que se possa comparar a Hermilo Borba Filho como abridor de veredas e apontador de caminhos. De fato, foi com sua lição, mais do que com a de qualquer outro, que todos nós nos encontramos, quando, aí por 1946, procurávamos uma poesia, uma pintura, um romance, uma música e, sobretudo, um teatro, que, ligando-se à tradição do romanceiro popular nordestino, não nos deixassem presos aos limites, para nós por demais estreitos, do regionalismo”.

Foi com enorme estranhamento, portanto, que li, certa vez, um artigo de Hermilo, datado de 1975, em que fazia quase uma cobrança a Suassuna por não ter conseguido “injetar no teatro nordestino de agora a seiva do armorial”. Depois, refletindo melhor, percebi que a intenção de Hermilo, com o artigo, era tão somente incitar Suassuna a retornar ao teatro, talvez inconformado com o fato de o amigo ter abandonado a literatura dramática, após a Farsa da boa preguiça (1960), para dedicar-se exclusivamente ao romance. Infelizmente, o destino não concedeu a Hermilo tempo de vida suficiente para ver Suassuna escrever uma nova peça, algo que só ocorreria em 1987, com As conchambranças de Quaderna, cuja primeira montagem, no Recife, contou com cenários e figurinos assinados pelo artista plástico armorial Romero de Andrade Lima.

Segundo Suassuna, os princípios do teatro armorial expressam “o desejo de um espetáculo total brasileiro, no qual se usassem as máscaras, o canto, a música, a dança, as roupagens imaginosas dos espetáculos populares nordestinos”; o desejo de um teatro que, partindo do nosso romanceiro popular (universo de poemas e canções que inclui desde a literatura de cordel até a de tradição oral decorada), bem como dos espetáculos populares a esse mesmo romanceiro relacionados, procurasse “um modo brasileiro de se vestir, de representar e atuar no palco”.


Desenho de Romero de Andrade Lima para a peça As conchambranças de Quaderna. Imagem: Reprodução

Trata-se, como se vê, de um teatro que se impõe como verdadeira arte de síntese, cujos espetáculos resultassem não apenas da junção de elementos díspares, mas de uma verdadeira fusão, somente possível mediante o respeito absoluto a seus postulados estéticos, ou, melhor dizendo, à unidade da poética armorial. O teatro compreendido como um espetáculo total, em que cenários, figurinos, música e tudo mais que o compusessem estivessem em profunda sintonia com um texto que evita o regionalismo de matiz naturalista para se filiar ao espírito mágico e poético dos espetáculos populares nordestinos.

O não entendimento dessas considerações básicas tem gerado, ainda hoje, por mais incrível que possa parecer, um enorme mal-estar entre certos diretores que teimam em não aceitar a vinculação do espetáculo teatral à unidade de uma poética pré-estabelecida pelo autor da peça, acusando o dramaturgo Ariano Suassuna de dificultar ou até mesmo boicotar o trabalho dos diretores. Ariano, assim, passa a ser considerado intransigente e tolhedor da liberdade de criação alheia, sobretudo ao proibir, sistematicamente, as representações de suas peças, quando deturpavam o espírito e a linha do espetáculo por ele imaginados.

Sem querer aprofundar uma discussão que nada mais é do que reflexo localizado de um problema maior e antigo – a secular disputa entre os limites criadores dos autores e dos diretores teatrais –, é preciso reconhecer que Suassuna é um escritor com amplo domínio dos recursos expressivos do teatro, e que possui, além disso, considerável experiência no campo da direção. Suas peças não foram escritas para se moldarem a devaneios teatrais estranhos ao seu universo criador e inteiramente alheios às suas preocupações de natureza estética e também moral. A dramaturgia armorial, mais do que qualquer outra, requer ensaiadores que pensem de modo semelhante a Roger Blin, ator e diretor de vanguarda francês, que afirmou certa vez: “A atitude do diretor em relação ao autor deve ser, na minha opinião, de humildade, mas de uma humildade ativa”.

É preciso ressaltar que Suassuna estabeleceu princípios, isto é, postulados de ordem geral, e não uma receita para se fazer teatro; a receita deve ser a de cada diretor, que poderá, a partir desses princípios, estabelecer o seu ritmo, as suas marcações, a sua visão de conjunto particular e inconfundível, como ocorre, aliás, na admirável montagem de As conchambranças de Quaderna, encenada no Rio, sob a direção de Inez Viana, e que deverá vir ao Recife no mês de novembro, no âmbito do Festival Recife do Teatro Nacional.

Indiscutivelmente, os princípios do Movimento Armorial influenciaram e continuam influenciando o que de melhor tem sido feito, até hoje, em prol de uma dramaturgia nordestina, mesmo que muitos dramaturgos não tenham uma clara consciência disso. Penso, por exemplo, nos textos de Ronaldo Correia de Brito, Adriano Marcena, Altimar Pimentel (recentemente encantado), Lourdes Ramalho ou Oswald Barroso, que escrevem para teatro em Pernambuco, na Paraíba e no Ceará. E se tal afirmação pode parecer preconceito de minha parte, concluo essas breves considerações lembrando aqui o que disse certa vez o genial Ortega y Gasset: “O profano se coloca diante de uma obra de arte sem preconceitos, mas esta também é a postura de um orangotango. Sem preconceitos não se podem formar juízos”. 

CARLOS NEWTON JÚNIOR, poeta, ensaísta e especialista na obra de Ariano Suassuna.

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