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Catarse: Os “loucos” das arquibancadas

TEXTO Sérgio Miguel de Buarque

01 de Junho de 2014

Foto Gabriel Uchida

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 162 | jun 2014]

Maracanã, 16 de julho de 1950.
Quase 200 mil pessoas em um silêncio lancinante, unidas pelo sentimento de dor após a inesperada derrota do Brasil por 2 x 1 para o Uruguai. A cena angustiante daquela final de Copa ficou gravada na memória coletiva dos brasileiros. Até quem ainda não tinha nascido sofre com a lembrança daquele fatídico domingo que, com a Copa do Mundo sendo novamente realizada no Brasil, volta a rondar o país feito um fantasma.

O “maracanaço”, como ficou conhecida a tragédia de 1950, é o mais famoso caso de catarse coletiva futebolística da história. Mas não é o único. Ano após ano, das modernas arenas esportivas aos mais acanhados estádios das mais periféricas cidades do planeta, o rito se repete nas arquibancadas. A loucura, a paixão, a alegria extrema ou o sofrimento mais profundo seguem unindo torcedores de todo o mundo.

Se essa explosão de sentimentos contraditórios e intensos é difícil de ser entendida por quem nunca foi a um estádio de futebol, é igualmente complicada de ser explicada também por quem já sentiu essas emoções na pele. Um caminho para o entendimento dessa força das arquibancadas pode estar no conceito aristotélico de catarse na tragédia grega. Para Aristóteles, a catarse era uma manifestação eminentemente purgativa e purificadora, capaz de provocar no espectador a liberação de determinadas sensações e de fazer com que aflorassem nele sentimentos como compaixão, temor ou angústia. Seguiam-se depois o gozo, a calma e o relaxamento obtidos pelo escoamento do excesso de emoções.

De maneira geral, são essas alternâncias de estados emotivos opostos que combinam tensão e alívio, sofrimento e prazer, terror e comiseração que alimentam o espírito do torcedor de futebol. Isso só é possível porque, como na tragédia grega, o espetáculo esportivo é uma imitação (a mimesis aristotélica) de ações e situações da vida real, com início, meio e fim. Em outras palavras, como o antigo cidadão grego, o torcedor vai ao estádio para extravasar as agruras do dia a dia.

Bernardo Borges Buarque de Hollanda, doutor em História Social da Cultura e pós-doutor pela Maison des Sciences de l’Homme (MSH-Paris), tenta compreender como se deu a passagem do elemento catártico, originado, segundo ele, nos domínios do teatro, para o universo esportivo na vida contemporânea.

No artigo Futebol, arte e política: a catarse e seus efeitos na representação do torcedor, publicado na revista Organizações & Sociedade, em 2009, Hollanda constata que essa migração começou a acontecer “nos séculos 18 e 19, quando o teatro passava a ser uma arte de espetáculo, um habitus aristocrático e burguês – vinculado, portanto, às regras de etiqueta e à contenção de emoções”. A partir de então, quando a luz do teatro é apagada, a única interação entre atores e público só se dá no aplauso final, quando a cortina é fechada e as luzes são novamente acesas.

É também no fim do século 19 e início do século 20 que o futebol é instituído, regulamentado e incorporado na vida das pessoas, transformando-se em grande evento de massa. Naturalmente, ocorre uma transferência dos elementos catárticos das plateias dos teatros para as arquibancadas dos estádios de futebol.

A catarse coletiva das arquibancadas nasce da soma de sentimentos de cada um dos torcedores. Uma força capaz de transformar um centrado e tranquilo cidadão num “louco” por seu clube. Quem poderia imaginar um padre, por exemplo, tendo que tomar relaxante muscular e remédio para a garganta depois de torcer pelo seu time? Mas assim é Gimesson Eduardo da Silva, o “Padre Tricolor”, como é conhecido pelos fiéis (da sua antiga paróquia e das arquibancadas do Arruda). Atualmente, ele mora em Roma, onde foi estudar e é regularmente visto com a camisa do Santa Cruz.

De lá, continua torcendo pelo Santinha ao acompanhar os jogos pela internet. Mas sente saudade de quando “sofria” nas arquibancadas do Arruda. “Fico muito tenso nos jogos. Acompanho atentamente. Detesto quando o time não joga bem e fico chateado quando perde. O meu excesso é a ansiedade pela vitória. Fico com o coração apertado, quando o jogo é difícil e decisivo. Faço comentários, critico e fico irritado.”

SIMBOLISMO
O escritor rubro-negro Raimundo Carrero, autor de livros consagrados pela crítica e de “loucuras” épicas nas arquibancadas da Ilha do Retiro, também é do time dos que veem confluências entre o futebol e a filosofia aristotélica. “O futebol reúne elementos como o mito, a beleza e a liberdade. Há um simbolismo importante na entrega e no amor ao clube.” Carrero observa no comportamento dos torcedores em relação aos seus clubes uma busca pela felicidade através da liberdade. Para ele, “é na arquibancada que a ironia ocupa o lugar da tragédia na vida moderna”.


Para comemorar a conquista de um título, o escritor comeu grama da Ilha do Retiro.
Foto: Jarbas Jr.

Nessa exacerbação de emoções, que é torcer por um time de futebol, às vezes, os limites são ultrapassados. É como se dentro de cada torcedor, até mesmo do mais pacato deles, existisse uma fera reprimida. Nas arquibancadas, todos são “loucos” em potencial. Talvez por isso existia o sentimento de compreensão, cumplicidade e mesmo de admiração dos demais torcedores para com aqueles que vão além do limite em sua demonstração de paixão pelo clube.

Sendo assim, pelo menos uma vez, Raimundo Carrero libertou, literalmente, sua fera interior. O fato ocorreu depois que o juiz apitou o fim do jogo em que o Sport ganhou um título estadual. Carrero invadiu o campo para comemorar a conquista. Ele mesmo contou o episódio: “Ao entrar no gramado, fui direto para o lugar onde o jogador do Sport tinha feito o gol do título. Me abaixei e comi a grama. Ainda levei para casa para fazer um chá. Foi para satisfazer meu instinto animal”.

A loucura por um time de futebol também pode ser expressa por um ato de resistência. Assim foi com o empresário alvirrubro Ygor Valença. Numa partida válida pela Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro de 2001, o Náutico fez o primeiro gol contra o Vila Nova (GO), ainda no primeiro tempo. Na comemoração, Ygor caiu e rompeu os ligamentos do tornozelo. Enquanto a articulação inchava e os colegas tentavam socorrê-lo no estádio, o jogo corria. Quando finalmente chegou até a ambulância, que se posicionava atrás do gol do Vila Nova, a partida já estava 3 x 2 para o Náutico. A ambulância se preparava para deixar o campo, quando o árbitro marcou um pênalti. Ygor não teve dúvida. Pediu para o motorista alinhar o veículo e esperar a cobrança. “Tinha esperado até ali, poderia esperar mais um pouco”, lembra.

O sofrimento “valeu a pena”. O Náutico converteu a cobrança do pênalti e venceu por 4 x 2. Ygor foi direto para o hospital, passou por cirurgia e imobilizou o pé. Antes de tirar o gesso, já estava novamente, de muletas, nas arquibancadas dos Aflitos.

VIOLÊNCIA
Raimundo Carrero e Ygor Valença, apesar de defenderem cores diferentes, têm algo em comum, além da paixão por seus clubes. Os dois confessam que já pularam o alambrado para bater no árbitro. Claro, acabaram detidos pela polícia. Explicação para dois pacatos cidadãos fazerem uma coisa dessas? Ygor acha que a testosterona sobe. “Depois o cara pergunta: por que fiz isso?”

Eduardo Araripe, que faz parte do grupo Antropologia, Esportes e Sociabilidade do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro Paixão perigosa – uma etnografia das torcidas organizadas no Recife/PE, vem observando, pesquisando e tentando entender o comportamento dos torcedores há cerca de 10 anos, quando começou a trabalhar com planejamento em estratégia de futebol. Além de ser formado em História, com mestrado e doutorado em Antropologia Social, Eduardo faz parte do Corpo de Bombeiros há 16 anos. O interesse pelo tema começou justamente no trabalho que ele fazia nos estádios durantes os jogos, quando tinha oportunidade de ver de perto o comportamento dos torcedores.

Para ele, o futebol é uma metáfora da vida social. “As mesmas dimensões sociais que passam pelas ruas estão congregadas na figura das torcidas, presentes nos estádios.” Como nas ruas, as arquibancadas são espaços para se reverenciar ídolos, protestar, colocar-se contra a ordem instituída ou simplesmente festejar. “O futebol nos dá oportunidade de entender melhor a sociedade. Quer entender um lugar? Vá ao seu estádio”, recomenda.


O sacerdote Gimesson da Silva era figura frequente nas arquibancadas do Arruda.
Foto: Divulgação

Eduardo tem observado que o torcedor quer se destacar da massa de anônimos e vem assumindo o protagonismo cada vez maior. “O torcedor é protagonista porque ele sente que pode interferir no resultado da partida. A mídia já percebeu e explora isso.” Segundo ele tem observado, cada vez mais as câmaras de televisão estão voltadas para as arquibancadas.

Essa passagem de “coadjuvante para protagonista”, claro, gera mudanças no comportamento nas arquibancadas. Os cartazes com inscrições do tipo “filma eu” são um bom exemplo. Outro efeito disso é a multiplicação de “torcedores símbolos”, como os “Zé do Rádio”, “Mister N” ou “Super-Santa”. “Eles se tornaram pontos de aglutinação nos estádios. No entorno deles, sempre se forma um grupo. Porque as câmeras irão focalizá-lo”, explica Eduardo.

Dentro dessa lógica, “sofrer muito” pelo time do coração também passa a ser uma forma de distinção. Quanto maior o sofrimento, a loucura, mais as pessoas irão dizer: “Este, sim, é um torcedor de verdade”. E sempre terá a chance de uma câmara de TV captar uma lágrima escorrendo e espalhar a imagem pelo mundo.

Mas, se os estádios de futebol funcionam como espaço público, sendo um complemento das ruas e praças, eles também têm o seu lado privado e são percebidos pela torcida como uma extensão das suas próprias casas. Não por acaso, são comuns frases do tipo “hoje, jogamos em casa” ou “na nossa casa, mandamos nós”. Para Eduardo Araripe, isso gera uma relação de intimidade. É nesse momento que você abraça um desconhecido na hora do gol, por exemplo.

Eduardo constatou que o fato de o torcedor assistir ao jogo “em casa” ou como visitante interfere, de maneira geral, até na forma de se vestir. “Em casa, constatei muito mais pessoas de chinelos ou sem camisa. O que não acontece na casa do adversário, onde, por exemplo, os tênis predominam e existe bem menos gente sem camisa.”

Dessa forma, o torcedor de futebol segue se equilibrando na corda bamba das contradições entre o público e o privado, a segregação e a aproximação, a alegria e a tristeza, a vitória e a derrota. Mas a vida também não é assim? 

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