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Partida 1: Chã Grande x Ypiranga

TEXTO Samarone Lima

01 de Junho de 2014

Foto Leo Caldas

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 162 | jun 2014]

O nome oficial é Estádio Severino Cândido Carneiro.
Mas, como quase todo estádio do Brasil, foi rebatizado com um aumentativo. A população de Vitória de Santo Antão, município da Zona da Mata pernambucana, o chama de “Carneirão”. Os exemplos se espalham Brasil afora. Estádio Plácido Castelo, o “Castelão”, em Fortaleza. Estádio Maria Lamas Farache, o “Frasqueirão”, em Natal. Estádio Jornalista Edgar Augusto Proença, “Mangueirão”, em Belém. Com o fenômeno das “arenas”, é bem provável que fiquem nomes compostos, que excluem os excessos. “Arena Pernambuco”. “Arena das Dunas”. “Arena Corinthians”.

À beira da Copa, nem uma brisa distante parece indicar que ali há resquício da Copa do Mundo. Num sábado, 15 de março, os times Chã Grande e Ypiranga se encontram para a antepenúltima rodada do temido “hexagonal da morte”. Dos seis times do interior do estado que ainda disputam o Campeonato Pernambucano de 2014, já sem chance de título, dois serão rebaixados para a segunda divisão.

Um pneu velho, em uma poça de lama, é apenas o primeiro sinal de que algo não vai bem por ali. O ingresso para o jogo custa R$ 10,00 (sem meia-entrada) e, nessa tarde quente, o público oficial foi de 120 pessoas. Com o Programa Todos com a Nota, do governo do estado, os clubes receberão o equivalente a cinco mil ingressos, que podem ser retirados gratuitamente por torcedores cadastrados. Para os cofres dos clubes, é como se as arquibancadas estivessem parcialmente ocupadas por torcedores que estão em casa. A sensação é de vazio. O pequeno estádio se torna imenso. É possível escutar cada grito no juiz e até as instruções dos treinadores aos jogadores.

No apertado vestiário do Chã Grande, time do Agreste do estado, o único luxo é o chão com carpete verde. Os 21 jogadores e a comissão técnica vivem os momentos tensos que antecipam a partida decisiva. O maior salário fica em torno de R$ 5 mil. O mais baixo é o do roupeiro, Luciano Monteiro, que também é massagista e “faz tudo” – R$ 700. O time está na quarta colocação, com sete pontos, à beira da zona de rebaixamento. Na semana seguinte, teria que enfrentar o Pesqueira, que seguia firme na liderança da tabela.

“Se ganharmos, poderemos chegar à liderança. Uma derrota e voltamos à zona de rebaixamento”, diz o compenetrado treinador e ex-jogador Edson Miolo, 42 anos, que teve seus dias de glória jogando pelo Corinthians, além de temporadas no futebol francês e polonês.

O forte cheiro de amônia e suor se mistura à tensão. Todo o incentivo psicológico é atravessado pelo mote religioso. Nas paredes, cartazes pregados de improviso com frases do tipo “Jesus Cristo. Nesse nome há poder”, “O homem é do tamanho do seu sonho”, “Não há glória sem sacrifício”. A música que toca no pequeno aparelho de som é evangélica.

Tudo é simples e pouco. Cinco chuveiros (um com água quente), dois vasos sanitários. Não há armários com nome e número. Os celulares são carregados em tomadas espalhadas. O roupeiro preparou água com malte, o energético disponível. “É um Tang grande”, diz Luciano. Luxo é um substantivo distante. Nada aqui é supérfluo. Um jogo de dois times do interior do estado à beira do rebaixamento tem apenas o básico. E os jogadores parecem não se importar com o que falta. Pensam apenas nos 90 minutos que os esperam.

Na preleção, Edson Miolo fez um discurso motivador, mexendo com o brio dos atletas. Um dos diretores chegou pouco depois, com algo ainda mais motivador. Informou que tinha acabado de conseguir um “bicho” de R$ 20 mil, em caso de vitória.


Foto: Leo Caldas

A poucos metros dali, nos vestiários do Ypiranga, os jogadores já estão quase prontos para entrar em campo. A música evangélica está no ar. Eles fazem um círculo, para a tradicional oração. Um deles pede que fiquem de joelhos. Todos obedecem.

“É entrar ligado! A gente tem que entrar ligado na porra desse jogo. Só faltam três jogos!”, diz um deles.

Aos gritos, começam a rezar o Pai-Nosso. Em seguida, a Ave-Maria.

No túnel, o novo abraço e mais gritos.

“Ganhar! Ganhar! Um, dois, três. Ypiranga!”

“É entrar ligado! Ligado!”

“É hoje! É hoje!”

“Vamos lá, pessoal!”

 

**

 

O Chã Grande esteve à frente do placar duas vezes, mas cedeu o empate. O placar final foi 2 x 2, com quatro gols de cabeça. Resultado ruim para o Ypiranga, que ficou com 11 pontos e à beira da zona de rebaixamento, e péssimo para o Chã Grande, que estacionou nos oito pontos e desceu para a quinta colocação.

De volta aos vestiários, os jogadores do Chã Grande pareciam abandonados. A vitória, mais do que merecida, escapou aos 20 minutos do segundo tempo. O empate praticamente sacramentava o rebaixamento.

Os mesmos atletas que duas horas antes exalavam confiança, fé, vontade absoluta de ganhar, estavam perplexos. No vestiário, cerca de 25 homens, entre jogadores e comissão técnica, faziam pequenos gestos taciturnos, como se tivessem escutado, pelo rádio, a notícia de uma tragédia familiar. Pretendia conversar com Neror, lateral direito do time, que era boliviano. Vi seu rosto negro, banhado de suor, mas ele estava sentado, apenas de cueca, exausto e sem esperança.

Se aquela condição em que estavam era ruim, até comovente, certamente passava pela cabeça deles a disputa da Série B do Campeonato Pernambucano de 2015. Era como desaparecer do cenário futebolístico.

Pouco depois, chegou o treinador, Edson Miolo.

“Edson, o time jogou bem...”, disse eu, na tentativa de fazer um arremate da entrevista, mas ele sequer me olhou. Estava possuído por alguma raiva que vinha das entranhas. Chamou os dois auxiliares com um gesto e seguiram para uma salinha contígua.

Voltei a olhar para os atletas. As orações, rezadas com tanto fervor, pareciam não ter sido ouvidas. Eles se desfaziam lentamente do papel de jogadores de futebol de uma equipe quase rebaixada do Campeonato Pernambucano e se tornavam apenas homens, entre 21 e 39 anos, abraçados pela derrota.

O silêncio absoluto não deixava margem para análises ou suposições. Precisavam apenas tomar banho, trocar de roupa e pegar o ônibus de volta.

Olhei para Leo Caldas, o fotógrafo.

“Aqui acabou”, disse.

Concordei e saímos, perseguidos pelo silêncio dos jogadores do Chã Grande, que seria oficialmente rebaixado na rodada seguinte. 

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