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Futebol: o ópio do povo?

TEXTO Débora Nascimento

01 de Junho de 2014

FOTO Reprodução

Seria apenas mais um dia de clássico. Corinthians e Santos se enfrentariam no Morumbi. Cem mil pessoas lotavam o estádio à espera do jogão. No rádio, o locutor Osmar Santos avisa: a Gaviões da Fiel promete uma surpresa. As lentes das câmeras, então, direcionam-se para a torcida corinthiana. Assim que o time de Sócrates entra em campo, os torcedores começam a festejar e abrem uma extensa faixa: “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Naquele 11 de fevereiro de 1979, assistia-se não apenas a uma partida de futebol, mas a uma importante manifestação pública do desejo de boa parte da nação de encerrar de vez com a perseguição política que afligia milhares de pessoas no país, tendo como condutor um mecanismo: a anistia. Seis meses depois, em 28 de agosto, a lei foi promulgada, tornando possível o processo da “reabertura”, que tiraria o Brasil, em 1985, de duas décadas de ditadura militar e o traria de volta à democracia, em 1989.

É incrível imaginar, hoje, quando vemos por todo o país mostras de violência praticadas por grupos de torcedores, que aquela atitude política tenha partido de uma torcida organizada, a propósito, a maior do Brasil. Um dos idealizadores do ato foi o jornalista Antônio Carlos Fon, membro fundador do Comitê Brasileiro pela Anistia. Ao saber da ideia, o repórter da Veja Chico Malfitani, que era um dos fundadores da Gaviões, combinou com outros membros da GF como seria o momento. Uma pessoa estratégica foi avisada: Osmar Santos, que se transformaria poucos anos depois na “Voz das Diretas Já”, ao apresentar os famosos comícios que reuniram milhares de pessoas em torno de um palanque formado por políticos, artistas e atletas.

Em 1969, dez anos antes da abertura daquela faixa, iniciativa que provocou duas prisões sem graves consequências, surgira um dos primeiros rompantes de rebeldia no país, mesmo que não estivesse diretamente ligado à política nacional, mas à futebolística: a Gaviões da Fiel. Numa época em que as pessoas não podiam se juntar em grupos ou associações, a torcida foi criada para contestar a direção do Timão. Nada que despertasse maiores atenções do governo militar, embora este já tivesse aparelhado a maior parte dos times brasileiros. No mesmo ano, os torcedores também fundaram sua escola de samba homônima.

A partir de 1969, o Brasil ingressava na pior fase da ditadura, após a publicação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro do ano anterior. Foi naquele 1969 que Pelé marcou o seu milésimo gol, no mesmo Maracanã que serviu de palco para um outro um episódio histórico: o desfecho do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, estrategicamente realizado na saída do jogo entre o Fluminense e o Cruzeiro. Mantido refém por 70 horas em uma casa no Rio Comprido, no Rio de Janeiro, por membros da Dissidência Comunista da Guanabara e da Ação Libertadora Nacional (ALN), o diplomata foi solto em troca da libertação de 15 presos políticos. Dispersos na multidão, os militantes escaparam dos policiais.

Em 1970, o governo, que já havia estendido seu manto de autoritarismo sobre o executivo, o legislativo, o judiciário, a imprensa e a cultura do país, intensificava suas investidas na principal atividade das massas, o futebol. Financiou e ocupou diversos times e a menina dos olhos do esporte, a seleção brasileira. Tomou para si o hino da campanha do tricampeonato, Pra frente, Brasil. Isso foi o bastante para transformar a equipe canarinho numa espécie de inimiga para os que desejavam e lutavam pela queda da ditadura. Nesse período, uma máxima passou a ganhar fama no meio intelectual, “Futebol é o ópio do povo”, parodiando a notória frase de Karl Marx sobre religião.

Não demorou muito para a multiplicação de detratores da paixão nacional. “Um país inteiro para por causa do futebol, mas não para para resolver o problema da fome... Este, sim, é o verdadeiro ópio do povo! Faz esquecer que são explorados, subdesenvolvidos... Estou torcendo para o Brasil perder! Assim o povo voltará à realidade e verá que a vida não é feita de gols, mas de injustiças... Nossa realidade não é tão infantil como uma jogada como esta de Pelé invadindo a grande área inglesa e... Pênalti! Pênalti! Juiz filho da mãe! Pênalti, seu safado”, atacou o cartunista Henfil, n’O Pasquim.

A discussão hoje poderia soar datada, mas desde 1970 que, a cada quatro anos, ela se renova e volta às rodas de conversa. Em 2014, ganhou força nas redes sociais com a hashtag #naovaitercopa. Tendo como principal reclamação os gastos públicos para a realização do campeonato, boa parte dos que criticaram também argumentou que o resultado do evento influenciaria a política nacional, principalmente em período de eleição.

O jornalista Juca Kfouri, em seu blog, se mostrou contrário a esse raciocínio: “Sempre será bom lembrar que o Brasil foi bicampeão mundial em 1958/62 e nem por isso seus presidentes de então, Juscelino Kubitschek e João Goulart, deixaram de ser cassados pelo golpe militar. Em 1970, a seleção ganhou sob Médici e a imagem que ficou do militar foi muito mais a do torturador que a do torcedor”. O colunista esportivo apenas se esqueceu de ponderar que a maior parte da população assistiu a isso tudo calada, até porque havia uma grande dificuldade em saber o que realmente estava acontecendo no país; a troca de informações (verdadeiras) não era instantânea e facilitada como é hoje.

Em 2014, o ex-jogador Tostão também resgatou o tema da “alienação em torno do futebol”, na sua coluna na Folha de S.Paulo, do dia 26 de março escreveu: “Ao mesmo tempo em que tenho orgulho de ter sido campeão por um dos maiores times da história, sinto-me, às vezes, incomodado, quando escuto que a seleção de 1970 foi o ópio do povo e que foi usada pela ditadura. Todos os governos, de todo o mundo, ditaduras e democracias, como a atual do Brasil, fazem o mesmo, ainda mais em uma Copa no próprio país”.

Tostão era um dos poucos jogadores que sabiam o que estava se passando e que tiveram a coragem de se manifestar contra o regime. Mas o craque arrefeceu o discurso ao receber um cala-boca através de uma ligação telefônica anônima. Isso ocorreu após ter concedido entrevista ao Pasquim, na qual elogiava Dom Hélder Câmara, arcebispo do Recife e persona non grata da ditadura. Com a ameaça, o jogador calou-se e, então, recebeu a convocação definitiva para jogar no escrete canarinho de 1970.

Meses antes de Tostão e companhia pisarem em solo mexicano, o regime militar teve outra dor de cabeça, aliás, uma baita de uma enxaqueca chamada João Saldanha. O jornalista, comentarista de futebol e ex-técnico do Botafogo foi convocado para assumir o posto de técnico da seleção. Nessa jogada que tinha tudo para ser genial, afinal o convidado era um dos nomes do futebol mais populares do país, os militares só esqueceram um detalhe: ele era comunista. De carteirinha, literalmente, com filiação ao PCB.

Fora isso, que já seria o bastante para nem se cogitar que assumisse tal cargo estratégico, Saldanha era do tipo esquentado, não levava desaforos pra casa. O jornalista assumiu uma entidade desacreditada, na pós-derrota no mundial de 1966, e montou um dream team. Em compensação, sem qualquer jogo de cintura ou paciência, irritava-se com a equipe técnica e a Comissão Brasileira de Desportos (presidida por João Havelange, de 1956 a 1974), já infiltrada por militares. Também se desentendeu com a maior estrela do time, Pelé, a quem considerava, claro, um gênio, mas que engessaria todo o grupo em torno de seu jogo (nos bastidores, a realidade é que Saldanha não gostava da proximidade dos militares com o Rei). Para completar, o novo técnico ainda usava as viagens da seleção ao exterior para levar recados aos exilados e denunciar os crimes cometidos pelo regime militar.

O motivo atribuído à sua saída foi o fato de não ter convocado Dario (Dadá Maravilha), desrespeitando o pedido do presidente Emílio Garrastazu Médici. Numa entrevista a uma rede de televisão, ironizou: “Eu e o presidente temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, gremistas, gostamos de futebol, e nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time”. Após a saída, o ex-técnico escreveu uma carta, publicada em março de 1970, na Placar, numa edição especial editada por Juca Kfouri, na qual relata tudo o que passou à frente da seleção e os desmandos da equipe técnica e da CBD. No entanto, dirige-se ao presidente de forma extremamente amigável. Talvez o João Sem Medo tenha considerado que passara dos limites com o general e achou prudente fazer uma política de boa vizinhança. O documentário João Saldanha (2010), de André Iki Siqueira e Beto Macedo, defende que o jornalista escapou ileso de uma retaliação mais violenta porque era uma personalidade bastante conhecida e querida pela população.

Na própria reportagem da Placar sobre o imbróglio, uma pesquisa apontava que a maioria dos torcedores ainda queria Saldanha à frente da Canarinho. Mas era tarde. O ex-jogador da seleção Mário Zagallo já havia assumido o posto, que tempos depois seria ocupado por seu companheiro na comissão técnica montada pelos militares, Carlos Alberto Parreira. “Muitos jovens imaginam que, na concentração da seleção, havia um ambiente de terror, com cartilhas sobre o que os jogadores poderiam falar ou fazer. João Saldanha, homem corajoso, independente, não permitiria. Saldanha foi o técnico, desde as eliminatórias de 1969 até meses antes da Copa. O reacionário Zagallo entrou, mas não mudaram as regras”, lembra Tostão.

Se os jogadores de futebol não seguiam uma cartilha, por outro lado, um bom punhado deles sofreu retaliações diversas, algumas até drásticas, por tentar assumir uma postura contrária à dos dirigentes, como o ex-jogador do Centro Sportivo Alagoano Roberto Mendes, que teve dois irmãos assassinados, e Fernando Antunes Coimbra, detido e torturado por cinco dias ao voltar de Portugal, onde buscou refúgio longe da ditadura no Brasil. Nando, além de estudante de Filosofia e jogador da base do Fluminense, tinha participado do Plano Nacional de Alfabetização de Paulo Freire e era primo de uma pessoa do MR-8. Passou, então, a ser boicotado em alguns clubes. Depois de se destacar no Ceará, em 1968, foi vendido ao Belenenses. Mas, barrado pela ditadura de Salazar, regressou à terra natal, onde foi preso pelo Dops. Ele se viu obrigado a encerrar a carreira para não prejudicar os outros irmãos boleiros, Edu e Zico – este, por sua vez, se tornou um dos líderes do Sindicato de Atletas do Rio de Janeiro, criado no fim da década de 1979.

Nesse ano, Sócrates, companheiro de campo de Zico nas duas Copas seguintes (1982 e 1986), seria o cabeça do movimento Democracia Corinthiana, que lutava por mais liberdade dentro do Timão. A chegada de Waldemar Pires à presidência do clube foi o ápice da DC, abrindo espaço para tomadas de decisões através de votações abertas. “O clima criado ajudou na conquista dos títulos. O futebol é um esporte coletivo. Quanto mais força coletiva existir, quanto maior a amizade, a cumplicidade, o compromisso coletivo, maiores são as suas chances de vencer”, sentenciou Sócrates, no livro Democracia corintiana, cujo nome estampado no uniforme alvinegro foi uma ideia do publicitário Washington Olivetto, que pretendia tanto fazer a propaganda política quanto mostrar que o time estava aberto a patrocinadores. Posteriormente, o Corinthians foi “aconselhado” a não mais usar a mítica camiseta com os dizeres.

Como uma extensão de sua postura no futebol, o meio-campista também foi um dos (poucos) atletas do país, como os colegas de time Casagrande e Wladimir, a participar ativamente da campanha das Diretas Já. Prometeu, inclusive, que, se a Emenda Dante de Oliveira fosse aprovada, ficaria no Brasil. Com a derrota, aceitou a proposta do Fiorentina e saiu do país para jogar na Itália, o que acabou esfacelando a Democracia Corinthiana.

Após o veto da emenda, um estádio, mais uma vez, abrigou um ato de apoio à redemocratização. Na final do Campeonato Brasileiro de 1984, entre Fluminense e Vasco, 128 mil torcedores lotaram as arquibancadas do Maracanã e fizeram coro pelas eleições diretas, durante a execução do Hino Nacional. Não dava mais para os militares fazerem vista grossa diante desse tipo de expressão maciça, coesa e anônima, com apenas uma identidade possível: povo.

REBELDES
Por sua atuação no cenário político do país, Sócrates foi um dos cinco craques escolhidos para constar no documentário Os rebeldes do futebol (Les rebelles du foot, 2012), produzido e apresentado pelo ex-jogador francês e encrenqueiro Eric Cantona. O filme conta como esses jogadores contribuíram politicamente para a história de seus países: Drogba conseguiu unir a Costa do Marfim em meio a um sangrento conflito civil; Pedrag Pasic montou uma escola de futebol para dar esperança a crianças em meio à massacrante guerra da Bósnia; o argelino Rached Meklhoufi formou um time que se tornou parte da Frente de Libertação Nacional da Argélia, e Carlos Caszely teve a família perseguida e sua mãe presa e torturada como retaliação, porque o atacante havia se recusado a cumprimentar Pinochet, o general que usava o Estádio Nacional do Chile como lugar para torturas (28 mil pessoas) e mortes de presos políticos (cerca de 3,5 mil chilenos). No Brasil, o Estádio Caio Martins, em Niterói, também abrigou a prática, com 38 vítimas (número da Comissão da Verdade).

No final do filme, Cantona levanta o questionamento sobre se o futebol seria o ópio do povo. Para ele, o esporte pode ser uma arma de luta. Mas é inquestionável que a atividade vem sendo utilizada por políticos ao longo de sua trajetória. No ensaio Sobre algumas mensagens ideológicas do futebol, o sociólogo Luiz Felipe Baêta Neves afirma que há “possibilidades de apropriação ideológica” do esporte, demonstrando que ele pode transmitir mensagens ligadas tanto a uma “ideologia da permanência” quanto a uma “de transformação” e o define como “a mais importante manifestação de massas no Brasil de hoje”.

DISCIPLINADOR
O processo de massificação do futebol, nas primeiras décadas do século 20, teria sido resultado de uma intervenção direta do poder público e da classe patronal, que tinham interesse em aquietar as populações urbanas envolvidas em movimentos operários e desordens sociais, principalmente em São Paulo. Segundo Joel Rufino dos Santos, em História política do futebol brasileiro, entre 1904 e 1917, as greves eclodiram reivindicando oito horas de trabalho, proteção às operárias, melhores condições de higiene nas fábricas. “A greve de 1917, que chegou a paralisar dezenas de milhares de operários, fez ver às autoridades e aos industriais que a cidade precisava de um esporte de massas”, afirma o professor, historiador e escritor brasileiro, que, exilado na Bolívia, passou a jogar futebol em La Paz para poder sobreviver.

No artigo Construindo a nação; futebol nos anos 30 e 40, Plínio José Labriola acrescenta que o Estado Novo teria utilizado sistematicamente os eventos esportivos para difundir seus ideais nacionalistas de integração regional e racial, contando com o apoio de empresários e jornalistas, a exemplo de Mário Filho (1908-1966). A propósito, o pernambucano que dá nome ao Maracanã, pai da crônica esportiva, irmão de Nelson Rodrigues, é considerado o principal personagem da imprensa que contribuiu para transformar o futebol num espetáculo das massas. Esse antigo desejo dos governantes de integração nacional manteve-se durante a ditadura militar, quando foi criado, em 1971, o Campeonato Brasileiro de Futebol.

Já Leonardo Affonso de Miranda Pereira, no livro Footballmania, defende que, nos clubes suburbanos e operários, a modalidade teria sido um mecanismo de criação de redes de solidariedade e laços de identidade territorial, profissional e racial, um meio de ascensão social e um artifício para a legitimação de atividades de lazer submetidas ao controle policial, como o Carnaval e os clubes de dança.

“Trazido da Europa, no final do século 19, por rapazes da alta sociedade que voltavam de temporadas no exterior e estrangeiros que residiam no país, o futebol foi, a princípio, um passatempo moderno e elegante das jovens elites urbanas. Mas, através de um processo complexo, que durou aproximadamente do início da década de 1910 ao final da década de 1930, ele sofreu uma série de transformações que alteraram dramaticamente suas relações com a sociedade brasileira”, escreve Marcelino Rodrigues da Silva, no livro Mil e uma noites de futebol – o Brasil moderno de Mário Filho. O autor ainda acrescenta que “os grandes ídolos futebolísticos encarnaram aspirações coletivas, como a libertação da herança escravista, a ascensão econômica e o status social”.

No documentário Canções do exílio: a labareda que lambeu tudo (2011), de Geneton Moraes Neto, o cantor Gilberto Gil recorda um fato que parece abrandar o inegável afastamento de boa parte da classe artística e intelectual da empolgação popular em torno do futebol e da seleção: “Não sabia se torcia pelo Brasil ou contra, pois torcendo a favor estava dando força à ditadura. Mas o coração, o amor pela terra foi mais forte e eu e um grupo de exilados torcemos, gritamos, vibramos pelo Brasil, que ganhou da Inglaterra de 1 a 0. Onde eu morava, no Bairro Chelsea, tem o time de futebol e seu estádio. No outro dia, após a vitória do Brasil, as ruas amanheceram pichadas com a inscrição ‘Rivelino revelation’, numa alusão ao grande jogador brasileiro Rivelino, que eles, os londrinos, consideraram a grande revelação daquela Copa que foi nossa”.

O sentimento paradoxal que sentira o cantor baiano durante a Copa de 1970, exilado em Londres, pode carregar consigo o cerne de duas frases distintas. Uma, de Nelson Rodrigues: “Graças à seleção, todo mundo virou brasileiro. Disse-me um conhecido: ‘É a única vez em que me sinto uma nação’. Enquanto durar a euforia do escrete, seremos um país ocupado por brasileiros”. Outra, do músico e ensaísta José Miguel Wisnik: “Viver o futebol dispensa pensá-lo, e, em grande parte, é essa dispensa que se procura nele”.

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da Continente e colunista do site da revista.

* Este texto foi publicado originalmente na Continente de junho de 2014 (edição 162)

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