Resenha

O terreiro iluminado de Alessandra Leão

Em 'ACESA', seu novo álbum, a artista pernambucana faz um chamamento ao movimento, à liberdade e aos encontros como potencializadores da força criativa

TEXTO Leonardo Vila Nova

17 de Dezembro de 2021

Foto Gabriel Bianchini/Divulgação

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Em meio a um momento sombrio, de escuridão, tensões e pavor em nível global, a cantora, compositora, percussionista e produtora musical Alessandra Leão incita o despontar de uma luz e nos convida ao movimento, à dança, à vida. O seu mais novo álbum, ACESA (escrito assim, em caixa alta), evoca pulsões e transcendências que se dão a partir da experiência de liberdade de quem caminha à deriva, deixando-se afetar pelo tempo/espaço como quem entra em transe, esse lugar de atravessamentos e conexões com nossos lugares de força. Mesmo quando o medo nos sugere o recolhimento, ACESA avança.

O álbum é a culminância do projeto contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2017-2018, que incluiu a websérie de mesmo nome, com registros de Alessandra em caminhadas livres, conversando com músicos, líderes religiosos e mestres da cultura popular. Ao longo dos últimos cinco anos, o projeto ACESA foi sendo registrado e o álbum, lançado em novembro último nas plataformas de streaming, foi o resultado das inquietações e dos aprendizados surgidos neste processo de construção coletiva, e da ressignificação de alguns caminhos a partir do momento que vivemos hoje.

ACESA, o álbum, tem produção e arranjos assinados por Alessandra e Caê Rolfsen e baseia-se ritmicamente no coco e na ciranda, tendo como pontos base de criação percussões e sintetizadores. São 10 faixas inéditas e três vinhetas em que elementos orgânicos e eletrônicos são manejados sem purismo e compõem um resultado rico em timbres e texturas próprias e originais.

PONTO DE PARTIDA
A partir do estímulo provocado pelo livro Cidade passo, da artista visual Vânia Medeiros, Alessandra passou a pensar nas caminhadas em deriva como um método de criação. “A caminhada em deriva nos coloca num estado presente. É uma maneira de se perder no espaço e se afetar pelo espaço. É um deslocamento mais subjetivo”, diz Alessandra, que não caminhou sozinha. Então, convidou nomes como Mestre Galo Preto, Odete de Pilar, Beth de Oxum, o babalorixá Ivo de Xambá, entre outros.

Essas caminhadas, registradas para a websérie, foram feitas dentro de uma ideia de residência artística. Não havia trajeto nem roteiro de assuntos pré-definidos. Trazer mestres da cultura popular foi a escolha natural de Alessandra, já que esse universo é sua escola e essas pessoas, fonte de inspiração do seu trabalho. “Eu venho procurando outras formas de falar sobre minha arte que não sejam só eu. Como eu mostro pra mais gente quem é Ana do Coco, quem é Odete, quem é Galo Preto? Não sou eu a dar voz, odeio essa expressão. É cada um cantar com a sua voz. Eu tô aqui nessa escuta, como um meio para canalizar isso como uma obra artística, sobretudo”, conta. “A websérie talvez seja um grande compartilhamento de como eu penso a criação e de como cada artista cria. No final, o impulso criativo é o mesmo. Eu defendo essa ideia.”

As caminhadas e conversas da websérie foram feitas/registradas paralelamente à produção do álbum Macumbas e catimbós (2019).

O QUE (SE) ACENDE
Inicialmente, o álbum ACESA seria produzido antes desse último disco de Alessandra, também coproduzido com Caê Rolfsen. Acabou ficando para depois. E eis que veio uma pandemia, lançando o mundo num período de incertezas, medo e ausência de perspectivas. “Como eu vou produzir um disco no meio da pandemia? Será que é o melhor momento mesmo para lançar esse disco? Ter essa convocação para uma certa festa, uma certa alegria, um estado de celebração. Um convite ao movimento, a estar nas ruas, a dançar, aos encontros”, era o que afligia Alessandra, assim como a sensação de que ela não estava imbuída da energia necessária para gravar o disco.

Num jogo de tarô, foi dito a ela: “O disco vai ser feito com a luz que tem”. “ACESA não é necessariamente um estado de labareda, um estado de sol do meio-dia. É mais uma observação de ‘que luz está acesa naquele momento?’ Pode ser uma brasa no meio do breu, a luz da lua na noite, pode ser um toquinho de vela”, diz. “No final das contas, o disco é um grande convite ao movimento, da gente perceber essas nuances de diferentes claridades.”

Essa percepção também foi necessária para a compreensão de que, mesmo em um contexto tão adverso, estar “acesa” é como um “é preciso estar atenta e forte”. “A gente precisa ter uma alegria presa entre os dentes pra brigar”, diz Alessandra. E assim foi: um projeto composto por caminhadas, muitas em plena luz do dia; um disco produzido em madrugadas, onde as luzes externas a nós escasseiam, mas as internas podem se acender mais intensamente. De março de 2021 até a master finalizada uma semana antes do seu lançamento, o álbum ACESA veio à luz.

O DISCO
Em ACESA, Alessandra abre, diante de nós, um terreiro que congrega os deslocamentos à deriva, os corpos em transe e em trânsito, o movimento, a liberdade, as ruas – com a devida licença dos Exus e das Pombas-gira – os encontros, a coletividade, nessas encruzilhadas onde tantos convergem e se atravessam.

Os arranjos têm como principais elementos as percussões e os sintetizadores. Os sons eletrônicos já haviam se mostrado anteriormente na obra de Alessandra, na trilogia composta pelos EPs Pedra de sal (2014), Aço (2015) e Língua (2015). Em ACESA, não há uma prevalência de um sobre o outro nem a falsa dualidade que antepõe a tradição e a modernidade. As diversas possibilidades sonoras proporcionadas pelos elementos eletrônicos (synths, synth bass, mpc, organelle), incluindo também o processamento dos sons orgânicos, entram em consonância com estes, em timbres e texturas que consolidam uma sonoridade muito própria ao álbum.

Nas percussões, estão Alessandra, Mestre Nico, Guilherme Kastrup, Abuhl Junior, Mauricio Badé e Bruno Prado. Os instrumentos são típicos da formação de coco e ciranda da Mata Norte pernambucana e da Paraíba: tambores de baquetas (bombo, bombinho, caixa, surdo) e ganzá/mineiro. Caê Rolfsen comanda os synths, que fogem do lugar-comum e usual como eles são usados. Em ACESA, foram pensados para serem como os sopros da ciranda. Não há harmonias, acordes, e sim, contrapontos, frases musicais, linhas que compõem um todo.

ACESA traz várias participações e colaborações: As Filhas de Baracho, Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré, Lia de Itamaracá, Mestra Ana do Coco, Odete de Pilar, Mestre Barachinha, Mestra Nice Teles, além dos músicos Siba, Caçapa, Helder Vasconcelos, Nilton Jr., das cantoras Juçara Marçal e Laura Tamiana e da cantora e rabequeira Renata Rosa.

As músicas no álbum são de autoria de Alessandra, algumas em parceria, como Borda da pele, single que antecipou o álbum com a poeta Micheliny Verunsky e Caê Rolfsen; e Silêncio da pedra, com Juliana Godoy. Já Carminha é uma adaptação de Odete de Pilar de um canto tradicional; assim como em Sombra do dia, Alessandra inseriu trecho do coco Não vá se enganar com Farol da Bahia, garimpado da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, de Mário de Andrade.

Das músicas de ACESA, apenas Pé de baobá foi composta mais recentemente, para o amigo Guitinho de Xambá – falecido este ano. A homenagem se estendeu também a Leo Arrais, Flavão Oliveira e Letieres Leite. A canção Levanta o pó foi a única composta antes do projeto ACESA, e inicialmente endereçada a Elza Soares, para o disco Deus é mulher. A hora é minha foi composta para outra diva: Lia de Itamaracá, para o seu disco Ciranda sem fim. Assim como Elza, acabou não gravando a música, mas presenteou Alessandra com sua participação no disco, cantando-a.

Alessandra Leão estreia o show de ACESA nesta sexta (17/12), no Sesc Pompeia, em São Paulo (SP). Na banda, ela contará com Guilherme Kastrup (percussão e programações), Thamires Silveira (sintetizadores) e Marcelo Cabral (synth bass), além da participação de Mestre Nico (percussões).

LEONARDO VILA NOVA é jornalista e músico.

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