Para ele, a resolução passa pela desconstrução de uma concepção machista de instrumentos que seriam apropriados para mulheres. “Esse é um problema nacional, a falta de mulheres é percebida em muitas orquestras. Eu vejo isso como uma questão de formação, pois há uma cultura que coloca esses instrumentos de sopro como instrumentos masculinos. Percebo que o surgimento do Neojiba (programa de orquestras jovens que trabalha em regiões de vulnerabilidade social na Bahia) tem colocado mais meninas para tocar esses instrumentos. Na Rumpilezzinho, nós criamos cota para meninas”, afirma.
MENTOR DA NOVA CENA
A visibilidade que a Orkestra Rumpilezz ganhou, principalmente a partir do segundo disco, atraiu a atenção no mercado musical e alçou Letieres à condição de requisitado arranjador. Nomes como Nação Zumbi, Mariana Aydar, Paulo Miklos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Lenine, entre muitos outros, já trabalharam com o baiano ou com a Rumpilezz. Agora em 2019, quem terá disco e show arranjados por Letieres Leite é Maria Bethânia. Ele assina a direção musical e os arranjos do show Claros Breus, com o qual a cantora baiana está em turnê atualmente e que está agendado para chegar ao Recife no dia 30 de novembro, no Chevrolet Hall. Também são de Letieres os arranjos e a produção musical do disco que Bethânia lança até o final do ano em homenagem à Escola de Samba Mangueira.
Além dos projetos com Bethânia, 2019 tem sido um ano muito produtivo para a carreira de Letieres. Ele acaba de lançar O enigma Lexeu, primeiro álbum do Letieres Leite Quinteto, e se prepara para lançar até o final do ano, com a Rumpilezz, um álbum que é a releitura do disco Coisas, lançado por Moacir Santos em 1965. Este também é o ano em que o artista baiano completa 60 anos, 40 deles dedicados à música. Por coincidência, o encerramento da turnê de Bethânia será no dia do aniversário dele, 8 de dezembro, em Salvador, no palco na Concha Acústica do Teatro Castro Alves.
Apesar de rejeitar ser colocado na posição de cânone, o trabalho de Letieres, tanto com a Rumpilezz, quanto como arranjador, tem influenciado a forma como uma nova geração de músicos baianos trata o ritmo. Ele mesmo criou um projeto de formação, o anteriormente mencionado Rumpilezzinho Laboratório Musical de Jovens, que de 2015 a 2018 formou três turmas, mas atualmente busca financiamento para continuar. O curso é gratuito e trabalha a partir da metodologia do Universo Percussivo Baiano (UPB), desenvolvida por ele. O método é resultado do trabalho de pesquisa que busca construir a consciência rítmica. “O curso não tem a matéria Percussão. Eu me comunico com todos os instrumentos, menos com ela, pois é o meu objeto de observação. Seria uma contradição ter essa matéria”, explica.
No livro Rumpilezzinho Laboratório Musical de Jovens: relatos de uma experiência, lançado em 2017, Letieres define o UPB como um método que busca ensinar música popular brasileira a partir da consciência de um conceito estrutural ligado às suas matrizes negras, e que obedeça às regras de organização construídas na oralidade durante séculos. É justamente a oralidade o ponto principal do método. “Os terreiros de candomblé são grandes universidades de produção e preservação da música negra no Brasil. Dentro desses espaços, os toques seculares resistiram a toda a perseguição e se mantiveram bempreservados. E isso se deu através da oralidade”, explica, em trecho do livro.
O caráter professoral que Letieres Leite assumiu com a Rumpilezzinho faz com que ele seja visto como uma espécie de mentor na nova cena musical de Salvador. Não é raro vermos novos artistas incluírem nos seus currículos referências a aulas ou cursos que tiveram com ele. Tadeu Mascarenhas e Nancy Viegas, sócios do estúdio Casa das Máquinas, em que o criador do UPB costuma trabalhar nos seus arranjos e produções quando está em Salvador, classificam-no como um farol que guia uma nova geração de músicos.
“Depois que esse cara começou o trabalho mais intenso como arranjador e educador aqui na cena de Salvador, houve uma mudança brutal no comportamento dos músicos. Ele foi o primeiro arranjador com quem eu trabalhei a priorizar a música no corpo, porque a maioria olha primeiro para o papel. Com ele, a gente consegue desenvolver uma consciência rítmica corporal”, conta Tadeu. “Ele educou a nova geração e elevou o nível dos músicos”, complementa Nancy.
FORMAÇÃO MUSICAL
A formação musical de Letieres Leite é um processo de distanciamento e reaproximação. Precisou ir muito longe buscar a consciência rítmica que hoje ele transmite. Apesar dos 40 anos de dedicação ao ofício, o despertar para a música foi tardio, apenas entre os 19 e 20 anos. “Até essa idade eu pintava e tinha uma produção enorme”, conta. Mas a vivência na música, a partir do movimento estudantil, fez sua vida mudar completamente e o levou para longe de Salvador, para descobrir a consciência e o rigor da organização rítmica.
O primeiro contato com a música foi ainda aos 11 anos, no início dos anos de 1970, quando Letieres tocava percussão na Orquestra Afro-brasileira, comandada pela etnomusicóloga Emília Biancardi, no colégio público Severino Vieira, em Salvador. “Eu considero esse o meu marco zero na ligação com a percussão da Bahia”, afirma. Por questões financeiras, aos 12 anos ele se mudou com a família para Petrolina. Ao lembrar o ano que passou em terras pernambucanas, o semblante dele se enternece. Os bons momentos que lhe vêm à cabeça do ano que passou fora da cidade natal são assim descritos: “Foi um tempo memorável, lindo, de curtir a infância. Eu não tinha isso em Salvador. Em Petrolina, eu brincava como um menino do interior de Pernambuco, mesmo. Algo praticamente impossível de se viver numa capital”, lembra.
O interesse pela música surgiu com a mobilização política. Aos 17 anos, Letieres passou no vestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) para o curso de Artes Plásticas. Eram meados dos anos de 1970 e Letieres participou da recriação do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e da União Nacional dos Estudantes. Ele se tornou uma das figuras ativas na Mostra de Som, evento realizado pelo DCE, e se aproximou de um grupo de músicos que incluía nomes que hoje são conhecidos na cena de música instrumental de Salvador, como Mou Brasil, Jorge Brasil, Paulinho Andrade e Cesário Leoni. Foi nesse período que ele começou a aprender flauta, instrumento que o acompanha até hoje.
Entre as experiências mais importantes desse início de Letieres na música, estão as reuniões na casa da família Brasil, no número 43 da Ladeira do Carmo, no Pelourinho. “Aquela casa, para mim, foi a primeira universidade livre de música na Bahia. A gente se reunia lá para colocar os discos de jazz na radiola e tirar os solos de improvisação”, conta.
O momento crucial para a transição da pintura para a música foi, ironicamente, a reprovação na Escola de Música da UFBA, em 1979. A tentativa frustrada de mudança de curso fez o jovem Letieres abandonar a Escola de Belas Artes e tentar uma carreira de músico em Santa Catarina. No Sul, ele passa por dificuldades financeiras, mas consegue se estabilizar e se profissionaliza como músico. “O primeiro momento lá foi o período mais gritante de sobrevivência, pois eu cheguei a ficar quase quatro meses dormindo embaixo de um viaduto”, lembra.
A situação mudou quando ele foi tocar em um bar de jazz. Era o início da construção de uma carreira de músico na noite de Santa Catarina. “Foi nessa época que eu montei a minha primeira banda, que se chamava Banda de Nêutrons. Fizemos até muito sucesso na cena de música instrumental por lá. Tinha alguns músicos que se tornaram conhecidos, como Alegre Corrêa, que é conhecido na Europa e ganhou Grammy”, conta.
Com o reconhecimento, começaram a aparecer convites para trabalhos de gravação como arranjador em Porto Alegre, no início dos anos 1980. Lá, Letieres conquistou seus primeiros prêmios: Músico do Ano, em 1983, e Arranjador do Ano, em 1984, ambos em uma premiação organizada pelo jornal Zero Hora e o crítico Juarez Fonseca. “Esses prêmios me firmaram no mercado. Foi quando eu fiz o meu primeiro arranjo de orquestra, para Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Eu ainda era um músico autodidata”, diz.
A oportunidade de realizar os estudos formais de música, um desejo desde a reprovação na UFBA, veio em grande estilo: no Franz Schubert Konservatorium, em 1985, na Áustria. Mesmo com a possibilidade de estudos formais, os principais aprendizados se deram na vivência na rua e na noite de Viena. “Esse período foi o maior laboratório musical da minha vida. Aprendi muito tocando com gente de todos os lugares: da África, dos EUA; com árabes, alemães, com os próprios austríacos…”, afirma.
ORGANIZAÇÃO RÍTMICA
Da Áustria, Letieres foi para Suíça, onde entrou na banda do violinista cubano Alfredo de la Fé e na qual mais uma transformação se deu. “Com ele, eu tive a grande eureca, que foi essa história da organização rítmica. Eu ouvia os cubanos falando sobre isso e imaginava que poderia caber na música brasileira também. Fiquei com isso na cabeça durante anos, fazendo testes, até que consegui sistematizar no UPB, no início dos anos 2000, e daí nasceu a Rumpilezz.”
Foto: Márcio Lima
Antes de voltar para o Brasil, Letieres ainda tocou com Paulo Moura na Suíça, com quem se apresentou na edição de 1992 do Festival de Jazz de Montreux. A volta ao Brasil aconteceu em 1994. “Volto direto para Salvador com a intenção de ensinar. Estava já consciente dessa nova proposição de dar aula a partir das questões matriciais rítmicas.” A primeira parada foi no curso de extensão de Música da UFBA, na mesma escola que o havia reprovado 15 anos antes. A segunda parada, no mercado do Axé Music. O trabalho de maior destaque foi com Ivete Sangalo, com quem trabalhou mais de 10 anos como instrumentista e arranjador. Ainda com ela, Letieres montou a Rumpilezz, mas a incompatibilidade de agendas o fez assumir seu projeto autoral.
A saída de Letieres da equipe de Ivete marca a reaproximação com o início da sua trajetória na música, ainda como estudante de Belas Artes. É como se ele precisasse ter vivido toda essa saga particular para construir a sua formação e trazer a consciência rítmica, que é sua principal marca e a sua principal contribuição para a cena musical. Essa experiência o preparou para definir uma forma de fazer música, principalmente instrumental. Na Bahia, os efeitos da Rumpilezz já podem ser sentidos – no Brasil, isso pode acontecer em breve.
MARCELO ARGÔLO, jornalista, aspirante a crítico musical. Atualmente, pesquisa a cena musical contemporânea de Salvador no mestrado em Comunicação pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).