Reportagem

Uma tragédia que ecoa [Parte 1]

Insegurança alimentar recrudesce no país, atingindo mais da metade da população brasileira e 19 milhões passam fome

TEXTO DÉBORA NASCIMENTO
ILUSTRAÇÕES GILVAN BARRETO

02 de Dezembro de 2021

Ilustração Gilvan Barreto

[conteúdo na íntegra | ed. 252 | dezembro de 2021]

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Um homem vestido com uma camisa social azul, calça e sapatos pretos está parado entre dois edifícios, olhando para as janelas dos andares. Ele poderia ser um transeunte indo para o trabalho e que resolveu observar algo. Mas, tão logo toma fôlego, leva as duas mãos aos lados da boca para amplificar o som do que vai dizer pausadamente: “Eu tenho família. Meu nome é Marcos. Alguém compra um pão pra nós. Alguém compra um leite. É fome. Por favor, é fome”. Natural de Goiás, pai de dois adolescentes, Marcos trabalha como auxiliar de pedreiro, mas é um dos 14 milhões de desempregados do país. Costuma ir a Brasília para pedir comida como forma de não ver a mulher e os filhos famintos. Sua voz quebra o silêncio que a fome impõe, ecoa pela quadra 106 da Asa Norte e pelas redes sociais, através de um registro em vídeo de celular bastante compartilhado a partir de 3 de novembro. Nos comentários dos portais de notícia, praticamente repetia-se a mesma fala dos leitores: “Isso está acontecendo muito aqui em ________ (preencha com o nome de qualquer cidade brasileira)”.

Sem renda fixa, Marcos é também um dos 19 milhões de brasileiros que estão, neste exato momento, passando fome no país. O número vem do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), realizado em dezembro de 2020 (a situação pode ter se agravado desde então). De acordo com os dados, 116,8 milhões de pessoas no Brasil estão em insegurança alimentar. Ou seja, não é que “mais da metade do Brasil está sem comer”, como cantou Luiz Gonzaga em Vozes da seca, de 1953, porém mais da metade do país (55,2%) está em algum grau de insegurança alimentar, que pode ser leve, moderada ou grave – esta, a fome propriamente dita: não ter mesmo o que comer.

No dia seguinte à ida de Marcos à Asa Norte de Brasília, a apenas 15 quilômetros dali, a Câmara dos Deputados aprovava, em votação apertada, em 1º turno, a PEC dos Precatórios. Também chamada de PEC do Calote, a Proposta de Emenda Constitucional, apresentada pelo Executivo, tem o objetivo de adiar o pagamento das dívidas do governo federal de sentença judicial definitiva, para usar esse dinheiro (R$ 91,6 bilhões) para novos gastos, dentre eles, suspeita-se, emendas do “orçamento paralelo” ou “emendas do relator” (cuja falta de transparência sobre a aplicação da verba pública está sob a mira do STF) e também para o Auxílio Brasil (que receberia R$ 50 bilhões desse montante). A vinculação entre o pagamento de R$ 400,00 a pessoas como Marcos e outros fins demonstra ser apenas uma manobra política com o intuito de confundir o entendimento do público. A verba do novo benefício poderia vir de uma Medida Provisória de crédito extraordinário, garantem os políticos da oposição.

Apontado com o “Bolsa Família de Bolsonaro”, o Auxílio Brasil já nasce cheio de segundas e terceiras intenções e poucos esclarecimentos sobre como será seu funcionamento. A urgência em implantar algum benefício, ninguém questiona. O Auxílio Emergencial, interrompido em novembro e pago de forma claudicante durante a pandemia do novo coronavírus, contribuiu para não agravar (ainda mais) a situação de penúria em que se encontra parte considerável da população brasileira, beneficiando, em 2020, 68 milhões de pessoas, e em 2021, 39 milhões. Já o programa de transferência direta de renda, abrangerá apenas 17 milhões de brasileiros.

“O Programa Auxílio Brasil não possui nenhuma relação com o Programa Bolsa Família. Apesar das tentativas de aproximar a imagem entre os programas, isso se dá tão somente para legitimar o discurso de que é preciso ‘enxugar o custo social’. Este é um argumento que foi construído a partir da desmoralização do Bolsa Família e da rede de proteção social que o sustenta, em um processo que ganhou força com a implementação – necessária e urgente – do Auxílio Emergencial, mas que foi feita sem se considerar a possibilidade de expansão do próprio Bolsa Família e com a desconsideração de sua rede já existente”, analisa a historiadora e pesquisadora do Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Sociologia da FFLCH/USP, Denise de Sordi, que aponta o desmanche do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).

“O CadÚnico é um dos pilares da assistência social brasileira”, explica Denise. “Não se trata de um mero cadastro que permite a gestão técnica de alguns dados, ele é a base informacional dos programas sociais brasileiros. Permite obter retratos do país que embasam ações, pesquisas, o desenvolvimento de novas políticas e programas, o direcionamento de investimento e ainda é responsável por articular a gestão dos programas entre as esferas de governo. E não estamos falando apenas da gestão do agora extinto Bolsa Família.”

Para a pesquisadora, a mudança em seu formato, com o auto-cadastramento por meio de apps, poderá desativar toda a rede socioassistencial organizada a partir da base informacional: “O CadÚnico organiza e orienta as ações de todo programa social direcionado às parcelas populacionais de baixa renda, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a Tarifa Social de Energia Elétrica, Programa de Cisternas, Isenção de Pagamento de Taxas de Inscrição em Concursos Públicos, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), dentre tantos outros que são desenvolvidos pelo governo brasileiro e que compõem – até então – a rede de proteção social do país”.

O Auxílio Emergencial veio suprir uma demanda de urgência e o Auxílio Brasil, com previsão de validade até dezembro de 2022, finge que virá cobrir os efeitos nefastos da pandemia, como a fome. Mas, ao contrário do que possa parecer, essa situação não começou a partir de março de 2020: ela é endêmica, estrutural, e não pandêmica. Ela não nasceu na pandemia que, no Brasil, matou mais de 600 mil pessoas – e dessas, ninguém sabe qual o percentual dos que morreram por baixa imunidade decorrente de desnutrição. Sabemos apenas que negros, pardos e indígenas morreram mais do que brancos (segundo estudo da Universidade Federal de Pelotas e os dados apresentados pelo geógrafo Pedro Hallal à CPI da Covid, em junho).

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O quadro de fome já vinha se agravando. O Brasil havia deixado o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) em 2014. Sair desse mapa significa atingir menos de 5% de sua população em insegurança alimentar grave. Naquele ano, “apenas” 2,5 % dos brasileiros estavam sem ter o que comer. Em um país continental, esse percentual representa, na prática, mais de 2 milhões de seres humanos famintos. Quatro anos depois e um golpe de estado no meio, foi anunciado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que o país voltava a ter mais de 5% de sua população famélica.

O Brasil retornava ao Mapa da Fome em 2018 – mas não oficialmente, pois ele ainda está fora desse ranking, segundo a última publicação da FAO em 2020, que mantém o índice de 2,5%, pois sua medição, há 50 anos, é a Prevalence of Undernourishment (PoU, Prevalência de Desnutrição) e não a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), aplicada no Brasil e considerada mais completa e realista. Segundo o levantamento do IBGE, em média, diariamente 15 pessoas morrem de fome.

Esse número lembra os relatos de médicos que, atendendo pacientes nas emergências durante a pandemia, com simples checagens, logo descobriram que a “doença era fome”. E os dados, tanto dos mortos da Covid-19 quanto dos mortos de fome, reforçam a tese da necropolítica de Achille Mbembe. “O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer. Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado”, escreveu o filósofo camaronês, autor do conceito.

Para chegar a esse patamar nefasto, dois anos antes, em 2016, ocorreu o agravamento da desigualdade social e a perda do poder de compra da renda do trabalhador. Sob o argumento de contenção da crise econômica que se arrastava desde 2014 (e que permanece), o então presidente Michel Temer, que ascendeu ao poder com o impeachment de Dilma Rousseff, abriu a cartilha neoliberal e aplicou alguns de seus dispositivos. Dentre suas ações, impôs o fim da política de valorização real do salário-mínimo; promoveu a precarização do emprego através da reforma trabalhista, que, em vez de gerar emprego, como prometido, apenas retirou mais direitos e aumentou o desemprego; realizou cortes nas políticas de mitigação da fragilidade social, como o Bolsa Família.

“Em 2016, a gente já começou a receber relatos dos nossos comitês, que são mais de 50 no Brasil, reportando que a pobreza e a fome estavam começando a voltar. Foi uma coisa empírica. Os dados a gente não tinha, pois o IBGE só faz a pesquisa com relação à segurança alimentar de quatro em quatro anos. E a nova pesquisa seria apenas em 2018. Esses dados empíricos captam uma visão muito mais rapidamente do que os institutos de pesquisa”, afirma Rodrigo “Kiko” Afonso, coordenador da Ação da Cidadania contra a Fome, legendária ONG criada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1993, e que ainda é a principal entidade a combater a fome no país. “Se a gente ouvisse mais as lideranças comunitárias, talvez conseguisse agir muito antes até de esses dados aparecerem no IBGE. Essas pesquisas captam o retrato do momento pesquisado e não necessariamente como está a situação atual.”

Como dizia a frase-slogan do saudoso Betinho, falecido em 1997, “Quem tem fome tem pressa”. Se os governantes ouvissem mais essas lideranças e se antecipassem à tragédia, talvez não ocorressem cenas desumanas, como o garimpo de ossos no Rio de Janeiro ou de restos de comida no caminhão do lixo em Fortaleza, que provocaram consternação na opinião pública e que ganharam repercussão em jornais, revistas, TVs e redes sociais. “Não precisava sair na mídia para que as pessoas enxergassem essa realidade. Ela está à nossa volta. É só olhar na calçada, na rua, para ver as pessoas em situação de fome”, destaca Kiko Afonso, que promove arrecadação de doações o ano inteiro e no Natal Sem Fome.

Para ele, o problema é que a fome foi normalizada no país. “Há pessoas famintas no chão, sem ter o que comer, e se olha para aquilo como se fosse algo natural. E aí, quando veem imagens como essas na imprensa, parece que é uma coisa que está acontecendo só agora. E não é. É algo que acontece há anos. Algo que é a realidade de muita gente no Brasil há muito tempo. Mas as pessoas precisam da tragédia para se comover”, critica, confirmando os relatos de muitos que, com a pandemia, passaram a fazer mais refeições devido à solidariedade aflorada no período. “O brasileiro doa na tragédia, mas não doa no drama. E o fato de a gente só agir na tragédia explica muito por que esses problemas não são resolvidos, por que a gente precisa atuar de forma constante para que o problema seja resolvido, para que as questões possam, de fato, ter soluções perenes e não pontuais”, avalia.

Além do levantamento da Rede Penssan, uma pesquisa divulgada em abril deste ano, realizada pelo Food for Justice Movement – Power, Politics and Food Inequality in a Bieconomy, da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a UFMG e UnB, confirma que a insegurança alimentar aumentou de forma alarmante no Brasil. Em dezembro de 2020, atingiu 59,4% dos domicílios brasileiros, 31,7% estão em situação de insegurança alimentar leve, 12,7% moderada e 15% em situação de insegurança alimentar grave em todas as regiões. Há diferenças no percentual de insegurança alimentar (abrangendo os três níveis) nas regiões Sul (51,6%), Sudeste (53,5%), Centro-Oeste (54,6%), Norte (67,7%) e Nordeste (73,1%). A insegurança alimentar grave atinge 29,2% dos nortistas e 22,1% dos nordestinos. Essa escala chega a 27,3% áreas rurais, 16,9% em áreas rurais e urbanas e 13,1% das urbanas.

A fome também reflete o machismo e o racismo do país. Atinge 25,5% das casas chefiadas por mulheres e 13,3%, por homens. E 48,9% dos lares administrados por brancos estão em algum nível de insegurança alimentar. Esse índice sobe para 66,8%, se o provedor da família for negro, e para 67,8%, pardo. No nível mais grave, a fome está presente em 23,4% dos domicílios sob o encargo de negros e 18,9%, por pardos. Já os lares com pessoas de mais de 60 anos de idade são os menos atingidos pela insegurança alimentar: 58,4%. Em outras palavras, a aposentadoria tem impacto positivo na vida do brasileiro e na economia.

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A interrupção, pelo atual governo, de políticas públicas de combate à miséria e à fome é apontada, por todos os especialistas em segurança alimentar, como uma das causas para o agravamento da tragédia famélica. Uma das primeiras ações de Jair Bolsonaro, no início de seu mandato em 2019, foi extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), desorganizando as políticas da área. Criado em maio de 1993 por Itamar Franco, o Consea foi extinto por Fernando Henrique Cardoso, no ano seguinte, ao criar o Comunidade Solidária. O conselho, que tinha a atribuição de elaborar, discutir e sugerir à presidência da República ações que orientassem as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional foi reativado no governo Lula.

Outros desmantelamentos promovidos por Bolsonaro em medidas históricas e bem-sucedidas de governos anteriores também pioraram o quadro, como a redução do Programa de Cisternas, que leva água para a agricultura e pecuária nas regiões mais secas do Nordeste e o fim dos estoques reguladores, que passaram a ser extintos em 2017 e impediriam o encarecimento de itens básicos como o arroz e o feijão, que tiveram aumentos estarrecedores de 61%, e 69%, respectivamente, do começo da pandemia até março de 2021. Entrou na sua lista de cortes o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), através do qual o governo federal compra alimentos produzidos pela agricultura familiar e distribui no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Também reduziu o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), com um corte de 40% em 2021. Em outras palavras, o Estado abandonou a política de segurança alimentar e nutricional.

Foi por isso que, para conter parte dos efeitos de suas próprias ações, o governo federal apresentou o Auxílio Emergencial. De acordo com o estudo do Food for Justice Movement, com dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD-COVID), 63,3% dos entrevistados que receberam o benefício utilizaram os recursos para comprar comida e 27,8% para pagar contas e dívidas. A insegurança alimentar afetou 43,4% das casas onde ninguém recebeu Auxílio Emergencial e 7,4% delas chegou à situação de fome.

Mas a verba do Auxílio Emergencial (inicialmente R$ 600,00 e depois variando entre R$ 150,00 e R$ 375,00) não foi suficiente para abranger a quantidade de necessitados e os gastos dos beneficiários, principalmente por causa da desvalorização do real. A inflação se realimenta a partir de vários fatores, alta no preço do dólar, dos combustíveis, do gás de cozinha, da energia elétrica, que teve expressivo aumento devido à crise hídrica nos reservatórios do país, consequência da falta de chuva, provocada pelo desmatamento na Amazônia, que cresceu 47% no governo Bolsonaro – cujas medidas nessa área enfraquecem a fiscalização dos órgãos competentes e culminam por beneficiar queimadas, grilagem, desmatamento e tráfico de madeira ilegal.

Toda essa equação de fatores acaba interferindo no preço dos alimentos. O prato básico da culinária brasileira, feijão, arroz e carne, virou artigo de luxo – o aumento acumulado da carne, em especial, chega a 69,9%, entre janeiro de 2019 e agosto de 2021, pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Para se alimentar, alguns cidadãos desesperados buscam no furto a tentativa de obter o mais básico à sobrevivência, comida. E alguns desses casos, por terem desfechos ultrajantes, ganharam espaço na imprensa, como o de Rosângela Cibele, que furtou, em um supermercado de São Paulo, alimentos que custavam no total R$ 21,69.

Mesmo tendo devolvido os itens ao ser advertida pela caixa, ainda dentro do estabelecimento, ela foi presa por policiais, sob os gritos “Estou com fome! Estou com fome!”. Passou 18 dias na prisão, até que finalmente foi concedido o habeas corpus, pela irrelevância do valor furtado. Ao sair, deu uma entrevista em um programa de TV, no qual revelou que estava numa luta para se curar do vício em crack, que gostaria de voltar a ter a guarda dos cinco filhos e finalizou: “Meu grande sonho é ser gente”.

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Desde 2004, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é que casos de furto (apossar-se de algo sem arma ou ameaça à vida) famélico devem ser arquivados, pela insignificância do valor. Na realidade, não existe a expressão “furto famélico” no Direito Penal, mas “estado de necessidade”. Sob esse argumento, o crime deixa de acontecer. No entanto, muitos processos semelhantes ao de Rosângela Cibele acabam chegando às instâncias superiores da justiça, Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF.

Para o Supremo, comida, produtos de higiene pessoal, ínfimas quantias em dinheiro são considerados insignificantes. No entanto, juízes e desembargadores de tribunais do país vêm condenando à prisão os suspeitos de pequenos furtos. Além de ignorar o entendimento do STF e os direitos humanos daqueles que furtam para atender às necessidades básicas, esses processos tornam o sistema judiciário sobrecarregado e vagaroso, prejudicando o andamento de ações realmente relevantes para a sociedade.

Isso leva à detenção de pessoas como Joana, presa pelo furto de dois pedaços de picanha em Minas Gerais para alimentar suas filhas de 5 e 3 anos – em 2018, o STF decidiu que a prisão preventiva pode ser substituída por domiciliar para mães de crianças de até 12 anos. Faxineira desempregada, ao tentar sair do mercado com a carne sem pagar, foi barrada pelos seguranças. Os produtos foram devolvidos, mas ela acabou presa em flagrante. Segundo a lei, deveria ter sido encaminhada para uma audiência de custódia, onde seria ouvida por um juiz em até 24 horas. No entanto, devido à pandemia, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais não estava realizando essas sessões nem virtualmente. Um juiz de plantão determinou a prisão preventiva baseado no fato de ela ser reincidente. Joana só foi libertada porque fez um bilhete para uma defensora pública que se encontrava na penitenciária.

Os juízes que decidem a prisão de suspeitos de furtos de comida baseados em reincidência não levam em consideração o fato de que a fome também é reincidente, tanto no estômago quanto na História. Outros casos não chegam nem à polícia ou à justiça. Há episódios de espancamentos até a morte de quem tentou furtar carne em supermercados. Ocorreram em outubro de 2018 (Jonathan Barbosa), em novembro de 2020 (João Alberto Silveira Freitas) e em maio deste ano (Yan Barros da Silva e Bruno Barros da Silva). E estes são os que tiveram registros da imprensa.

As ocorrências de furtos, roubos, latrocínios e até tráfico de drogas têm sua origem, em grande parte, na fome, confirmando a frase emblemática de Josué de Castro, dita em um discurso na FAO – Food and Agriculture Organization das Nações Unidas, na década de 1950: “Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come”. Mas, há um detalhe, quem não come também não consegue dormir, como cantou Chico Science em Da lama ao caos (1994).

Perseguido pela ditadura militar instaurada no Brasil em 1964 e falecido em 1973, no exílio em Paris, aos 65 anos, Josué não teve tempo suficiente para observar que os que comem encontrariam uma forma de dormir, mesmo que isso modificasse a arquitetura e a forma de convivência nas cidades: condomínios privados em detrimento do espaço público, muros altos com cercas elétricas, câmeras de vigilância e seguranças armados, carros particulares blindados, esquadrões da morte e encarceramento em massa dos pobres em penitenciárias que tratam pessoas e ratos com a mesma deferência.

Em Geografia da fome, lançado há 75 anos, o médico, sociólogo e político pernambucano apresentou o estudo mais relevante sobre o tema no Brasil e abordou um problema que era enxergado pela sociedade como restrito a certos países distantes, situações de guerra e intempéries climáticas. A fome não era entendida como um problema endêmico, político, social, econômico. O pesquisador atentou para o fato de que ela trazia consequências sérias e graves ao ser humano, podendo acarretar problemas perenes. Os efeitos de uma má alimentação seriam mais profundos, influenciariam na duração e na qualidade da própria vida, na capacidade de trabalho e de pensamento, no estado psicológico.

No livro, Josué registra uma surpresa. Ao pesquisar o tema, descobriu raras publicações, mesmo em nível mundial. A fome e o sexo eram tabus no meio intelectual, porque estavam vinculados aos instintos. Portanto, seriam desprezíveis. O sexo conseguiu sua redenção através de Sigmund Freud. “Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social — a Revolução Russa — nas quais pereceram 17 milhões de criaturas, das quais 12 milhões, de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo”, escreveu.

Além da elite intelectual, a elite econômica também evitava o tema. “Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos – e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública”, apontou o sociólogo, que foi indicado por três vezes para o prêmio Nobel: de Medicina (1954) e da Paz (1963 e 1970).

Em Geografia da fome, Josué menciona o caso da Índia, onde, nos últimos 30 anos do século XIX, morreram de inanição mais de 20 milhões de habitantes: “E, no entanto, de acordo com a sugestiva observação de Richard Temple – ‘enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de Calcutá continuava a exportar para o estrangeiro quantidades consideráveis de cereais. Os famintos eram demasiados pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida’. É lógico que os grandes importadores, negociantes de Londres, Rotterdam e outras grandes praças europeias, que tiravam grandes proventos de suas importações da Índia, faziam o possível para abafar na Europa os rumores longínquos desta fome longínqua, a qual, se tomada na devida consideração, poderia atrapalhar os seus lucrativos negócios”.

Os estudos da situação de miséria e fome dos brasileiros feitos por Josué de Castro promoveram a implantação de políticas sociais no país, como restaurantes populares, sacolão popular e alimentação escolar. Em 1932, a partir de levantamento realizado com operários dos bairros de Santo Amaro, Encruzilhada e Torre, da zona norte do Recife, descobriu-se que o consumo diário deles era de 1.645 calorias, enquanto o indicado na época era de 3 a 4 mil calorias. Esse estudo teve ampla repercussão nacional, provocando a realização de similares em outros estados, servindo de base para fundamentar a implantação do salário-mínimo no Brasil por Getúlio Vargas e que passou a vigorar a partir de 1º de maio de 1940.

Josué foi presidente do Conselho da FAO (1951-1955), entidade da ONU que surgiu em outubro de 1945 junto com a criação da Organização das Nações Unidas. A ideia surgiu em 1943, na Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira reunião para tratar de soluções para reconstrução do mundo pós-guerra. Na conferência, foram discutidos os índices de mortalidade e doenças decorrentes de carências alimentares, como beribéri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemias e a falta de nutrientes indispensáveis ao ser humano.

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A FAO, a princípio, era reticente em mencionar a palavra fome. Nos seus relatórios, preferia referir-se à “subnutrição”. Mas, enfim, acabou utilizando a nomenclatura fome. “Antes do termo insegurança alimentar ganhar espaço, a gente usava muito mais fome, desnutrição, subalimentação, que são quase como sinônimos. Mas tem algumas diferenças. O que importa aqui é que a fome era medida nesses termos por uma questão biológica, clínica, de ausência de nutrientes no corpo”, explica a historiadora Adriana Salay Leme, que pesquisa a fome e hábitos alimentares.

“Então, quando você comia menos que o necessário, ficava clinicamente desnutrido. E se podia ver isso por doenças associadas ou exame de sangue, e aí a gente fala em fome e subnutrição. Depois de uma pesquisa feita na década de 1980, nos Estados Unidos, foi criada uma escala de insegurança alimentar que tem uma outra forma de medir a fome, que capta um processo que vem antes da desnutrição, já uma ausência prolongada de alimentos que vai levar a doenças associadas, incapacidade de concentração, diminuição do crescimento em crianças”, completa a historiadora.

O Brasil hoje utiliza a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), a partir da aplicação de um questionário. “Ele começa assim: você ficou com medo de não ter dinheiro suficiente para comprar alimento? Esse é o primeiro estágio da falta de alimento, quando, em outras palavras, a sua renda não dá pra comprar alimento suficiente para sua família. E captar isso é muito importante, porque a gente entende que a fome é um processo. Ela não se dá no estágio final de desnutrição e inanição, que antes se media. A insegurança alimentar tem se sobreposto ao termo fome. Hoje a gente usa insegurança alimentar leve, moderada e grave. E a gente só denomina fome no último estágio, que é o grave, quando a pessoa passa o dia inteiro sem comer. Nos Estados Unidos, eles tiraram o termo fome. Passaram a adotar só insegurança alimentar. E agora estão usando insegurança alimentar baixa. A população, em geral, se relaciona pouco com esse termo. Fome é muito mais conhecido para esse fenômeno”, detalha Adriana.

Segundo a EBIA, Segurança Alimentar é “quando a família/domicílio tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais”. Insegurança Alimentar leve é “quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro; qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam a não comprometer a quantidade de alimentos”. Insegurança Alimentar Moderada é “quando há redução quantitativa de alimentos entre adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos”. E Insegurança Alimentar Grave é a “redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultantes da falta de alimentação entre todos os moradores, incluindo as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio”.

“Essa escala é uma ferramenta muito boa, que a gente tem que continuar lutando por ela medir a fome a partir da percepção da pessoa que está nessa situação. Não é uma medição clínica. Eu gosto muito do que o (geógrafo) José Raimundo (Ribeiro) faz a partir dessas ferramentas da Escala de Insegurança Alimentar: adota os termos segurança alimentar, risco de fome e fome. Helena Silvestre (ativista e autora do livro Notas sobre a fome), diz assim: ‘Não há nada leve no processo de fome. Então, insegurança alimentar leve é um termo muito ruim, porque ninguém acha isso leve. Ninguém está leve nesse lugar’”, acrescenta Adriana.

O termo insegurança alimentar nos faz lembrar a expressão irônica dos anos 1990 (inspirada nos eufemismos do então presidente Fernando Henrique Cardoso): “tucanaram” a fome. Por outro lado, a palavra fome parece que perdeu seu peso semântico no Brasil, porque no país as pessoas estão acostumadas a dizer “estou morrendo de fome”, como se fossem personagens de Vidas secas, quando apenas passaram da hora de comer. Então parece haver muita gente que não tem dimensão do que, de fato, está acontecendo no Brasil, incluindo – ou, melhor, principalmente – o próprio presidente.

Em julho de 2019, Jair Bolsonaro encarnou a Maria Antonieta e declarou: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora passar fome, não. Você não vê gente pobre pelas ruas com físico esquelético, como a gente vê em alguns outros países por aí pelo mundo”. Para tornar a declaração ainda mais absurda e cínica, ela foi dita em um café da manhã.

Ignorando o fato de que o país voltou ao Mapa da Fome em 2018 e de que há crianças desmaiando de fome em salas de aula, o governante resgata uma imagem que se tem no imaginário coletivo, representada, por exemplo, nas fotos feitas por Joaquim Antônio Corrêa, em 1878, e que acompanharam a reportagem de José do Patrocínio sobre a seca no sertão nordestino, ou a pintura Retirantes, de Cândido Portinari, de 1944. Como denunciou Josué, uma pessoa pode estar acima do peso e, mesmo assim, desnutrida. Segundo ele, haveria uma fome oculta “pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias”.

“O que eu aviso aos pretendentes à política, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”, escreveu Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo (1960), livro baseado no diário em que relatava a luta por sobrevivência como catadora de lixo, entre 1955 e 1960, e que acabou por retratar o cotidiano angustiante dos que passam fome nas favelas e buscam alimentar seus filhos. “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”.

Sem saber, a escritora deu, talvez, a principal explicação para o absoluto compromisso do ex-presidente Lula com relação ao tema. Não custa lembrar, o político saiu do agreste pernambucano, aos 7 anos, em 1952, junto com a mãe e os sete irmãos, fazendo o mesmo percurso do notório êxodo rural nordestino em direção ao Sudeste, num pau de arara, para fugir da miséria e da fome. No seu discurso de posse no dia 1º de janeiro de 2003, proferiu: “E quero propor isso a vocês: amanhã, estaremos começando a primeira campanha contra a fome neste país. É o primeiro dia de combate à fome. E tenho fé em Deus que a gente vai garantir que todo brasileiro e brasileira possa, todo santo dia, tomar café, almoçar e jantar, porque isso não está escrito no meu programa. Isso está escrito na Constituição brasileira, está escrito na Bíblia e está escrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos. E isso nós vamos fazer juntos”.

[Continue lendo reportagem na Parte 2]

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