ILUSTRAÇÕES GILVAN BARRETO
02 de Dezembro de 2021
Ilustração Gilvan Barreto
[continuação do especial de capa da ed. 252 | dezembro de 2021]
“A fome sempre esteve presente no Brasil. Ela é um sintoma da desigualdade social, de uma sociedade que produz essa desigualdade de gênero, raça e classe, que dá acesso a uma parcela da população e não dá para outra. Então, desde a estruturação dessa sociedade, se a gente pegar a invasão e colonização deste território, a gente sempre tem fome presente. Durante muito tempo, a fome foi entendida como uma situação de crise. Então, os registros que a gente tem de fome no Brasil estão muito associados a momentos de crise. No território brasileiro, significa principalmente a seca sertaneja. O termo fome era acionado quando existiam grandes secas, que obviamente não eram só um problema, eram também um problema social de desigualdade como tem em todo o Brasil e que provocava um imenso êxodo rural, muita morte”, prossegue Adriana Salay Leme.
Se havia um êxodo rural, agora há um novo “êxodo”, representado pelas pessoas que se veem obrigadas a deixar suas casas para viverem nas ruas, porque a renda não dá conta das despesas. “A vida ficou difícil. Não tem emprego. Eu vendo água e pipoca. Mas é uma perseguição tão grande! Até colocaram policiais pra tirar os ambulantes de dentro do metrô. Eu acho que a polícia foi feita pra correr atrás de ladrão e não atrás de trabalhador. Eu tenho estudo, parei no primeiro ano, aos 21 anos. Eu culpo o governo e Brasília, porque não olham pelo povo. Eu morava em Dois Unidos. Mas não consegui mais pagar aluguel, depois que me separei. O aluguel está muito alto, na base de 400 reais pra cima. Na Paraíba, o bujão de gás é 75 reais, aqui é 100. E por quê? Por causa do ICMS de 17%. Então, a desigualdade em Pernambuco está maior que em São Paulo”, afirma o autônomo Denilson de Souza, 47 anos, que está em situação de rua no Recife, cidade apontada pelo IBGE como a mais desigual do Brasil, enquanto Pernambuco é o terceiro estado com a maior concentração de renda.
“Sempre fui autônomo, mas dava pra viver. Antes da pandemia, o povo tinha dinheiro ainda. Depois desempregou muita gente. E o cara que ganha salário-mínimo vai conseguir manter a família? O Bolsa Família é uma merreca. Vou receber a última parcela do auxílio emergencial agora, 250 reais, por causa dos filhos. Mas não dá pra nada. Está tudo caro. A gente depende desse povo que traz comida. E eu vou vender água pra um dia que não tiver ajuda, pra comprar um pão, porque às vezes não tem ajuda das pessoas. E os parentes já vivem numa situação difícil, não podem acolher. Tem muita gente na rua. Tem mulher que traz criança pequena pra dormir na rua pra pegar uma cesta básica, porque os governantes não estão nem aí. Eles querem tirar a gente da rua, mas sem dar comida. Isso é desigualdade social. Quando veio o auxílio de R$ 600, ajudou muita gente. Eu acho que o presidente não era pra dar auxílio, era pra abrir emprego”, avalia Denilson.
Nas ruas do centro da cidade, ele conheceu a também autônoma Aparecida dos Santos, 38 anos, que saiu de casa com suas duas filhas, Vitória (15) e Ana (8), para fugir da violência doméstica praticada pelo ex-marido, que, após ingerir bebidas alcoólicas, batia nela e quebrava móveis e os eletrodomésticos. “A minha filha mais velha dizia a ele: ‘O senhor não vai matar a minha mãe!’As meninas não querem voltar, com medo dele. Não vou mentir, sinto falta da minha casinha. Porque rua é difícil. Pra mulher, é uma agonia, principalmente por causa da menstruação. E como tem homem aqui, ninguém também mexe com a gente”, conta Aparecida.
“O meu sonho é ter minha casa”, continua ela, e a filha, Ana, interrompe: “Quando crescer, eu quero ser policial!”. E Aparecida explica: “Ela disse que quer ser policial, porque quando chegar lá e o cara estiver batendo na mulher, ela vai dar um bocado de palmada na bunda dele! Meu sonho, quando jovem, era, primeiro, terminar meus estudos; segundo, ter minha casa; terceiro, meu marido, e quarto, minhas filhas. Queria ter uma cama bem tranquila, viver sossegada, eu não queria viver assim, não. Viver essa vida? Vitória quer ser gerente. Meu sonho é muito grande e tenho fé que Deus vai realizar o meu e o das minhas filhas. Se o governo ajudasse também era bom, quanto o rico, que faz a gente como cachorro, que acha que nós não pode vencer, não pode ter um canto, não pode comer do bom e do melhor, só eles. Então, o mundo em vez de ser melhor, vai ficar pior. Tem gente rica que passa por aqui e nos trata como nojentos. Tem gente rica que acha que não vai para a mesma cova que a gente”, diz a autônoma, que ganhou de uma senhora, moradora do centro da cidade e que lhe ajuda como pode, um barraco para viver em Santo Amaro, e esperava conseguir R$ 50 para fazer a mudança.
A poucos metros de Aparecida e Denilson, dormia no chão o autônomo Márcio da Silva, 40 anos, que acordou com a entrevista de seus vizinhos e, em seguida, almoçou uma marmita entregue por um senhor que passou de carro e deixou mais três delas para a família (Aparecida acabou ficando sem, disse que ia comer biscoito). Ele está há dois meses em situação de rua. Antes, morava perto do Hospital Geral de Areias, na Avenida Recife, zona sul da cidade. “Eu tinha minha casinha, mas deixei pra mulher quando a gente se separou. Eu trabalhava com reciclagem. Conserto televisão, ventilador, corto cabelo. Mas não tem trabalho. Fico catando material pela cidade pra ver quem compra nos depósitos, pra juntar uns trocadinhos. Não estou recebendo auxílio. Quem está com meus documentos é minha família. Tenho duas filhas, de 9 e 7 anos”. Márcio contou que saiu de casa porque havia muita briga com a ex. “Minha mulher ficou com outro, então, eu vim embora. Ninguém sabe onde estou. A situação piorou. Não sei como sobrevivo. Só a misericórdia de Deus.”
Se o Recife é a cidade mais desigual do país, São Paulo é a que tem a maior concentração de brasileiros em situação de rua (66 mil pessoas, estima o Movimento da População em Situação de Rua de SP). Um deles é o violinista Fábio Lima. Natural do Ceará, ele chegou à capital paulista em 2006. Bacharel em Música, tocou na Sinfônica da Paraíba e em orquestras por várias cidades, se apresentou no Teatro Municipal, viajou para diversos países tocando em cruzeiros, até que criou uma produtora de eventos ao aportar em São Paulo. Fazia até quatro apresentações nos finais de semana. No começo de 2020, já tinha 18 contratos para tocar em festas e casamentos. No entanto, todos foram cancelados quando veio a pandemia. O dinheiro não conseguia mais cobrir os gastos. Não podia mais tocar na rua, porque foi decretado o lockdown.
“Então comprei uma barraca, passei a ser tipo um mochileiro na rua, procurava um lugar para dormir, uma praça. De manhã cedo, ia tomar banho nos núcleos de convivência que tem em São Paulo. Acabei me readaptando nas ruas por não poder assumir as despesas, o aluguel é o que mais pesava. Estou na rua há uns dois meses. Sou separado há cinco anos. Posso dizer que eu tive até sorte. Antes eu ficava sozinho em minha barraca. Aí conheci um pessoal que já está desabrigado há um tempo, estão debaixo do Viaduto Antártica (Barra Funda, Zona Oeste). Eles são muito unidos. Eles se tratam como uma família. Fui acolhido”, conta Fábio, acrescentando que, mesmo assim, é muito difícil dormir bem na rua, por conta do receio de ser atacado por algum estranho e também devido ao barulho e ao frio.
Na entrevista por celular, ele estava bastante rouco por causa do frio que enfrentava.“O rapa (a Guarda Municipal) fez o favor de levar a minha barraca e levou tudo, no dia 4 de novembro. Estou só com a roupa do corpo. Essa é a segunda vez que isso acontece. Só tenho o violino. Mas ele está descolando o braço. A qualquer hora vai abrir. O violino não foi feito para tocar na rua. Ele sofre muito com a diferença de temperatura”, explica Fábio, que precisaria consertar o instrumento ou comprar um novo, e ainda adquirir um novo fraque para voltar a se apresentar em eventos sociais, pois o seu mofou na mala. Na sua previsão, o violino resistiria até meados deste dezembro, quando pretende juntar dinheiro suficiente para visitar sua mãe no Ceará, à qual ele também ajuda, porque a aposentadoria dela é basicamente toda destinada para comprar remédios. No entanto, dez dias após a entrevista, Fábio informou que o instrumento quebrou de vez.
No lockdown, Fábio também fazia como Marcos, citado no começo deste texto: buscava a solidariedade de desconhecidos para sobreviver. Em vez de pedir diretamente, seu “pedido” era através da música. “Eu tinha que tocar numa rua deserta entre prédios e esperar que alguém olhasse pela janela. Ainda bem que a recepção foi boa. Porque essa doença deixou as pessoas mais sensíveis, mas tinha que me virar muito”, relata. “Consigo me alimentar, mas nem sempre tem comida. De vez em quando, vou para a casa de um amigo ou de outro. Lá, embaixo do viaduto, o povo carece bastante. Eu me viro na rua. Às vezes como um biscoito, um suco. Apesar de tudo, consigo suprir as necessidades básicas, por conta da arte de rua.”
Assim como no contexto atual, no século XX, a insegurança alimentar não se limitava ao sertão nordestino, encontrava-se no país inteiro, como apontava Josué de Castro. “Em termos numéricos, não tem como falar em porcentagem, porque as pesquisas são muito diferentes. As ferramentas para a análise da fome mudaram muito nestes últimos 100 anos. Então não dá para comparar um número com outro. Por isso, não dá para dizer que a gente está na pior situação que o Brasil já viu”, pondera Adriana Salay Leme.
“Na década de 1970, o IBGE fez uma pesquisa, que é até hoje a maior pesquisa existente sobre a alimentação, chamada ENDEF (Estudo Nacional da Defesa Familiar) e estavam preocupados com a ingestão de alimentos. Ainda não tinha escala de segurança alimentar, mas a conclusão da pesquisa é que um pouquinho mais de 60% da população brasileira tinha deficiência calórica na alimentação e isso é um nível muito brutal de má alimentação e de fome, porque eu posso só me alimentar de arroz e ter as 2 mil calorias, que é o indicado hoje. Naquele momento, 61% não tinha nem o suficiente de um só alimento, em termos calóricos. Só 5% da população se alimentava de forma apropriada. Então, a fome era gigantesca. A década de 1970 era o período do milagre econômico da ditadura militar e tinha essa fome absurda”, descreve a pesquisadora.
“Depois, a gente começou a melhorar consideravelmente, a partir da década de 1990, com a entrada do real, do aumento do salário-mínimo, das políticas de geração de emprego, políticas de transferência de renda, que se intensificaram muito a partir do Governo Lula, com a criação do Programa Fome Zero, do Programa Bolsa Família”, relata a historiadora. “Esses programas tiveram um impacto real na diminuição dos índices de fome no Brasil. A gente começou a medir com a EBIA, no começo do século XXI. Então, a partir daí é que a gente consegue ter os registros na mesma estrutura metodológica e vê o impacto que tiveram esses programas nos índices de fome no Brasil. Só que, sem nenhuma mudança estrutural, uma crise econômica faz esses problemas voltarem.”
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Naquele mesmo dia do fatídico café da manhã, no qual disse não haver famintos no Brasil, o presidente tentou se corrigir e apontou a “solução” para o problema: “É só as autoridades políticas, nós, do Legislativo e do Executivo, não atrapalharem (sic) o nosso povo, e essas franjas de miséria por si só acabam no Brasil, porque nosso solo é muito rico para tudo o que você possa imaginar”. Destaque para o “por si só”.
Talvez ele tenha até razão em um ponto: se os citados poderes não atrapalharem a tentativa de o povo produzir em terras improdutivas, verão que há solução para o problema da alimentação no “solo muito rico”. A monocultura e o latifúndio produzem fome. Essa é a tese que já defendia Josué de Castro na década de 1940 e que vem sendo comprovada em diversos estudos. O mais recente, lançado em outubro, O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo, da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), em parceria com a FES Brasil, desconstrói o mito de que o agronegócio é o motor da economia e da agricultura do país, por ser o setor que mais exporta.
A pesquisa confirma que o agro contribui pouco com o Produto Interno Bruto (PIB), traz altos custos ao Estado (em relação à agricultura camponesa, recebe a maior quantidade de créditos e praticamente não paga impostos), é o setor que gera menos empregos, paga o menor salário e é o grande responsável pela devastação ambiental no país – o que provoca a falta de chuvas, crise hídrica, aumento no preço da energia elétrica e inflação (em 2020, o índice foi 4,52%; e até outubro deste ano, 10,67%.), que, por fim, afeta o preço dos alimentos. Segundo o IBGE, o agronegócio é o setor que menos colabora com a produção de riqueza no país, se comparado à indústria e ao comércio: 5%.
Neste mesmo país onde o agro é exaltado, com suas monoculturas para exportação, queima e desapropriação de terras para a criação de gado para exportar carne e descarte de alimentos tachados como “fora do padrão de consumo de mercado”, a agricultura familiar é responsável pela produção de 80% dos alimentos que chegam à mesa do brasileiro. Ou seja, o agronegócio não somente tem parcela na culpa pela fome no país, como a reforma agrária, que incentiva a agricultura familiar, seria parte da solução.
“Uma dívida histórica que o Brasil tem com o povo brasileiro é não ter feito uma reforma agrária, que é essencial neste momento”, defende o filósofo e sociólogo Paulo Mansan, coordenador do MST em Pernambuco. “E nós podemos pensar em outros moldes de reforma agrária. Por exemplo, pegarmos terras mais próximas dos centros urbanos, fazer uma produção com maior intensidade em agrofloresta e agroecologia. Com um hectare de terra, uma família tranquilamente consegue viver bem. A reforma agrária é uma das grandes soluções para a fome, porque quem consegue um pedaço de terra vai produzir alimento saudável, vai melhorar a sua qualidade de vida e vai produzir alimento para o resto da população brasileira consumir. Então, é algo imprescindível, uma questão de justiça social, nós avançarmos e fazermos uma séria reforma agrária no Brasil. E quem tiver com sua terra não vai engrossar as periferias dos grandes centros urbanos.”
O movimento vem realizando diversas ações contra a fome. Na pandemia, foram mais de 6 mil toneladas de alimentos doados em todos os Estados e realizados diversos projetos, como Marmita Solidária, Roçado Solidário, Bancos Populares de Alimentos, Cozinha Popular Solidária das Palafitas (em parceria com a Arquidiocese de Olinda e Recife e a Federação Única de Petroleiros).
Além do MST, em todo o país vêm sendo promovidas iniciativas encampadas por organizações, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Central Única das Favelas (Cufa), a Pastoral do Povo da Rua (CNBB), tendo à frente o Padre Júlio Lancelotti, da Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca (SP), e diversas outras da sociedade civil, como Gente é pra Brilhar, Xepativismo, SP Invisível.
“A sociedade civil tem um papel fundamental. A gente viu como ela se mobilizou e está se esforçando imensamente para conter a crise instalada, inclusive eu”, fala a historiadora Adriana Salay Leme, proprietária do restaurante Mocotó e coordenadora do projeto Quebrada Alimentada, que distribui marmitas para necessitados. “Mas é função do Estado alimentar a população. O Estado é que vai sanar esse problema. E ele tem os mecanismos que vão efetivamente solucionar esse problema, com as políticas públicas que são geradoras de segurança e soberania alimentar, de transferência de alimento direto, como o PNAE, que é um dos maiores programas de alimentação escolar do mundo, e que tem um poder muito grande não só de alimentar as crianças na escola, mas da compra que ele faz da agricultura familiar, como consegue gerar renda no campo pra quem precisa, não o grande agricultor, mas o pequeno agricultor.”
Uma antiga tese que circulava em meados do século passado de que não haveria alimento suficiente para a população da Terra, é refutada. “Sobram alimentos no mundo. Nós produzimos mais do que o suficiente para alimentar todo mundo. E ainda jogamos 1/3 fora. Na verdade, especificamente sobram commodities. Mas ainda faltam frutas, verduras e legumes, porque ainda não produzimos o suficiente para suprir cada pessoa com 400 gramas desse itens, que é o recomendável de uma dieta saudável”, afirma o agrônomo e economista José Graziano da Silva, ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), de 2012 a 2019, coordenador do programa Fome Zero, ex-Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome do governo Lula e membro do Instituto Fome Zero.
Para ele, a situação de fome no Brasil ainda pode ser agravada nos próximos anos. “Sem dúvida, a continuidade da crise, o fato de que o Brasil não vai crescer no próximo ano, ou, pelo menos, vai crescer muito pouco, vamos ter de novo a repetição do pibinho, cresce menos do que o crescimento populacional, é a questão que pode mais agravar a crise a curto prazo. Então, mais gente desempregada, mais gente passando fome. Mas, sem dúvida, o fator ambiental, a negligência em relação ao meio ambiente, é um agravamento. Hoje não basta comer, tem que comer de forma saudável e sustentável, a alimentação, o meio ambiente e a saúde estão juntos e conectados.”
José Graziano ainda faz o alerta imprescindível: “O pior dos mundos é a junção da fome com uma crise ambiental, provocada por desmatamento, pelo uso crescente de agrotóxicos, pela poluição do ar e da água por resíduos químicos”. O impacto do garimpo nas terras dos Yanomami, que estão entrentando a fome, é uma amostra disso para o Brasil. “Ficamos doentes por comer mal ou não comer e isso é agravado por esses poluentes e desmatamento. Esse, infelizmente, não é um tema de longo prazo, mas um tema urgente. A preservação do meio ambiente pode ser uma oportunidade para o Brasil, uma forma de trazer recursos externos, recursos esses que estão saindo hoje do país pelo desgoverno do governo que temos”, afirma o agrônomo.
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A fome já foi utilizada como tática de guerra, instrumento de tortura e de genocídios, mas também motivou levantes, revoluções, panelaços – que surgiram em 1830 em Paris e ressurgiram em 1971 nos casserolades do Chile. Por que hoje não provoca mais revoltas populares? “A fome, por medições, tem consequências sociais muito importantes, ela está ligada com o aumento da violência, da mortalidade, de saques. Então, ela está ligada a convulsões sociais diretamente. As revoluções partem não só da fome, mas da consciência do fator gerador da fome, que são as classes dirigentes, os produtores da fome. A fome é produzida socialmente. A revolução precisa de uma organização social e de uma consciência de quem são os produtores dessa fome. Hoje, por que a gente não faz nada? A gente se mobiliza muito pouco. Não é falta de fome. É falta de uma organização social e de consciência dos fatores geradores da fome”, analisa Adriana.
No Brasil, a resposta a essa questão também tem a ver com a forma como se enxerga quem passa fome, a visão de que a pessoa faminta encontra-se em um problema individual e que ela mesma gerou, porque não teria trabalhado e/ou estudado. “A gente vive numa sociedade que individualiza o problema. Essa visão sempre esteve presente desde a Idade Média. As causas eram outras. Quando alguém ou um grupo passava fome, atribuía a pecados. Depois, essa pessoa é uma fracassada, ela não consegue um trabalho, ela não consegue se colocar socialmente. E, por isso, passa fome. Existe uma visão que é muito vigente ainda de individualizar os fracassos. O fracasso é um termo ruim, mas socialmente atribuído para essa situação, como se fosse um problema daquela família, daquele indivíduo, e não um problema social que colocou a família naquele lugar. E é isso que precisa mudar, a consciência de que é um problema gerado, não é um problema de uma falha individual, de percurso”, frisa a historiadora.
“A fome – eis um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade”, escreveu André Mayer, professor da Universidade de Paris e ex-presidente do Conselho Executivo da FAO, em um dos prefácios de Geografia da fome.
Segue Mayer: “E um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenças que a assaltam, abrigar-se das intempéries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porém, precisa, dia após dia, encontrar com que subsistir – comer. E esta necessidade, é a fome que se encarrega de lembrá-la. Sob o seu ferrão e para lutar contra ela, a humanidade aguçou seu gênio inventivo. Ninguém o ignora. E todo mundo sabe também que, nesse velho combate contra esta praga permanente, o homem conseguiu apenas uma vitória incerta e precária”.
“Não há outro número aceitável para a fome que não seja o zero.”
José Graziano da Silva.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente, colunista da Continente Online.
GILVAN BARRETO, fotógrafo e artista visual. Autor, entre outros, de Moscouzinho.