Recordações de uma abolicionista
Fotografias e objetos pessoais que contam parte da história do movimento abolicionista em Pernambuco ficaram encaixotados por mais de um século, no Rio de Janeiro, e agora retornam ao Recife
27 de Março de 2025
Foto Reprodução
Olegária está no meu radar há vários anos. Na infância, li o romance Os Azevedos do Poço, de Mário Sette, publicado em 1938. Obra que se passa no Poço da Panela, bairro que até hoje carrega a lembrança de sua mais ilustre moradora. Embora seja ficcional, há várias mesclas com os acontecimentos reais da localidade e do Recife do século XIX. O encantamento com aquela ambiência levou à pesquisa sobre “dona Olegarinha do Poço” e a sua participação no movimento social pela abolição no Brasil.
Olegária faleceu a 24 de abril de 1898, aos 38 anos, de uma influenza, e sua morte precoce praticamente encerrou a carreira política do marido e levou os Carneiro da Cunha (os quatro filhos, José Marianno Filho, que foi diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Julieta e Georgina – certamente, as responsáveis por conservar o acervo dos pais – e o caçula, Olegário, que viria a ser poeta, embaixador e imortal da Academia Brasileira de Letras) a saírem do Recife e migrar para o Rio de Janeiro.
Zé Marianno era deputado e residia na então capital da República, tanto que não conseguiu acompanhar o sepultamento da esposa, só chegando a tempo das exéquias, ironicamente, a 13 de maio de 1898, quando o país rememorava os 10 anos da Abolição. O “tribuno do Recife” regressou a Pernambuco a bordo do Vapor Danube e do porto do saiu direto em cortejo, com ex-companheiros do Club do Cupim, amigos e correligionários, para depositar flores no túmulo de Olegarinha, com quem foi casado por 23 anos.
A materialização das memórias familiares da emblemática personagem que partiu tão cedo e permaneceu no imaginário recifense começa a ser revelada 126 anos depois, não sem antes ter percorrido um longo caminho temporal e também geográfico. Decerto, as fotos, documentos e objetos ficaram inicialmente com Julieta, filha mais velha, falecida em 1947, depois com Georgina (a já mencionada Yayá), que repassou à neta, Laura (que morreu em 1961), e em seguida acabou sob a guarda de Gilberta Acselrad, uma professora carioca, sem laços de parentesco com os Carneiro da Cunha, mas afilhada de Laura.
Dona Gilberta foi a doadora de fotos, cartas e recortes de jornal associados à família, na década de 1990, para a Fundação Joaquim Nabuco. Seu nome chegou até mim por intermédio de pesquisador da instituição, ao ver minha decepção com os parcos documentos nos acervos brasileiros relacionados a Olegária – tema de minha pesquisa atual de pós-doutorado, no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo.
O contato recorrente com os descendentes diretos do casal, entre eles o decano dos familiares, o carioca José Marianno Carneiro da Cunha Filho, bisneto dos abolicionistas; Marianno Carneiro da Cunha, tataraneto; e Bruna Sabatini, tataraneta, tem ajudado bastante. Mas foi só a partir do acervo recém-descoberto que Olegarinha se apresentou com o detalhamento de que precisava. São registros importantes sobre a abolicionista que ficou eternizada como elemento insurgente contra a elite escravocrata e patriarcal da qual era, contraditoriamente, oriunda e beneficiária.
Dona Gilberta abriu as portas de seu apartamento do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, e franqueou o acesso a um tesouro para os entusiastas da História e dos registros de memória. Parte da coleção de imagens e objetos de inestimável valor histórico, inédita, foi fotografada. Aceitou a sugestão de que parte daquele material guardado em caixas fosse doado a um acervo público.
Ela veio ao Recife e doou uma pequena parte do acervo que guardou por tantos anos. Os itens foram entregues por mim à Fundação Joaquim Nabuco, em cerimônia simbólica, em 1º de julho deste ano, para que recebam todo o tratamento de preservação e acondicionamento. De início, passarão por avaliação e parecer técnico. Em seguida, o material será digitalizado e ganhará o destino ideal de todos os artefatos que contam a história de um tempo e de um povo: o acesso público.
Os itens doados agora se somam a outros documentos de Olegária e Zé Marianno, que também haviam sido entregues por Gilberta à Fundaj, na década de 1990. Na mesma época, a família Carneiro da Cunha, residente no Rio de Janeiro desde a morte de Olegarinha, decidiu doar objetos, fotografias e documentos de valor incalculável para o Estado de Pernambuco.
Os materiais sobre a família da abolicionista estão espalhados em arquivos diversos. A vida curta que ela teve reduz, naturalmente, a possibilidade de ter deixado grandes registros. Entre esses documentos, por exemplo, estão as cartas que José Marianno, preso por ordem de Floriano Peixoto na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, por seu apoio à Revolta da Armada, enviava à esposa no Recife. São vários excertos que denotam desespero e temperança, ao mesmo tempo. Recolhido inicialmente ao Forte do Brum, em novembro de 1893, por ordem do governador Alexandre José Barbosa Lima, foi levado ao Rio, onde passou inicialmente pelo suplício da solitária fétida e insalubre na Fortaleza de São José, na Ilha das Cobras. Zé Marianno enfrentou o restante do período de reclusão na fortaleza do Monte Castelo, de onde saiu com habeas corpus em 19 de setembro de 1894, após 10 meses de prisão.
Até a soltura, no entanto, a troca de correspondência conta tanto detalhes sobre os embates de políticos liberais com a nascente República e o jugo de Floriano Peixoto, quanto aflições de cunho privado e familiar, especialmente as saudades e o sonho de Marianno em voltar à casa: “Havemos de passar este ano a festa juntos em uma casinha à beira-mar, onde possamos restaurar as forças perdidas”, desejou em carta escrita em 5 de agosto de 1894, do Morro do Castelo. Ele cobrava que a esposa lhe escrevesse. Infelizmente, e embora pelo conteúdo se saiba que ela as respondia, as cartas que Olegarinha enviava ao Rio não foram encontradas. Não estão com a família ou nos arquivos públicos.
A Marinha do Brasil, responsável pela Fortaleza de São José, na Ilha das Cobras, de forma definitiva e protocolar, ante a solicitação sobre o acesso aos seus arquivos para pesquisa, reitera “que nada consta no acervo do Arquivo da Marinha referente a José Marianno Carneiro da Cunha e Olegária Carneiro da Cunha”. A Marinha também ainda não autorizou o acesso à antiga prisão. O local preserva uma cela da época em que presos políticos e comuns sofriam as agruras de um cárcere sem luz, do qual era comum que se saísse, no mínimo, muito doente, como foi o caso de Marianno. A descrição do suplício está nas cartas que enviou, nos discursos proferidos após a soltura e como atestava o historiador e biógrafo Tadeu José Gouveia de Sales, em José Marianno e seu tempo, publicado pela Cepe Editora em 2012.
Essas cartas devem ter se perdido com o tempo, ou sido retidas na prisão e lá mesmo pereceram. O próprio José Marianno contou, em missiva a Olegarinha, das dificuldades e da proibição em escrever. Em carta datada de 14 de julho de 1894, quando transferido ao presídio do Morro do Castelo, falava das tentativas para dar e receber notícias:
“Tenho instado para que me seja permitido enviar à família cartas que possam ser antes vistas pelo comandante da fortaleza, mas ainda não obtive essa concessão porque há ordem para que eu continue incomunicável”.
A primeira leva de doações, a da década de 1990, na Fundaj, no entanto, preservou três bilhetinhos escritos por Olegarinha, em cartões de visita. São recados simples, rápidos e funcionais. Não dizem do momento histórico, mas falam do cotidiano e intimidade, da abolicionista que se sentia infeliz e saudosa, com o marido morando na capital da Província e, depois, da República, exercendo a função de deputado no Rio de Janeiro. Um dos bilhetinhos era endereçado ao marido:
“Poço, 23 de novembro (ano desconhecido)
Querido José Marianno,
Não mandei hontem esta carta para o correio porqˆ o vapor só sahe hoje, e aproveito para ainda escrever-te. Vou mandar levar hoje o recibo ao Ulysses, e depois te respondo por telegramma. Estou com vontade de hir hoje ao Recife fazer umas compras, mas não sei ainda se irei porqˆ está um dia muito quente. Adeus, meu José Marianno, até breve, muito breve. Receba muitas saudades de tua muito infeliz,
Olegarinha.
Esse material, contudo, já não era inédito, pois estava disponível a pesquisadores desde a época da primeira doação. É por isso que a chegada das caixas com os “novos” antiquíssimos documentos representa mais do que uma excelente notícia: é uma possibilidade riquíssima de aprendizado histórico por intermédio de testemunhos de um tempo em que a desumanização de seres humanos enquadrava os escravizados como commodities e, assim, naturalizava-se não apenas o cativeiro, mas também as sevícias e a perpetuação da escravidão como base da economia brasileira por quase quatro séculos.
Era uma época, também, que se desenhava um crescente entendimento de que o antiescravismo ancorava um ideal nacional, e que a participação da sociedade branca nos movimentos emancipatórios fazia parte de um clamor por patamares de civilidade. Havia, nesse espírito do tempo oitocentista, evidentes traços de paternalismo e contradição. A violência física e simbólica do mundo da escravidão, como a incongruência de terem sido, mesmo alguns abolicionistas, senhores e senhoras de escravos.
Em meio a essa amálgama, nascia a ideia, reinante entre abolicionistas e emancipacionistas, de que não haveria possibilidade de o Brasil se tornar civilizado sem sair do escravismo. Especialmente após a década de 1980, historiadores começaram a trazer à tona o que passou séculos escondido: a necessidade de se contar sobre a atuação direta de escravizadas e escravizados como agentes históricos, que protagonizaram a busca por liberdade, pagando por ela.
A historiografia passou a defender a compreensão de que o fato social da abolição se deu longe dos púlpitos parlamentares e da burocracia estatal, “nas esferas menos visíveis da sociedade, nas dobras do mundo parlamentar, no contexto das militâncias populares nascentes e nas franjas da política formalista e excludente do império”, como pontua a professora e historiadora Maria Helena Machado, docente titular da Universidade de São Paulo e uma das maiores especialistas mundiais sobre a história social da escravidão. Foi Maria Helena, inclusive, a quem recorri para supervisionar minha pesquisa sobre Olegária.
Memorabilia
D. Gilberta Acselrad guarda, em seu apartamento no Jardim Botânico, objetos, fotografias, postais e documentos que contam, ao mesmo tempo, tanto detalhes corriqueiros de uma família de entre séculos, quanto marcas de um Brasil que migrava da monarquia à nascente República. Era preciso conhecer, catalogar e registrar uma coleção de valor histórico inestimável.
Sobre a mesa da sala, dispôs tudo o que havia guardado da família da madrinha ao longo de tantos anos. A cada caixa aberta, era uma surpresa. Apesar de guardadas em caixotes fechados, o fato de o material não estar acondicionado adequadamente, como é feito nos arquivos profissionais, provocou um sério desgaste nas imagens, devido provavelmente à umidade ao longo do tempo. Algumas já são difíceis de serem identificadas. Um dos retratos foi ampliado sobre uma placa de metal, num processo de revelação fotográfica inspirada na daguerreotipia, utilizado até meados do século XIX. Essa fotografia já se mostra deteriorada. As feições e vestes do senhor de meia-idade, elegantemente sentado, bigode avantajado, com o braço direito apoiado numa mesa forrada com toalha ricamente adornada, parecem ter sido fotografadas há pouco – embora, ao que tudo indica, seja um dos retratos mais antigos da coleção.
Essa imagem é extremamente importante como registro da história da fotografia. A daguerreotipia, desenvolvida por Louis Daguèrre após ter comprado os direitos do invento a Nicéphore Niépce, em 1829, representa a primeira tentativa comercial de registro fotográfico. Nesse processo, uma placa de prata era vaporizada com iodo para formar iodeto de prata, que, após exposição à luz, revelava a imagem diretamente na placa, sem a necessidade de um negativo. Apesar de frágil, essa técnica foi um marco na evolução da fotografia. A preservação adequada de daguerreótipos requer mantê-los hermeticamente fechados e protegidos por vidro.
Chamam a atenção, no material que ainda está no Rio de Janeiro e não foi doado, dois cartões de baile pertencentes a Olegarinha. São objetos delicados, do final do século XIX, espécie de cadernetas, feitas com madrepérola e casco de tartaruga, com detalhes em dourado e com as iniciais da abolicionista gravadas: OGCC (Olegária Gama Carneiro da Cunha). E a data, numa delas – 16/09/96 – portanto, dia em que completou 37 anos, dois anos antes de seu falecimento. Esses cartões eram utilizados por moças e senhoras da elite para anotar o nome dos rapazes com quem poderiam dançar nos bailes.
Ambas as cadernetinhas foram presente de aniversário, em anos subsequentes, e ainda se lê, na mais antiga, uma dedicatória: “a D. Olegarinha C. da Cunha, Maria Fragoso cumprimenta e felicita, 16 de setembro de 1895”. O verso do cartão traz o nome da abolicionista gravado numa plaquinha de metal. Nessa caderneta, com esforço, ainda se consegue ver um recadinho de Olegária ao marido, algo relacionado ao envio de cinco mil réis. É possível que tenha sido um bilhetinho escrito em papel, apoiado na caderneta, que acabou ficando marcado na superfície marmorizada e se eternizando tantos anos depois.
Os movimentos social e político pela abolição estão fortemente presentes neste acervo. Entre os documentos, destaca-se um manuscrito com assinaturas reunidas em favor da liberdade de uma mulher escravizada, identificada apenas como “Flora, escrava de D. Maria Augusta Dias Nebias”. São 23 nomes, entre homens e mulheres, com as respectivas quantias doadas para a compra da manumissão (alforria legal), totalizando 293 mil réis.
São várias as fotografias, em cartões de visitas, registradas pelos célebres fotógrafos que instalaram estúdios no centro do Recife, Rio, Lisboa e Paris em meados do século 19. Flósculo de Magalhães, F. Vilella, J. F. Guimarães, Carneiro, Silva e Tavares, Lopes e Cia, Alberto Henschel, F. Labadie e Thedoro Pereira Soares, que se identificava no carimbo do verso das fotos como “fotógrafo ambulante”, são os retratistas que registraram Olegarinha e José Marianno, além de seus pais, parentes e filhos.
As imagens registradas nessas fotografias são documentos históricos e lembranças familiares; muitas delas, inclusive, as duas coisas ao mesmo tempo. A exemplo do retrato do filho mais velho de Olegarinha, José Marianno Carneiro da Cunha Filho, aos 13 anos, trajando luto. No verso, alguém (provavelmente, Yayá) escreveu a legenda: “Yoyô de luto de Dr. José Maria”. Longe de ser unicamente um episódio de luto familiar, a morte do jornalista, político e coronel da Guarda Nacional José Maria, amigo e correligionário de José Marianno, dono do jornal A Província, foi um dos episódios marcantes do sangrento modus operandi da política do começo da República em Pernambuco. Alvejado em 4 de março de 1895, em eleições para prefeito, numa seção eleitoral, durante discussão com o presidente da mesa, conhecido por “Major Pataca”, teve o socorro médico proibido pelas autoridades, vindo a morrer em seguida.
O senador republicano Albino Meira, em discurso no Senado em 8 de março de 1896, publicado pelo Diario de Pernambuco, acusou duplamente o então governador Barbosa Lima: pela bala que teria saído de agentes a mando do governo e pela omissão deliberada de assistência, pois havia ordens expressas para que ninguém entrasse no local: “Ora, se o doutor José Maria ainda vivia, impedir de levar-lhe socorros médicos, que talvez o poderiam salvar, era continuar a matá-lo”.
Após a morte de Olegária, José Marianno leva os filhos para residirem com ele no Rio. É desse período um conjunto de dezenas de postais do acervo, datados do comecinho do século XX, que trazem notícias de um Yoyô, na casa dos 20 anos, em estadia na França, aos irmãos. Espantam pelo estado de conservação, mesmo sendo papéis centenários e não estando acondicionados adequadamente. Parecem ter sido escritos e enviados há poucas horas. Num deles, a ilustração de uma jovem moça com um chapelão adornava o bilhetinho de Yoyô a Yayá: “Minha cara irmã, sucedem-se os vapores, e com eles, o meu desengano de receber cartas tuas. Não valia a pena prometer o contrário! Brevemente nos abraçaremos! Segue carta. Abraço do mano Yôyô”.
De Olegária, há fotografias de sua infância, a partir dos 12 anos, aos últimos anos de vida, mas só um cartão de visita com sua imagem foi doado. Destacam-se os registros em que ela se deixava fotografar ou ser retratada em quadros ostentando uma camélia no peito esquerdo, indicando sua vinculação ao movimento abolicionista. Provavelmente, datadas de 1884 (quando se filia à sociedade abolicionista feminina Ave Libertas) a 1888. Ainda com feições de menina, mas com vestes de matrona, fez pose para Alberto Henschel, alemão que se estabeleceu no Recife. O carte-de-visite traz como legenda, no verso, a sucinta informação: “Olegarinha quando casou com 14 annos”.
Em março de 1894, mesmo depois de passados seis anos da Abolição, foi fotografada por Ludgero Martins, também com uma camélia presa ao peito esquerdo. Os olhos tristes – que o caçula Olegário, quando já era chamado de “príncipe dos poetas brasileiros”, dramaticamente descreveu em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras como “aqueles olhos profundos e consoladores que, com uma lágrima, mitigaram a amargura de tanto coração” – pareciam mesmo denotar o peso da prisão do marido, que completava, àquele tempo, seis meses de cárcere na capital da República.
Sobressaem-se, ainda, as diversas fotografias que um José Marianno saudoso, trabalhando como deputado no Rio, mandava pedir aos filhos. Há registros de Julieta, a mais velha, que se orgulhava, em textinho que escreveu como dedicatória, da notável semelhança com Olegarinha. Também de Yayá aos 15 anos, e de Yoyô menino e adolescente. Não há, contudo, imagens de Olegário quando criança no acervo, apenas registros de quando já era um rapaz, no Rio.
Também se encontravam nas caixas fotos de parentes e, já no século XX, de Yayá e das filhas, todas mulheres: Julietinha, Maria Georgina, Maria Georgina 2ª (Gigina), Laura e Lupe. Não deixaram filhos. Delas, há diversas produções em estúdio, especialmente das décadas de 1910 a 1920, inclusive colorizadas. Reflexo de uma sociedade recém-saída da escravidão, são pouquíssimos os registros de pessoas negras ou indígenas. Tanto que salta à vista o pequeno portrait, quase um 3x4, de um rapaz indígena, de olhar forte e trajando camisa social de manga e gravata, com a dedicatória: “Para madrinha, o índio Aporinan. Rio, 18-02-11”.
As imagens relacionadas a José Marianno percorrem o caminho que vai da juventude ao declínio político. Aos 25 anos, desponta com os cabelos fartos, bem diferente dos registros que ficaram mais conhecidos daquele que foi um dos políticos mais populares (ou “Zé Povinho”, como alfinetavam os desafetos nos jornais oitocentistas) de Pernambuco, com visual mais comportado. Dessa época, decerto, veio o apelido “Cabeleira”, com o qual é descrito em diversos artigos e notas ferinas dos jornais conservadores.
Primeiro prefeito eleito pelo voto popular no Recife, em 1891, nunca chegou a assumir o cargo, pois as eleições e o Congresso Estadual foram dissolvidos, em função do golpe de estado ocorrido em 18 de dezembro daquele ano. Infelizmente, o cartão de visita com a foto de quando Zé Marianno foi solto do Morro do Castelo, em 19 de setembro de 1894, feita no estúdio fotográfico Lopes & Vargas, está completamente deteriorado. Com esforço, vemos a silhueta envelhecida do tribuno, mas manchas ao longo da superfície impedem a visualização.
É possível que a umidade do local em que as fotografias estão acondicionadas esteja causando o mofo. Dessa forma, o fixador pode estar perdendo a ação. Um restaurador poderia interromper o desgaste com químicos específicos. Existe a possibilidade, ainda, de que o peso de outras fotos e objetos, guardados por cima, desgaste o grão de sal no papel, que começa a se desintegrar, como explica o professor Eduardo Duarte, que ministra as disciplinas de Fotografia no Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.
Em carta a Olegarinha, José Marianno chegou a brincar com o envelhecimento acelerado pelo cárcere, aos 44 anos, e revelado na foto esmaecida, avisando à esposa que já estava com a barba inteiramente branca, e a cabeça caminhando para o mesmo fim. “Não será por isso que há de me engeitar. Quem nos dera que pudéssemos viver muito velhinhos.” Pela relevância histórica, merece passar por minucioso processo de restauração, com o mesmo cuidado que teve Yayá em conservar, catalogar e preservar às futuras gerações a memorabilia de sua família e, em grande medida, da história do país.
Olegarinha
A imagem, tão explorada na literatura e nas produções audiovisuais, das “sinhazinhas” brasileiras, sempre muito alvas e muito delicadas, caminhando pelos engenhos ou acompanhando os pais em passeios pelas estreitas ruas das capitais de província, portando as indefectíveis luvas e sombrinhas, com vestidos com anquinhas arqueadas e tecidos adornados com rendas, não pode ser desprezada, mesmo tendo em conta o clichê. Especialmente quando consideramos o fato, inconteste, do contraste com as mulheres negras escravizadas, no mesmo Brasil, no mesmo recorte temporal, coisificadas e desprovidas de direitos. Mercadorias cujo ventre formava a base da economia mundial.
No tempo em que Olegarinha nasceu, em 16 de setembro de 1859, a legislação brasileira restringia as mulheres brancas à condição de cidadãs de segunda classe, desprovidas de direitos políticos, como o sufrágio, e com acesso limitado à educação formal. Para as mulheres negras, a situação era muito mais crítica, pois lhes era negada qualquer possibilidade de inserção na esfera cidadã, já que eram consideradas “posse”.
Quando mulheres brancas se envolveram nas sociedades emancipatórias, mergulharam no universo masculino das ruas, desafiando normas e redefinindo papéis. Olegária, que gerou e criou cinco filhos (a primogênita, Aurélia, faleceu de hepatite, aos três anos), não deixou livros ou documentos em que estivesse registrado seu pensamento. Era uma mulher branca, de família abastada, mas não seguiu o roteiro esperado para uma moça da elite pernambucana da segunda metade do século XIX.
Teve reconhecimento em vida por sua participação atípica e ativa nos movimentos pela Abolição, mesmo pela imprensa conservadora e que fazia oposição a José Marianno. Há registros em jornais e livros de memorialistas de uma Olegarinha saudada nas ruas, apontada e reverenciada por sua vinculação à causa. Em algumas situações, conseguiu até o feito de não ter a relevância eclipsada pela figura do marido.
Filha de José Felisberto da Costa Gama, tenente, e de Olegária Adelaide Duarte da Costa Gama, nasceu, cresceu e se casou no arrabalde do Poço da Panela, lugar que a eternizou no imaginário social, mas que não faz jus à importância da moradora. Até hoje, a menção mais relevante a ela está numa plaquinha discreta, afixada na parede frontal da casa que foi construída no terreno do palacete em que viveu até morrer, aos 38 anos, em 24 de abril de 1898. Esse terreno, ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, foi uma doação da família. Em carta a Mário Melo, Yayá confirmava ser desejo dos descendentes que o lugar – palco de abrigo e rota de fuga de escravizados – tivesse uma destinação social e pública, em memória ao casal.
A Marianno, contudo, foi erguido busto em homenagem a seu centenário, na década de 1950, e que por décadas recebeu a sombra da gameleira tombada. Nomeia um cais e a Câmara de Vereadores do Recife, conhecida como Casa de José Marianno. Um restaurante e uma rua batizados como Olegária, ambos no Poço, e uma escola profissionalizante, na Madalena, além de comenda na Câmara, são as homenagens que a cidade rendeu a ela.
Nomear uma escola decerto se relaciona à participação de Olegária como uma das fundadoras da Sociedade Propagadora de Instrucção Pública, no Poço da Panela, organização que mantinha educandários para crianças de baixa renda e formação de professoras.
Mesmo também tendo se engajado em atividades mais prováveis a uma mulher de seu estrato social e tempo – membro de irmandades religiosas, juíza em festas de paróquia, participação em inaugurações, eventos sociais e políticos –, parte considerável de sua inserção em ações sociais a vinculava a posições contrárias ao que seria esperado de uma mulher branca e abastada de um Recife oitocentista: educação e profissionalização de mulheres e auxílio a fugas de escravizados.
Um forte comprovante de participação ativa no momento emancipatório foi a sua filiação, em 1884, à Ave Libertas, associação abolicionista formada só por mulheres pernambucanas para angariar fundos à causa, divulgar o ideal de libertação e comprar cartas de alforria. Olegária foi aceita como sócia efetiva, conforme noticiado pelo Jornal do Recife, a 3 de outubro de 1884.
A participação de Olegária num projeto de educação de mulheres, com vistas à profissionalização, não está dissociada de seu envolvimento com o movimento emancipatório e com um feminismo ainda embrionário. Embora sócia atuante e fundadora da Sociedade Propagadora até sua morte, não há registros de que ela tenha tido alguma educação formal, especialmente porque se casou muito menina, em cerimônia realizada em 6 de março de 1875, na Paróquia do Poço da Panela.
Foi justamente pela relação do trabalho de Olegária na educação comunitária de pessoas de camadas pobres dos subúrbios recifenses que funcionou, no Recife e no mesmo Poço da Panela, na década de 1960, o Centro de Cultura D. Olegarinha, idealizado pelo educador Paulo Freire. Parte integrante das ações do Movimento de Cultura Popular (MCP), foi fundado em 17 de dezembro de 1961 como o primeiro centro de cultura do projeto de educação de adultos do MCP. O imóvel escolhido para a instalação do centro era então conhecido como “Casa de D. Olegarinha”.
Embora, oficialmente, as integrantes da Ave Libertas agissem apenas por vias legais, há registros em atas do Club do Cupim, preservadas pelo Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, da participação de Olegária e Leonor Porto (presidenta da instituição) na libertação e fuga de escravizados. E não apenas em eventos e festas para arrecadação de fundos visando à compra de manumissões. Elas agiam, assim, numa espécie de insurreição, de maneira extralegal, um comportamento permitido apenas a homens. O memorialista Mário Sette eternizou, em texto originalmente publicado em 1925, a ação de Olegária nas fugas de barco rumo ao Ceará. O autor conta, na crônica “As barcaças de capim”, que o casal Carneiro da Cunha refugiava homens e mulheres escravizados e “evadidos de engenhos, das fazendas, dos sítios”.
As fugas em barcaças, presentes no imaginário popular, foram registradas pelo memorialista como ações meticulosamente planejadas, envolvendo desde o abrigo a escravizados evadidos às efetivas fugas, realizadas durante a noite e madrugada. Para despistar a polícia, contariam com o apoio de barcaceiros, que seguiam o curso do Rio Capibaribe até o Poço da Panela, “sob o pretexto de carregar capim”. Olegarinha e Marianno, tendo o rio como quintal, embarcavam seus protegidos, que se escondiam no poço das embarcações, sob feixes de capim, e seguiam rumo à então província cearense, que havia abolido a escravidão em 1884.
Olegarinha, cuja posição social, racial e de gênero poderia cristalizá-la no altar destinado às moças brancas do Oitocentos, encapsuladas nas funções de esposa e mãe, seguiu rumo diverso e engajou-se à causa longe dos púlpitos do parlamento. De dentro de casa, acoitava escravizados fugidos, tratava de escaras produzidas por açoites, vendeu e entregou joias para comprar alforrias e angariar recursos à candidatura de Joaquim Nabuco a deputado.
Há elogiosa menção de agradecimento feita a ela na autobiografia escrita por ele. Nabuco relata que só soube depois que a abolicionista teria empenhado as joias para financiar sua candidatura, que sairia vitoriosa nas urnas: “(...) meiga e amorosa D. Olegarinha, tão cedo esvaecida, a qual nas vésperas da minha eleição, que José Mariano fizera dele, contra o ministro do Império, fez empenhar joias suas para o custeio da luta, o que só vim a saber no dia seguinte, quando o partido as resgatou e lhas foi levar”.
José Marianno Carneiro da Cunha Filho, bisneto do casal de abolicionistas e que carrega o mesmo nome do bisavô, veio ao Recife, em 1988, junto a familiares, fazer a doação de um acervo riquíssimo ao governo de Pernambuco. As peças foram entregues ao então governador, Miguel Arraes. Dona Magdalena, a primeira dama, recebeu da família um óleo sobre tela com o retrato da abolicionista, que ficava na sala da casa onde o casal residia, no Poço da Panela e, numa grande coincidência, localizada à Rua Dona Olegarinha. O imóvel abrigou o Instituto Miguel Arraes.
É uma coleção vasta, com dezenas de itens, basicamente tudo o que os descendentes ainda guardavam, formada por fotografias, cartas, documentos, quadros, uma imagem de Santana, uma sombrinha pertencente a Olegarinha e até um berço de ouro, em exposição no Museu do Estado. O berço, contudo, não pertenceu ao casal de abolicionistas, mas ao sogro de Yoyô, um industrial italiano.
José Marianno é entusiasta da história familiar e, com a entrega de tanto material relacionado aos abolicionistas, trouxe de volta a Pernambuco a possibilidade de histórias em torno do período possam ser contadas. Sempre muito solícito, sobre o que de mais forte ficou dessas memórias ao longo dos anos nas conversas familiares, ele se lembra de escutar sobre as incursões da bisavó aos mercados, para a compra de alforrias, e um túnel que levaria escravizados do interior do solar do Poço da Panela ao Capibaribe. “Se Olegarinha e José Marianno fizessem, hoje, o que fizeram naquele tempo, contrariando os interesses dos donos de engenho ao defender o fim da mão de obra escrava, seriam certamente tachados de terroristas”, reflete.
Num bilhetinho escrito poucos anos antes de falecer, Georgina, conhecida por Yayá, pedia às filhas que guardassem com carinho a matéria de jornal que informava o tombamento da árvore centenária do Poço, bairro bucólico, de casario ainda preservado, em que viveu até a morte da mãe. “É a carta de liberdade da minha gameleira”, dizia.
A figueira tombou, o palacete ruiu, mas a curta passagem de Olegarinha pelo Recife ainda parece resistir na aura antiga das ruas de pedra do arrabalde, que assistiram a uma legião de mulheres e homens pretos, escravizados e libertos, que conduziram seus processos de busca por liberdade. E testemunharam a ação de mulheres como Olegária, que, imersa na teia da contradição que era militar contra um sistema do qual era beneficiária, empunhou camélias em embates simbólicos e, também, na zona então interditada a ela, a da rua, usando a desobediência civil em nome de uma causa coletiva.
Jornalista, professora do Departamento de Comunicação da UFPE. Faz pós-doutorado em História Social, na USP, com o projeto Olegária – Vita brevis, ars longa: resgate histórico de uma abolicionista. Está escrevendo a biografia de Dona Olegarinha.
Coleção
O material doado à Fundação Joaquim Nabuco irá se juntar à Coleção José Marianno. “Por conta da relevância também de Olegarinha nos movimentos sociais pela Abolição, passará a se chamar ‘Coleção José Marianno e Olegária’”, informa a historiadora Sylvia Couceiro, coordenadora do Centro de Documentação e Pesquisa (Cedoc) da Fundaj.
“É preciso que famílias e instituições que detêm essas coleções se sensibilizem para o fato de que essa herança intelectual e cultural acumulada representa informação e conhecimento”, pontua Murilo Silveira, professor do curso de Ciências da Informação da Universidade Federal de Pernambuco e especialista em patrimônio. A privatização de acervos pode impedir ou dificultar que sejam consultados, especialmente quando envolvem a cobrança de valores para pesquisa e utilização.
Para a historiadora Maria Emília Vasconcelos, docente do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco, documentos e fotografias de época são instrumentos pelos quais se estabelece uma conexão com o passado. Além disso, ressalta que há profusão documental e imagética sobre os homens abolicionistas, mas pouquíssimo sobre as mulheres. “Esse olhar para esses objetos nos permite ampliar o nosso rol de reflexão sobre a ação da abolicionistas pernambucanas, suas práticas sociais, e até observar as possíveis inserções no mundo letrado.”
ADRIANA SANTANA, jornalista e professora da UFPE.