Música cheia de malícia
O duplo sentido, o fescenino, o chulo e o proibidão na música popular
TEXTO José Teles
25 de Setembro de 2025
Foto Greg
Em 1969, o cantor e compositor francês Serge Gainsbourg e a modelo e cantora inglesa Jane Birkin lançaram, em dueto, uma canção intitulada “Je t’aime... mois non plus” (grosso modo, “Eu te amo... eu também não”. Com uma melodia suave, simples ao fundo, o casal fala frases desconexas, entremeadas por gemidos da cantora, simulando um orgasmo. Enfim, um ato sexual gravado. A música espalhou-se feito rastilho de pólvora mundo afora. E logo começariam as proibições, em vários países, parte delas vetada apenas para tocar no rádio. No Brasil, o disco chegou a ser lançado, mas dias depois foi censurado e recolhido das lojas. Nunca um disco proibido foi tão tocado nos assustados, as festinhas de adolescentes da época.
No entanto, seis séculos antes, no Sul da França, outro casal, um trovador e uma trovadora, cantavam intimidades sexuais, sem recorrer a insinuações, feito Gainsbourg e Birkin. Na letra da canção, narram a contenda na alcova em que uma mulher queixa-se ao marido porque ele não a penetra totalmente. Ele alega que não o faz por ter um membro demasiadamente grande, e teme matá-la (sic). Ela o orienta a como proceder sem lhe causar danos. Esta e muitas outras canções desfazem a ideia do trovadores de repertório romântico, acompanhando-se no alaúde e fazendo a corte à pessoa amada. O que nos tempos atuais poderia estar numa letra de brega funk, ou funk carioca, era comum na Idade Média, o que se estendia às artes plásticas, literatura, teatro.
O fescenino está presente em todas as épocas na literatura, na música, nas artes plásticas, por vezes nas entrelinhas, noutras explicitamente. William Shakespeare, o autor teatral mais encenado de todos os tempos, um dos maiores poetas da língua inglesa, pontua quase toda sua obra com expressões chulas tomadas de empréstimo ao povão. Um trecho curto da peça Henrique IV, cena 1, do segundo ato, da parte 2, contém uma enxurrada de palavrões da época. Emprega seis termos para vagina, e cinco para pênis. Em Otelo, se vale de uma metáfora para o ato sexual, que se tornou uma expressão usada em muitos países: “brincando de bicho de duas costas”.
O sexo está nas cançonetas dos musicais burlescos apresentados nas casas noturnas de Paris ou do Rio de Janeiro na Belle Époque, no blues das espeluncas no Sul dos Estados Unidos, nos primeiros discos gravados no final o século XIX. No Brasil, Mário Pinheiro, um dos cantores pioneiros na gravação para gramofones na Casa Edison, deu início ao duplo sentido com “A concha do Amor” (1904), “A boceta de Rapé, ou Pela porta de trás” (ambas de 1907). Mário Pinheiro foi um dos principais cantores de começo do século XIX no país, intérprete de valsinhas, modinhas, lundus, tanguinhos. Gravava canções de double entendre (ou “duplo sentido”) para um mercado específico.
O poviléu, ou povão, termo dos anos 1920 e 1930, divertia-se com as paródias dos circos mambembes ou dos pastoris de fim de rua – o pastoril profano, cujo repertório é base de muito sucesso do forró, música carnavalesca e até o samba. Nele, as letras ficavam entre a insinuação e a safadeza explícita. Um ótimo exemplo da música do pastoril profano, das safadezas cantadas pelo poviléu está na marchinha “Mamãe eu quero” (Jararaca/Vicente de Paiva), claro, com a devida amaciada. O alagoano Jararaca (José Calazans) morou no Recife, entre os anos 1910 e 1920, tocava na orquestra de pau e cordas do Bloco das Flores, e foi para o Rio com o grupo Turunas da Mauriceia.

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