Reportagem

O futuro dos museus é comunitário

Neste domingo (18), quando se celebra o Dia Internacional dos Museus, especialistas revelam o que tem sido feito para integrar os museus à comunidade, incluindo ações de repatriação e decolonização

TEXTO Carol Botelho

16 de Maio de 2025

Exposição permanente do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro,

Exposição permanente do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, "Antropoceno" deve mudar em breve para se conectar com as transformações do agora

Foto Albert Andrade/Divulgação

A definição de museu segue em constante atualização, tal como um software de computador. Não dá mais para falar em museu sem citar palavras-chave como acessibilidade, sustentabilidade, inclusão e ética. Os termos foram acrescidos pelo Conselho Internacional de Museus (Icom), em 2022, para explicar a função de um espaço museológico. A última atualização ocorreu em 2007, e a primeira, em 1970, segundo o site do Icom Brasil. E pelo andar da carruagem - ou seria do trem-bala? -, novas definições devem aparecer em breve para abarcar a diversidade de museus que existirão principalmente fora do eixo Europa-Estados Unidos, como apontam especialistas. Tão rapidamente quanto o ritmo de mudanças sociais, tecnológicas e de meio ambiente em que nos encontramos agora - quando o Icom escolhe o sugestivo tema "O futuro dos museus em comunidades em rápida transformação" para celebrar o Dia Internacional dos Museus (18 de maio) - teremos museus menos universais e mais locais conectados com a comunidade.

“O museu é um espaço não só de guarda, de preservação de memória, enfim, de patrimônio, tanto material como imaterial, mas também um lugar, essencialmente, de investigação, de pesquisas, a partir desse acervo, e conectando esses tempos históricos a uma realidade, ou as pautas urgentes da contemporaneidade”, define Gabriela Ribeiro Betega, diretora do Museu Paranaense (Mupa), terceira instituição pública mais antiga do Brasil, inaugurada em 1876. Segundo ela, é a partir dessas reflexões e aproximações temporais, das falhas do próprio acervo, que se torna possível pensar o futuro e corrigir erros. A diretora diz também que o museu é um espaço para se negociar diferenças, para trazer para as discussões todas as opiniões, as divergências. “Para se conectar em um futuro mais próspero, talvez mais pacífico”.

Em termos de longevidade, o Mupa só perde para o Museu Nacional do Rio de Janeiro, fundado em 1818, seguido pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, de 1866. Já quando se fala em acervo, o Mupa conta com 500 mil peças, sendo a maior parte delas oriunda da arqueologia.

Ainda associado a um espaço de elite, fechado em seus muros, homogêneo, o museu vem se dando conta de que não terá futuro longevo se não der as mãos ao seu entorno, ou seja, a comunidade. “Através dessa aproximação, criamos oportunidades para que a comunidade traga pensamentos críticos sobre o próprio museu, sobre os tempos atuais, e até mesmo sobre como ele deve se manifestar no futuro”, diz Gabriela.

A diretora menciona uma noção de alargamento. Na prática isso quer dizer “fazer uso até das expressões artísticas contemporâneas como um instrumento para pensar o acervo, suas problemáticas, e entender, a partir disso, que aproximando essas artes das disciplinas de pesquisa científica e também do acervo do museu, nós conseguiríamos criar uma série de fricções ou de narrativas totalmente inesperadas, até mesmo para essa própria história do museu”.

Exposição Ephemera/Perpetua
Exposição Ephemera/Perpetua, no Museu Paranaense, um olhar panorâmico sobre o acervo da instituição. Foto: Mariana Alves/Divulgação

A diretora conta que no organograma do museu existe a história, a antropologia e a arqueologia, áreas que refletem o desenho das coleções do museu. “Na exposição de longa duração Ephemera/Perpétua, um olhar panorâmico se volta para o acervo do próprio museu, mas também para seus pesquisadores, trabalhadores e colaboradores ao longo do tempo, e como eles contribuíram para a formação do acervo. Convidamos o artista contemporâneo Paulo Vivacqua, e ele cria o que ele chama de esculturas sonoras sobre o acervo”, exemplifica Gabriela.

Outra exposição de longa duração foi desenvolvida junto com o núcleo de história da instituição e outros convidados curadores externos. Em Objeto Sujeito, o foco são os tempos históricos e as pautas museológicas tratadas pelo Museu Paranaense ao longo de seu próprio tempo. Foram convidados 12 artistas de todo o Brasil, inclusive do Recife, representado por Clara Moreira.

“Esse desenho do museu paranaense é bastante peculiar. Não vejo uma coisa muito parecida assim no Brasil, primeiro porque somos uma instituição que sempre teve dentro do seu organograma disciplinas científicas e um caráter de pesquisa e investigação já com preocupação com o meio ambiente e as comunidades indígenas, principalmente dos anos 1940 aos anos 1960, quando estiveram por aqui nomes como Reinhard Maack, Frederico Lange de Morretes, Vladimír Kozák, Jesus Santiago Moure, Per Karl Dusén, Günther Tessmann”. O etnólogo checo Vladimir Kozák já defendia a importância de se trazer os povos indígenas para a curadoria. “Ele não traz só aquele olhar frio de catalogação, de descoberta. Ele sempre entendeu isso como uma aproximação mais íntima”.

Com o desejo de revisar criticamente o acervo de imagens dos povos indígenas captadas no século XIX, foram convidados os artistas contemporâneos indígenas Gustavo Caboco e Denilson Baniwa para pensarem essas fotografias e reatualizar o acervo a partir de seus olhares atuais e artísticos. “Eles trabalharam em conjunto com povos indígenas do Paraná como os Guarani, Kaingang e Xetá e fizeram um laboratório dentro do museu”. O museu se tornou um museu-ateliê expositivo. “Foi um projeto importante e muito denso que simboliza essa aproximação entre museu e povos originários para refletir o próprio museu”.

Para Gabriela, a questão da repatriação se dá na extinção dessa museologia mais rígida e ortodoxa que ainda vigora na maioria dos museus. “Se os povos indígenas decidem que o acervo tem que voltar para eles, é obrigação do museu proporcionar essa discussão. Não sei se é justamente por causa desse diálogo que proporcionamos, mas nunca aconteceu de os povos indígenas reivindicarem uma repatriação. Pelo contrário, aconteceu deles entenderem que é importante esse acervo continuar aqui, da forma que ele está sendo tratado”, analisa, acrescentando que o diálogo é a palavra-chave da vez.

A curadoria compartilhada também tem sido discutida como uma maneira mais democrática e inclusiva. “Ela ajuda a criar uma visão mais plural sobre um determinado assunto, mais multilateral, democrático e aberto”, defende a diretora, dando o exemplo da exposição Antiecos e Ocos, que contou com a comunidade negra do Paraná para lançar um olhar crítico sobre o que o museu deixou de falar ao longo de sua história.

O papel das redes sociais e da internet são também essenciais para construir esse museu do futuro no presente. “O Instagram é o canal que mais privilegiamos porque ajuda a aproximar o museu de uma geração de jovens”.

Museu do Amanhã
Fachada do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, que bate recordes de público. Foto: Albert Andrade/Divulgação

MUSEU DO AMANHÃ

Por falar em juventude, destacamos o Museu do Amanhã, cujo título é mais que sugestivo para um texto sobre futuro. Ainda mais em um museu dedicado às ciências e à interatividade, e que completa dez anos em 2025. “Falar de futuro de museu é uma discussão passada. Há 20 anos, quando se fazia essa mesma pergunta, a resposta que eu daria seria a mesma de agora: o desafio é conectar os museus às grandes massas, se conectar com o povo, é ser entendido não apenas por um pequeno grupo privilegiado”, afirma o diretor do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, o pernambucano Cristiano Vasconcelos. Para ele, esse desafio já foi superado pelo museu que dirige.

Considerado um dos museus mais visitados do Brasil, o museu carioca exibe o sucesso em números expressivos: sete milhões de visitantes em uma década. Metade do público, segundo Cristiano, se concentra em zonas periféricas da capital fluminense. Desses, 24% nunca haviam entrado em um museu. “É um museu porta de entrada, é um museu onde as massas, onde a população sente que é o seu lugar, que ela pode entrar, que ela pode entender, que ela pode fazer parte das exposições. Somos um museu jovem em idade e em perfil de público visitante”, diz. 

Essa conexão com as massas e com a comunidade seria, segundo Cristiano, o desafio dos museus no futuro. “Quando a gente fala de comunidade, o primeiro lugar que a gente olha para o nosso lado, para o nosso entorno, para os nossos vizinhos. Não dá para a gente falar do planeta, do Brasil, do mundo, se a gente não falar primeiro daqui. Então, para esse lugar onde nós estamos, para aquela África, para o Morro da Providência, Morro da Conceição, Morro do Pinto…”.

Uma mudança de linguagem como forma de tornar o museu mais acessível ao grande público. “A primeira barreira social é a língua, a linguagem. Apesar de tratar da pauta da ciência, da profundidade científica, as pessoas entendem a mensagem que está sendo passada. Muitas vezes, quando a gente fala do campo da arte, do campo artístico, cultural, as pessoas não se fazem entendidas. Então, o Museu do Amanhã tem um trabalho muito forte com a linguagem de se fazer entendido”, avalia Vasconcelos.

Graças aos patrocinadores, porém, o museu consegue oferecer uma ampla gratuidade sem desequilibrar suas finanças. “Quase 50% do nosso público goza de gratuidade. Estamos falando de um valor baixo, R$30. Mas quando pensamos em uma família média brasileira, composta por três ou quatro pessoas, não se torna um valor trivial, pois é preciso contar com gastos como transporte e alimentação”.

Projetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, o prédio - cujas formas orgânicas foram inspiradas nas bromélias do Jardim Botânico da cidade - ocupa uma área de 15 mil metros quadrados, cercada por espelhos d'água, jardins, ciclovia e área de lazer, totalizando 34,6 mil metros quadrados do Píer Mauá.

O diretor acredita que formulando perguntas, mais do que encontrando respostas, é a melhor forma de desenvolver o senso crítico do público. “Trazemos provocações e informações para que as pessoas construam suas próprias narrativas. Nascemos com cinco perguntas, de onde viemos, quem somos, onde estamos, para onde vamos e como queremos ir”.

cristiano vasconcelos
Pernambucano Cristiano Vasconcelos, diretor do Museu do Amanhã, admite que é preciso estar sempre se atualizando. Foto: Albert Andrade/Divulgação

Daí, o título de sua exposição permanente, Do cosmos a nós, um convite a refletir sobre as origens do universo, a evolução da vida na Terra e os futuros possíveis para a humanidade, dividida em cinco áreas: Cosmos, Terra, Antropoceno, Amanhãs e Nós.

E nós? “Temos uma capacidade gigante de influenciar o curso do planeta, o curso das coisas, o curso da vida do outro, como nunca se teve. Nunca fomos tão informados e ao mesmo tempo tão enganados. Nunca crescemos tanto e nunca poluímos tanto”, ressalta o diretor.

Questões climáticas e ambientais estão na ordem do dia do museu, que pretende se aprofundar no tema sob a perspectiva do Brasil. “Trazemos as tragédias brasileiras recentes como Brumadinho e a enchente no Rio Grande do Sul”.

A interatividade é a máxima da instituição carioca de contornos futuristas situada na zona portuária do Rio de Janeiro. É amparado pela tecnologia que o museu consegue a participação do público. “Os museus de arte são importantíssimos, têm um papel gigante, mas são muito contemplativos”, opina. Apesar dessa opinião, Cristiano aponta para uma interação entre ciência e arte como ação futura. “É um museu de ciência, continuará sendo um museu de ciência, mas a gente vai tornar a arte uma linguagem mais presente”. Assim como para a atualização do Antropoceno como necessidade de estar conectado às rápidas transformações. “Depois de dez anos, a gente tem algumas lacunas, como o acréscimo dos saberes indígenas e ancestrais”.

DECOLONIZAÇÃO/REPATRIAÇÃO

“Nas margens dos rios e igarapés da bacia do Rio Negro, onde o sopro do vento costumava carregar as histórias dos antigos, as vozes dos povos Arawak, Tukano e Nadahupy agora ecoam em sussurros sufocados. O que outrora eram cânticos de vida e sabedoria, transformaram-se em um silêncio carregado de dor. Esses povos, guardiões de segredos ancestrais, viram seus mundos virarem cinzas, suas casas de saberes reduzidas a brasas pela intolerância brutal de mãos que nunca compreenderam a essência da floresta. Objetos de poder, considerados vivos por aqueles que os criaram, foram sequestrados, arrancados de seus lugares de origem, e aprisionados em vitrines distantes, onde seus espíritos definham”. As aspas iniciam o ensaio Ancestrais indígenas encarcerados em museus - Notas sobre entidades musealizadas, assinado por Domingos Barreto, Maximiliano Menezes e Renato Athias.

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Tipiti, borduna, peteca, pilão de cabaça (brinquedos) dos povos Timbirá, Karajá, Tukuna, no acervo etnográfico do Mepe, que tem sido revisitado pelo antropólogo Renato Athias e representantes do povos indígenas.
Foto: Fred Jordão/Divulgação

Ações de repatriação revelam a importância de se conhecer o significado dos objetos e rituais dos povos originários para que a exposição dos artefatos indígenas em museus não se tornem casos de violência contra a cultura dos povos originários, ou seja, um etnocídio. “Os museus, com suas narrativas frias e distantes, contam uma história distorcida. Os ‘objetos’, como são chamados, não são apenas artefatos; são ancestrais, pedaços da alma de um povo, agora perdidos em terras estrangeiras”, diz outro trecho do ensaio.

“O etnocídio não terminou quando as malocas e casas de saberes foram incendiadas; ele persiste no aprisionamento dessas memórias vivas, disfarçado sob o manto da ‘preservação’ e ‘ciência’. A verdadeira história – aquela que fala de violência, dor e resistência – precisa ser contada, não apenas para o mundo, mas também para as gerações indígenas que agora buscam documentar seu passado roubado”, continua o ensaio, finalista no Prêmio Mariza Correia de Antropologia Visual 2024 e aprovado para publicação na Revista Proa de Antropologia e Arte.

Athias, que é antropólogo pernambucano e professor do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), cita um exemplo de etnocídio ocorrido em uma exposição realizada no Grand Palais, em Paris, em 2005, durante o Ano do Brasil na França, quando foi exibida uma máscara de Jurupari, usada em rituais e cerimônias que conectam as pessoas com a natureza e o sobrenatural. Segundo a cultura indígena, essa máscara deve ser guardada após a cerimônia e jamais exibida novamente, até que se desintegre.

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Máscaras cerimoniais do povo Tukuna, feitas de entrecascas de árvores, do acervo do Mepe. Foto: Fred Jordão/Divulgação

Há mais de 20 anos, o antropólogo vem realizando um trabalho de pesquisa sobre a Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira, composta por mais de três mil peças, inclusive mais de mil fotografias de 54 povos indígenas, guardadas pelo Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), instituição fundada em 1929. Em 2003, quando a instituição passava por uma série de mudanças, inclusive de sua exposição permanente, Athias foi convidado a lançar novo olhar para a coleção e selecionar objetos que pudessem compor a exposição permanente, agora com a parceria curatorial de representantes dos povos indígenas. Não à toa várias exposições com objetos dessa coleção foram feitas fora do museu, em seus lugares de origem. “Esses espaços museológicos oferecem um novo olhar para os povos indígenas não somente de Pernambuco, mas também de outros estados como Maranhão, Amazonas e Ceará”, acrescenta o antropólogo.

No livro Tempo Tríbio - Museu do Estado de Pernambuco (1930-2020), editado pela Cepe, Athias fala sobre os bons resultados obtidos com o processo de curadoria compartilhada com os povos indígenas: “Verificou-se que as flautas da coleção, denominadas de búzios dos Fulni-ô, (um par de trompetes de madeira oca) estavam completamente deteriorados. Na ocasião, foi sugerido aos Fulni-ô que preparassem um novo par de búzios para a coleção. O projeto foi elaborado e executado por Wilke Torres de Melo, Fulni-ô que participava como bolsista no projeto de documentação visual da Coleção Carlos Estevão”.

A repatriação desses objetos, segundo Athias, pode ser realizada, em muitos casos, na forma de devolução virtual. “Na Itália, estou envolvido com um projeto de documentação e digitalização de objetos indígenas em 3D para um museu”. Trata-se do projeto KNOT (Knowledge of Things: Reassessing the Indigenous American Heritage in Italy) coordenado pela Universidade de Roma "La Sapienza" em colaboração com a Universidade de Bolonha e o Instituto de Ciências do Patrimônio Cultural do Conselho Nacional de Pesquisa (ISPC / CNR). Em 2024, foram digitalizados em 3D quatro objetos dos povos do Alto Rio Negro, no Amazonas.

Já está em andamento o projeto "Povos Indígenas, Restituição, Antropologia Visual e Gestão Compartilhada de Coleções Etnográficas", de autoria de Athias, que também visa colocar os próprios povos indígenas no centro da gestão de seus acervos espalhados em diversos museus no exterior. “Trata-se de restituir memórias, cosmologias, epistemologias e direitos culturais. O foco são objetos de uso xamânico de povos indígenas, hoje dispersos em museus da Europa e dos Estados Unidos. Parte deles será reunida em uma restituição virtual inédita, organizada em parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), o Museu Virtual das Artes e Objetos Indígenas da FOIRN, ao qual estão vinculados outros museus virtuais também em fase de formação.

Segundo Renato, a contribuição é inovadora no campo da arqueologia e museologia pela análise crítica e fundamentada empiricamente sobre práticas museológicas colaborativas desenvolvidas em parceria com os Kapinawá, povo indígena do Vale do Catimbau, no Sertão de Pernambuco.

O PROCESSO

Decolonizar e repatriar bens culturais e artísticos é ação que esbarra no processo de colonização como um todo, que nunca deixou de existir. “Nos séculos XV e XVI, na Europa, os museus funcionavam como gabinetes de curiosidades e eram coleções privadas, normalmente da nobreza, de alguns empresários da época, mas, normalmente, a nobreza era quem colecionava objetos, sem uma certa lógica cultural ou artística. Isso só veio muito tempo depois. Como é que esses objetos chegavam? Das mais diversas maneiras. Havia compra de objetos, havia saques, muita coisa era botim de guerra”, explica o professor de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mauro Trindade.

escultura do parthenon
Mármores do Pártenon grego ainda estão no Museu Britânico de Londres.
Foto: Reprodução

E exemplifica: “Se você pensar, por exemplo, no que é o Museu do Louvre. Ele está associado, indiscutivelmente, à realeza francesa. O que é o Museu do Prado? Ele também tem uma ligação muito forte com a realeza espanhola, de Castela, principalmente. Esse tipo de acúmulo e cuidado com essas obras acontece num período em que essas não eram discussões que estavam ocorrendo”.

Segundo Mauro, a discussão só muda entre os séculos XIX e XX, quando outros estados-nações se formam fora da hegemonia europeia. Ótimo exemplo são os Mármores de Elgin ou Mármores do Pártenon, esculturas que o Reino Unido levou da Grécia em 1806, quando dominava esse território. “Esse tipo de invasão passa a não ser mais vista como uma forma natural”. Até hoje, porém, as esculturas continuam expostas no Museu Britânico, em Londres.

“Naturalmente, os grandes museus do mundo, que são herdeiros dessa espoliação, seja na Alemanha, seja na Inglaterra, seja em diversos outros países, lutam para manter esses acervos com eles. Antes de o Museu Nacional sofrer um incêndio em 2018, havia no acervo múmias egípcias adquiridas de vendedores de objetos antigos que iam vendê-las na Argentina. No meio do caminho, por conta de uma revolta que houve em Buenos Aires, os vendedores pararam no Rio de Janeiro e Dom Pedro II comprou essas obras”, conta.

Mona Lisa
Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, em exibição no Museu do Louvre.
Foto: Reprodução

Mauro defende que esses objetos têm que voltar, sim, às suas casas. A questão é que muitos museus alegam que possuem documentos que comprovam terem sido os objetos adquiridos de forma “legal”. “Há uma associação clara entre esses museus geralmente europeus e colonizadores com esse acúmulo de objetos que não lhes pertencia. Mesmo assim, é muito difícil, de uma hora para outra, que essas nações, de uma maneira mais generosa, devolvam esses objetos”.

Não se trata de simples devolução. Existe uma condição bem mais profunda: a colonização. “Alguns estados-nações apoiados, naturalmente, por grandes empresas, sejam da Europa ou dos Estados Unidos, continuam espoliando os minérios e outras riquezas de países africanos e latino-americanos. É nesse contexto que a gente tem que entender essa espoliação histórica, artística e cultural que está acontecendo. Ela não é isolada. Ela está dentro de todo um processo colonial que não terminou”, pontua.

Mauro cita o exemplo do Congo: “O Congo está numa guerra civil gigantesca desde a sua independência. E foi o país que forneceu aos Estados Unidos o urânio necessário para explodir Hiroshima e Nagasaki. Isso não é um aspecto menor. Faz parte de toda essa questão política, cultural, ligada ao colonialismo”.

O documentário Dahomey, dirigido pela francesa Mati Diop e vencedor do Leão de Ouro no Festival de Berlim de 2024 (disponível no canal de streaming Mubi) conta a história de uma recente devolução de 26 tesouros reais saqueados do Reino de Daomé, atual República do Benim, durante a colonização francesa naquele país, de 1872 a 1960. No filme, alunos de uma universidade local discutem o porquê de uma repatriação apenas parcial dos bens culturais saqueados.

O período nazista na Europa foi também uma época de muitos saques de obras de arte. Quadros do pintor austríaco Gustav Klimt, por exemplo, foram destituídos de seus proprietários judeus. Como é o caso do Retrato de Adele Bloch-Bauer I, encomendado pelo marido de Adele, Ferdinand Bloch-Bauer, um banqueiro judeu. A obra foi roubada em 1941 e devolvida à família somente em 2006.

No Brasil, ganhou muita notoriedade a devolução de um dos mantos tupinambás que estava na Dinamarca e agora se encontra no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. “Os mantos tupinambás foram roubados? Fizemos uma longa entrevista com a artista e liderança indígena Glicéria Tupinambá, nome que está à frente da repatriação desses mantos tupinambás para a revista da UERJ. Ela afirma que esses mantos não foram roubados, que existia ali uma questão de diplomacia, que esses objetos foram dados para as realezas europeias. O número é incerto de quantos mantos existem na Europa, mas são mais de oito, com certeza”, garante.

A própria ideia que temos de museu, segundo Trindade, precisa ser repensada. “Precisamos repensar essas obras artísticas, culturais, políticas, esses objetos, dentro da nossa contemporaneidade. Existe, de fato, um museu decolonial? Um museu que não esteja associado a essas questões hegemônicas de colonialidade? De fato, ele existe? É uma questão bastante complexa cuja resposta eu não tenho. Existe uma universidade que seja totalmente decolonial, onde não exista uma hierarquia entre os seus membros, seus pares, entre professores e alunos, funcionários e diretores?”. Por enquanto, há apenas perguntas. Mas esse é o ponto inicial para se encontrar as respostas.

A migração dos objetos também toca no ponto já falado nesse texto acima: a retirada de seu contexto social e cultural. “Se não for desenvolvida, dentro dos próprios museus e dentro da própria sociedade, uma maneira de revelar ao público que objetos são aqueles, como eles chegaram dentro desses museus e qual o papel que eles representam dentro da nossa sociedade e qual era o papel que eles tinham dentro dos locais onde eles foram escolhidos, não haverá grandes mudanças”, sentencia o professor de História da Arte da UERJ.

Não basta chegar em um museu e colocar textos enormes dando conta da origem de cada um, de sua função original, de sua função atual. O problema também esbarra na formação do público, no que uma pessoa comum procura em um museu. Muitas vezes ela entra naquele ambiente apenas para se sentir pertencendo a um contexto artístico que lhe dá certa legitimação intelectual. Mire os viajantes que incluem museus do exterior em seus roteiros, mas raramente visitam os museus de suas cidades no cotidiano. “Quando as pessoas vão ao Museu do Louvre ver a Mona Lisa, elas não estão discutindo as relações das cidades-estados italianas no século XVI e o reino de França, para onde foi levada a obra. Eles vão ver a Mona Lisa. Eles vão ver toda aquela obra e com toda a carga de visibilidade que lhe foi dada desde o seu roubo no início do século XX. Antes ela era uma obra até, entre aspas, menor”, afirma o professor.

Museu do Louvre
Museu do Louvre, em Paris, guarda obras do mundo inteiro. Foto: Reprodução

DESORDEM ABSOLUTA

“Negro é o modelo, branca é a moldura”. A frase é da cientista política Françoise Vergés, que defende um pós-museu onde a repatriação deve ser incondicional, ou seja, nada de restituir parte do acervo. O argumento de que um país africano, asiático ou sul-americano não tem ‘condições’ estruturais de receber essas peças nada mais é do que obrigar os estados africanos a copiar o modelo ocidental de museu.

Autora do livro Decolonizar o museu - programa de desordem absoluta (editora Ubu, 2023), Vergés acredita que somente a desordem absoluta será capaz de acabar com a ordem vigente de opressão, expropriação, racismo e exploração. O museu como é hoje seria um disfarce de representação universal para manter o processo nunca interrompido de colonização, que nada mais é do que saque e roubo, tanto de bens materiais quanto imateriais, ou seja, a cultura. “Uma instituição nunca pode ser decolonial enquanto a sociedade não for decolonizada”.

Não fosse o recente falecimento da curadora camaronesa Koyo Kouoh, no último dia 10 de maio, aos 57 anos, daríamos um passo adiante na decolonização: Koyo foi a primeira mulher africana nomeada curadora da Bienal de Veneza. Até sua morte, ela atuou como diretora executiva e curadora chefe do Museu Zeitz de Arte Contemporânea da África na Cidade do Cabo, função que exercia desde 2019.

Em entrevista ao húngaro András Szántó para o livro O futuro do museu - 28 diálogos (editora Cobogó, 2022), Koyo comentou sobre a decolonização: “Quando 80% de nossa herança cultural não está em nossas mãos ou em nossas paredes, por assim dizer, isso é um problema. É um problema em vários níveis. Um deles é o fato de não podermos mais nos conectar com aquilo, pois aquilo nos foi tomado. Não podemos construir uma ligação emocional ou histórica, uma linhagem estética, política e cultural do nosso desenvolvimento humano. Não podemos acessar esse conhecimento, e isso é um problema”. Outro problema, segundo a camaronesa, é o que já mencionamos aqui: o contexto em que os objetos foram produzidos em sua origem e a retirada desse contexto específico e traduzido de uma forma totalmente distinta da que foi entendida pelos que o produziram.

“Há um paradoxo e uma contradição no fato de pessoas que nos desumanizaram das piores maneiras imagináveis por séculos, as quais alegaram que não tínhamos cultura e nos estigmatizaram, serem as mesmas pessoas que se beneficiam da nossa incrível e genial criatividade. Esses três pontos, por si só, já validam qualquer pedido de repatriação”.

CAROL BOTELHO, repórter especial das revistas Continente e Pernambuco

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