Com o tempero da criatividade e muita dedicação
Ousadia, valorização da profissão de chef, empreendedorismo e resiliência moldaram a gastronomia pernambucana nas últimas décadas, marcadas por mudanças nos hábitos de consumo
TEXTO Flávia de Gusmão
27 de Março de 2025
Arroz de Chambaril, do restaurante Seu Luna
Foto Yêda Bezerra de Melo
A gastronomia de Pernambuco abriu-se, na segunda metade dos anos 1990, a experiências mais ousadas, posicionando-se como um celeiro de potência e criatividade, dentro e fora do estado. A revista Gula, lançada em 1990, antes aberta apenas para as tendências e lançamentos provenientes da região Sudeste, mais especificamente São Paulo e Rio de Janeiro, começava a ceder algumas páginas para o Nordeste. Ao mesmo tempo, os jornais do Recife passaram a dedicar uma atenção mais generosa aos prazeres da mesa.
O espaço liberado pela revista Gula e outros veículos da mídia sudestina, entretanto, ainda seguia mais uma linha culinária, com foco no regionalismo (histórias e receitas de representantes da tradição local como os bolos de noiva, de rolo e Souza Leão), do que propriamente gastronômica.
A pesquisadora da UFPE Renata do Amaral, em seu artigo Virada gastronômica: como a culinária dá lugar à gastronomia no jornalismo brasileiro, publicado na revista Esferas (21/11/2019), explica a diferença:
“No momento da culinária, os conteúdos ligados à comida são publicados nas páginas voltadas ao público feminino, ora em suplementos específicos para a mulher, ora em editorias culturais que contam com seções destinadas a essas leitoras. O gênero textual predominante são as receitas, pois o enfoque recai sobre a prática (importante frisar que o fato de estar publicada em um jornal não faz da receita um gênero jornalístico) [...] No momento da gastronomia, os conteúdos ligados à comida migram para as páginas de cultura e lazer. Em vez de receitas, aparecem gêneros jornalísticos comuns nas editorias citadas, como crítica e reportagem. O foco, agora, recai sobre o discurso, sobre a apreciação e o gosto, e não mais sobre a prática. O espaço se torna público: restaurantes, bares e cafés são temas frequentes. A cozinha de casa já não parece tão relevante”.
É também a partir dessa fase que uma linhagem de herdeiros naturais colocou o pé na porta, pedindo licença para entrar, remodelar e expandir o que havia sido até então construído por seus pais. A Família Dias, sobrenome diretamente ligado a Portugal por sua primeira geração, havia estreado no ramo desde o Leite, administrado pelos irmãos Armênio, Licínio, Luís e Amadeu a partir de 1955, e da Casa dos Frios (1957). Quando chegou sua vez, a segunda geração assumiu o protagonismo, inclusive desbravando fronteiras ainda não exploradas pelo ramo de restaurantes de luxo. Miriam Dias, filha de Luís, deu o primeiro passo ousado, inaugurando o Canto da Barra, no final dos anos 1970, em Barra de Jangada, localização até hoje considerada “remota”. A casa térrea ocupava um terreno com vista privilegiada para o encontro entre o Rio Jaboatão e o mar, tendo ao fundo a Ilha do Amor. A despeito do preço e da distância, o Canto da Barra atraía uma freguesia de classe média e alta, oriunda de bairros diametralmente opostos como Casa Forte e Espinheiro.
Amadeu Dias Filho acompanhou a deixa da prima Miriam, abrindo ali perto, em 1981, o Costa do Sol, que resistiu até 1997. Enquanto durou, o Costa do Sol foi sinônimo de excelência, reunindo sua clientela em torno de um ambiente alinhado com um estilo que, à época, se entendia como sofisticação, flertando com o contemporâneo. A linha culinária de ambos estava longe do que atualmente definimos como autoral. Antes, era um compilado de receitas da chamada culinária internacional, com inserções da cozinha portuguesa clássica. O modelo funcionou bem até que, com a valorização dos chefs, no final da década de 1990, caiu em desuso. A verdade é que a maioria dos restaurantes que tiveram ou têm o sobrenome Dias no quadro societário preferiu não atrelar suas marcas à assinatura de um chef específico, escolhendo, em vez disso, apostar na linearidade, cativando com pratos que evocavam sentimentos de conforto, familiaridade e bem-estar. Quase sem exceção, esse modelo de negócio investia na qualidade dos ingredientes, no serviço ágil e formal, no requinte do ambiente e do enxoval.
O ano de 1991 selou a estreia de mais um integrante do clã Dias no ramo dos restaurantes. Licínio Filho associado a Lula Sampaio, amigos desde o tempo do Colégio São Luís, abriram em Piedade a pizzaria Barazzone. Tanto Amadeu quanto Licínio eram jovens impulsionados para o mercado pelo exemplo familiar. Para seu primeiro voo solo como empresário, aos 17 anos, Licínio, ou Neno, como era conhecido, tinha como propósito fazer da Barazzone uma referência em pizza. O primeiro desafio era a absoluta escassez de equipamentos, insumos, e mão de obra que conhecesse os segredos de “fazer a melhor pizza”.

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