Mirante

Isto é um pouquinho do Brasil, Iaiá

TEXTO Débora Nascimento

17 de Maio de 2018

Frame do videoclipe 'This is America', de Childish Gambino

Frame do videoclipe 'This is America', de Childish Gambino

FOTO Reprodução

“O artista vai aonde tem as injustiças, porque a gente representa o povo. A gente tem que estar do lado do povo. Quando o povo é mais atacado, o artista surge nessa hora, porque o artista é a cara, o artista é o povo. E tem o dever de estar sempre avant-garde, observando o futuro. Na realidade, o papel do artista sempre foi esse”, me disse Otto na entrevista publicada na Continente de abril. Nesse trecho da conversa, o compositor e cantor pernambucano fala sobre a importância do papel dos artistas no momento em que a democracia brasileira está ameaçada e os direitos da população estão sendo retirados por Temer.

O que surpreende, em meio a esse contexto, é percebermos que ainda há artistas que apoiam esse governo e defendem ideologias historicamente opressoras. Choca ainda mais quando esse posicionamento reacionário parte de músicos ligados ao rock, pois o gênero musical é marcado exatamente pelo contrário: inconformismo, rebeldia e apoio a lutas sociais. Por isso é de se estranhar que apareçam, ali ou acolá, os que se levantam contra, por exemplo, o Movimento dos Sem-Terra e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. O artista de direita é algo lamentável. E desnecessário. Só tolerável em casos de genialidade, a exemplo de Nelson Rodrigues.

Nelson, que chamava de “esquerda festiva” os jovens rebelados contra a ditadura, escreveu, certa vez, que Chico Buarque era “a única unanimidade nacional”. Nessa época, o jovem compositor tinha se tornado o queridinho das massas, da mídia e da intelectualidade após a popularidade de A banda, sua canção de letra inofensiva que virou sucesso nacional e até internacional. Mas quando o filho de Sérgio Buarque de Hollanda passou a se posicionar politicamente, os conservadores logo guardaram seus elogios. Nelson tinha um remendo para sua frase anterior: “Toda unanimidade é burra”.

Quando a Ditadura fechou, de vez, o cerco contra a arte, Chico foi censurado. Perseguido, teve que se exilar. Mas nunca deixou de se posicionar, seja nas suas canções, seja nos comícios. Ou marcando presença no longo interrogatório (de mais de 13 horas) de Dilma Rousseff no Senado, no dia 29 de agosto de 2016 – evento que está registrado no documentário O processo, de Maria Augusta Ramos, em cartaz no Brasil, a partir deste mês (17 de maio).

Na turnê Caravanas, que roda o país com um repertório de 33 músicas, a plateia não é formada apenas pelos que bradam “Lula livre!” ou “Olê, olê, olê, olá! Lula, lá, Lula lá!”. Há pessoas que nem gritam nem vaiam. Ficam em silêncio ou fecham a cara, mas respeitam a voz da maioria, pelo menos ali no espaço do teatro. Foi assim na sua vinda ao Recife. E o músico demonstrou entender essa polarização de seu público. Apenas ri e não faz discursos. Ele não precisa. Tem suas músicas.

Dois dias antes dessa temporada de shows de Chico Buarque no Recife, um prédio desabou no centro em São Paulo, escancarando a tragédia dos sem-teto no Brasil, onde há 7 milhões de famílias sem ter onde morar. Em meio a um contexto como esse, circulam nas redes sociais vídeos da atriz Luana Piovani explicando por que resolveu morar em Portugal – e ser parte dos 80 mil brasileiros que vivem no país europeu, fora os que estão lá em situação irregular, formando a maior comunidade internacional na terra de Cabral.

É inacreditável que, num Brasil que vive esse drama habitacional, uma artista venha a público ostentar a sua vida de membro da elite. Diz que economizará nos gastos com saúde e educação, pois sua família vai utilizar os serviços públicos de Portugal, que são de qualidade. Acrescenta que ela, seu marido e seus três filhos estarão mais seguros, pois não há a violência em Portugal como no Brasil. E estará muito mais próxima de outros países da Europa, para passar as férias, como França, Itália, Inglaterra...

Ela conta essa “boa-nova” como se fosse um post “fica a dica” – isso lembra uma matéria publicada num jornal pernambucano sobre a migração de brasileiros para Portugal, quando o veículo colocou no “chapéu” da notícia a expressão “qualidade de vida”, como se a transferência de moradia de um país para outro fosse, para qualquer pessoa, uma opção possível, uma mudança de hábito, uma nova dieta.

Curiosamente, Portugal, a partir da união de forças dos partidos de esquerda, centro e direita, vem conseguindo sair da grave crise econômica que quase afundou o país entre 2011 e 2014 – situação registrada na trilogia As mil e uma noites (2015), do cineasta português Miguel Gomes. Aqui, onde tudo é sempre mais complexo, os políticos continuam se engalfinhando para ocupar as suas respectivas vagas no Legislativo e no Executivo. E boa parte deles batalha apenas para manter os seus privilégios e os de lobistas. Enquanto isso, a crise econômica segue galopante.

Ninguém está pedindo que Luana Piovani permaneça no Brasil, até porque não faria diferença alguma, mas o mais afrontoso é ver pessoas que, como ela, apoiaram o Golpe de Temer, fugindo agora das consequências desse ato. Fazem parte de uma classe dominante que sempre quis estar bem longe do Brasil e conseguir uma lasquinha do que almejam, o gostinho de ser europeu, assistindo de longe, com horror, à tragédia brasileira. E fatalmente acrescentando uma comparação entre os dois países.

O revoltante nessa frequente comparação é eximir que parte de tudo o que vivemos hoje no Brasil é efeito das ações dos colonizadores. Como escreveu Nelson, “subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos”. O nosso sistema econômico não é o capitalismo, mas, sim, o escravismo. A nossa sociedade desde sempre é baseada em castas. O Bolsa-família e o sistema de cotas nas universidades, programas criticados pelos membros do topo da pirâmide, foram tentativas de amenizar injustiças históricas.

“Quem visitou Lisboa recentemente deve ter dificuldade de imaginar, mas a cidade que encontrei quando cheguei era triste, decadente e inóspita”, escreve Ricardo Viel, em depoimento para a Continente deste maio, disponível na íntegra no site da revista. O jornalista mora em Portugal desde 2007. “Hoje, é difícil achar um apartamento para alugar, os hotéis estão sempre cheios, toda semana abre uma loja, bar ou restaurante novo perto de onde vivo. Há muita vida na rua. A cidade está na moda, até a Madonna quis vir morar aqui. Isso significa que hoje viver em Lisboa é bem mais animado, e também mais caro, do que quando cheguei”.

Imobiliárias afirmam que os brasileiros endinheirados são os maiores compradores da atualidade e eles estão alterando o padrão de construção nas zonas mais nobres de Lisboa, Cascais e Sintra. As residências vêm sendo construídas com varandas amplas, garagem com vaga para dois ou mais carros, para atender à carrocracia brasileira, elevador de serviço e "quarto dos fundos", ou o "quarto de empregada" – invenção de português que ironicamente volta a Portugal. Isso aí é um pouquinho de Brasil, Iaiá. A herança da escravidão reverbera.

Por falar nessa reverberação, neste mês foi lançado um vídeo que comprova a frase de Otto, “o artista vai aonde tem as injustiças, porque a gente representa o povo”. Trata-se de This is America, de Childish Gambino, pseudônimo do ator, roteirista, diretor e compositor Donald Glover, criador da série Atlanta. O multiartista fez o que diversos artistas devem fazer hoje: denunciar o racismo e o genocídio da população negra. Isto é a América. Isto é o Brasil.



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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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