Entrevista

“O samba é a célula mater da música popular brasileira”

Autor de dezenas de sambas e livros, muitos dos quais dicionários ligados à cultura e à história africana e diaspórica, Nei Lopes fala à Continente sobre tudo isso e um pouco mais

TEXTO Erika Muniz

20 de Agosto de 2020

O compositor e escritor Nei Lopes

O compositor e escritor Nei Lopes

Foto Jefferson Mello/Dilvulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Compositor, romancista, poeta, autor de mais de 40 publicações, Nei Lopes é um dos importantes nomes da música popular brasileira. E sambista dos grandes. Sua obra em estudos africanos, da Diáspora, e literária vem se tornando referência a cada ano e ganhando novos títulos.

“Meu samba é a única coisa que eu posso te dar”, diz um de seus versos em Samba do Irajá, que integra o repertório do belíssimo LP A arte negra de Wilson Moreira e Nei Lopes (1980), e que ele comenta a seguir. Para Nei, a música representa “uma grande libertação”. “Através dela, pude ter consciência de que podia me libertar da advocacia (da advocacia e não do Direito), que, por tudo o que todo mundo vê hoje, me fazia muito mal. Do Direito, eu continuo gostando muito”, complementa o artista, que é doutor honoris-causa pela UFRRJ e pela UFRGS.

Em seu mais novo livro Ifá Lucumí: o resgate da tradição (Pallas Editora, 2020), sobre o sistema oracular Ifá, ele propõe: “Mostrar ao público uma prática religiosa que merece muito respeito. E, a partir daí, informar sobre uma das mais antigas e prestigiadas formas da religiosidade africana, presente nas Américas desde, pelo menos, o século XIX e hoje expandida, a partir de Cuba pelos Estados Unidos e pelo Brasil, além de outros países”.

De sua casa, no Rio de Janeiro, Nei Lopes conversou com a Continente por telefone, nesta entrevista exclusiva que você lê a seguir. Entre temas comentados, falamos sobre os processos de pesquisa e escrita desse seu mais recente lançamento, que durou quase três anos para ser concluído, além do Afro-Brasil reluzente (Nova Fronteira), lançado no final de 2019, e também sobre poesia, música cubana, brasileira e História. Ele contou-nos, ainda, memórias familiares, momentos marcantes de sua carreira e relembrou algumas das inúmeras parcerias musicais, como Wilson Moreira, Alcione, Clara Nunes e outros nomes que costuram sua trajetória.


Foto: Jefferson Mello/Dilvulgação

CONTINENTE Para começarmos, como é que você está?
NEI LOPES Estou bem. Aqui, na quarentena. Mas não é muito diferente, para mim, porque tenho uma rotina de trabalho em casa há muito tempo. Tenho produzido bastante. Antes da quarentena, eu até saía, mas ia mais para eventos. Alguns fora do estado, inclusive. Era a única diferença. Estou bem, cuidando aqui dos meus Orixás, que cuidam de mim também. Está tudo direitinho.

CONTINENTE De onde partiram suas pesquisas para a escrita de seu novo livro Ifá Lucumí: o resgate da tradição?
NEI LOPES Primeiro, vou dizer a você sobre essa tradição Ifá, que, inclusive, existe no Recife. Não sei se abertamente, mas historicamente existe. O Sítio de Pai Adão (Terreiro Ilê Obá Ogunté) cultua Orunmilá, que é o Orixá patrono do oráculo Ifá. Ifá é, antes de tudo, um oráculo. É uma forma de comunicação com as divindades, que faz com que não se tenha que utilizar o transe, a possessão. O consulente, a pessoa interessada, entra em contato com a divindade através do oráculo Ifá. Isso é primordial de se difundir primeiro. Quem é que conduz a consulta ao oráculo Ifá? Quem traduz o que Orunmilá determina através do oráculo? É um sacerdote especializado chamado Babalaô (Bàbáláwo). Não é exatamente um Babalorixá (Bàbálórìà), que é o ritualista condutor de cerimônias. O Babalaô é diferente porque ele é o veículo que conduz a consulta ao oráculo Ifá.

Tenho contato com essa tradição, que estava desaparecida do Brasil desde a década de 1930, se não me engano. Quase não se falava mais disso, ninguém sabia o que era. Tenho o Dicionário de cultos afro-brasileiros, de Olga Cacciatore, da Editora Forense Universitária, lançado em 1977, muito importante. Nele, no verbete Ifá, diz assim: “É uma tradição desaparecida no Brasil”. Mas, na terceira edição, de 1998, a informação desaparece, pois a tradição já tinha sido retomada no Brasil. E eu estava presente na época dessa retomada, no início dos anos 1990, quando um Babalaô cubano veio ao Brasil fazer uma pesquisa e a gente teve contato com ele. Ele acabou se estabelecendo no Rio de Janeiro e deu continuidade a esse tipo de religiosidade. Participei desde a chegada dele aqui, em 1991. O tempo foi passando, ele faleceu e depois veio um outro. Mais velho, inclusive. E a gente deu continuidade.




Ilustrações do livro Ifá Lucumí, por Pedro Rafael

Assim, desde a década de 1990, essa tradição já foi estabelecida no Brasil, a partir de Cuba. E de lá, ela está estendida para os EUA, com um grande número de aficionados, fiéis etc., e para outros países das Américas. O meu contato, então, foi direto. Não comecei pela pesquisa. Mas fiquei durante todo esse tempo sempre lendo muito. Eu me iniciei, eu me confirmei há quatro anos, tenho a condição de Babalaô também, só que não sou prático, de dar consulta e de consultar oráculo. Sou uma espécie de estudante mesmo e pesquisador, como foi Pierre Verger, que foi para a Nigéria. Ele se iniciou lá como Babalaô e, ao que eu sei, não era uma pessoa de dar consulta. Ele era de escrever, publicar coisas a respeito. Artigos importantes.

Um dia, o meu orientador espiritual, meu Oluwó, quando publiquei, em 2017, o primeiro volume do Dicionário de História da África: séculos XII a XVI, ele me disse assim: “Nei, por que você não escreve sobre Ifá? Para a gente mostrar às pessoas como é, o que é e o que representa”. Tomei a mim esse encargo honroso. Fiquei quase três anos e terminei no final do ano passado. Já era até para ter saído, mas por conta da pandemia, ele está sendo lançado agora; e com um grande interesse e recepção. Estou muito feliz em estar dando esta entrevista para você e para os jornalistas. É um livro no qual a gente não ensina Ifá, porque é um saber iniciático. As pessoas só podem aprender entrando. O objetivo é mostrar o que é e há um desconhecimento muito grande com as religiões de matriz africana, que ainda muita gente acha que é espiritismo. E não é. Tem gente que diz que é crendice sem fundamento, não é. Tem gente que diz que é macumba, não é. Tem gente que diz que é feitiçaria, e não é. É uma forma religiosa, como a maioria das religiões de matriz africana no Brasil, que têm um fundamento muito grande, muito complexo em termos de filosofia, de liturgia, de doutrina. E algumas pessoas fazem pouco caso. Inclusive, no momento que a gente está vivendo, até terrorismo se faz em nome de outras crenças. As pessoas invadem terreiros e quebram as coisas. Acho que nem no tempo da grande repressão, na República Velha, no início do século XX, essas coisas aconteceram com essa frequência e violência. Então, é o momento de a gente mostrar a dignidade que existe nesta e em outras formas religiosas de origem africana.



CONTINENTE Além desse novo livro, queria que você comentasse também sobre o Afro-Brasil reluzente: 100 personalidades notáveis do século XX, lançado em 2019… Mas, antes, peço que conte sobre sua infância no Irajá, sua família, dona Eurydice e seu Luiz Braz, sobre a vida que construiu esse artista e pesquisador que você é.
NEI LOPES É uma vida que tem tudo a ver com isso tudo o que estou fazendo agora e te falando. Primeiro foi o seguinte: somos afrodescendentes, mas criados sem nenhuma noção de africanidade. Meu pai nasceu antes da abolição [da escravidão], cerca de três anos. São muito vagas as notícias que eu tenho da vida dele. Ele faleceu quando eu estava fazendo 18 anos; mesmo assim, eu nunca soube de avô ou de avó. Sei os nomes, têm registros. Minha mãe com um pouquinho mais de proximidade, deu para eu saber mais. E meu pai não tinha parente conhecido também, só alguns raros, como uma prima de que eu só tinha ouvido falar muito vagamente e que um dia conheci, já idosa com filhos adultos. Fiquei sabendo que eu tinha duas tias e nunca também tinha ouvido falar. Por acaso, vim tomar conhecimento dessa tia através de um historiador conhecido, o meu amigo Flávio Gomes. Ele fazia pesquisa com os alunos dele da UFRJ, numa igreja no centro do Rio de Janeiro (RJ). Lembrei que meu pai falava dessa igreja, que ele tinha sido batizado lá, aí pedi ao Flávio, no meio dessas pesquisas, se ele poderia dar uma olhada. Dei o nome do meu pai, a data de nascimento e ano. Ele achou o registro de batismo. E além de achar o registro de meu pai, achou o de duas irmãs mais velhas dele, que nunca imaginei. Então, são esses fragmentos.

Minha mãe também tem muito pouca coisa de lembranças dela do passado. Por exemplo, ter visto passar o cortejo do enterro do Barão do Rio Branco, no Cemitério do Catumbi, que era perto de sua casa, coisas assim. Isso sempre me tocou muito, a vontade de saber as origens dessa família. Nossa família nuclear é bem grande. Sou o filho mais novo de uma prole de 13, com gente que faleceu no caminho. Mas sempre tive muito interesse e ele se manifestou desde muito cedo. Talvez antes da adolescência já tivesse essa curiosidade. Foi uma vivência muito boa. A gente era pobre, mas tinha o que comer e morava numa casa própria. Meu pai comprou um terreno com muita dificuldade para pagar em não sei quantos anos. E conseguiu pagar. A gente construiu uma vida lá, na época, era uma localidade rural. Você já deve ter lido ou ouvido falar sobre o lugar chamado Irajá, que hoje é um subúrbio, até de classe média, mas antes era uma localidade rural. Foi uma infância agradável. Pelo fato de eu ser o filho mais novo em meio a tanta gente. Tenho dois irmãos falecidos, os dois primeiros, que já teriam mais de 100 anos de idade. Você pode imaginar o jeito como eu fui tratado, com muito carinho. E como manifestei muito cedo essa vontade de estudar, minha família ajudou muito. Meus irmãos já estavam todos trabalhando quando me dispus a fazer o curso ginasial. Fui basicamente o primeiro a fazer. Tive irmãos que tentaram, mas não conseguiram seguir à frente por conta de dificuldades financeiras da família, na época deles. Já foi um pouco mais fácil para mim. A infância foi essa. Sempre com muita música. Todo mundo muito musical, todo mundo fazendo muita música, mas ninguém com a possibilidade de tornar isso uma profissão.


Nei Lopes e o pai em 1949. Foto: Acervo pessoal

CONTINENTE Então, esse vezo pela música é da família.
NEI LOPES Ah, claro! O tempo inteiro. É uma coisa que acontecia desde muito cedo. Desde muito cedo gostei de cantar, de dançar. Quando cheguei ao curso ginasial, comecei a escrever poesia. Poemas de garoto. Dois dos meus irmãos mais velhos musicaram versos meus, Ernesto e Valdir, que estão na minha biografia, escrita pelo jornalista Oswaldo Faustino. Meus primeiros parceiros. Ernesto tocava violão muito bem. Valdir, que a gente chamava de Dica, tocava cavaquinho excelentemente e no violão também ia muito bem. O único que fez uma carreira semiprofissional foi Jorge, que a gente chamava de Gimbo. Foi funcionário artístico da Casa da Moeda. Ele trabalhava em gravura artística. Veja você, que coisa importante. Começou como servente e, dentro da Casa da Moeda, fez concurso e passou a ser artista de lá. Tocava trombone e a vida inteira tocou em bailes, nas chamadas “gafieiras” de antigamente, que eram ambientes de muita musicalidade. Muitos músicos importantes tocaram em gafieira. Tem gente que não sabe o que é e avalia negativamente. Mas eram bailes populares onde a música era potencialmente muito bem-ouvida e querida. A infância foi isso.

Em termos de religiosidade, havia por parte da minha mãe, que era… Ela não era de umbanda, mas recebia a Preta Velha dela, que era a protetora da casa, da família, que orientava, mais ou menos, a vida da família. Sem que minha mãe frequentasse terreiro. Era uma espécie de espiritismo que ela e meu padrinho tinham. Tinha isso porque, naquela época, nas décadas de 1940 e 1950, toda forma de religiosidade de matriz africana era olhada com maus olhos. Na nossa vizinhança, tinha uma escola de samba e, do outro lado, um terreiro de umbanda. Era uma coisa meio proibitiva, só quem nascia dentro é que praticava. Os de fora só iam em ocasiões excepcionais. Coisa que me fascinava, essa proibição. E me fascinou tanto que, quando pude, caí de cabeça dentro da escola de samba e nos cultos de matriz africana, aos quais eu me liguei desde a década de 1970. Depois, Ifá veio, a partir de 2000, por aí. Então, conectando minha vivência pessoal com a coisa da religião, você encontra um caminho.


Nei com a mãe e os irmãos em 1970. Foto: Acervo pessoal

CONTINENTE Estou aqui com o livro Poemas da recordação e outros movimentos (2008), de Conceição Evaristo. Nele, tem um poema dedicado a Nei Lopes. Ela é uma das personalidades que você perfila no Afro-Brasil reluzente (2019), além de Abdias Nascimento, Maju Coutinho, Lázaro Ramos e outros. Queria que você falasse sobre representatividade e o fortalecimento da autoestima de negras e negros a partir de publicações como as suas.
NEI LOPES Desde muito tempo, além dos romances que tenho escrito, contos e poemas… São mais de 40 livros. Vários deles são dicionários. Primeiro tem a Enciclopédia brasileira da diáspora africana (2004), que abre o leque para outros países e tem algumas biografias pequenas… Tenho um dicionário, que é pouco conhecido, o Dicionário literário afro-brasileiro (2007), que enumera não só autores afrodescendentes, mas também personagens e como eles são abordados dentro da literatura. Tenho outro também, que é o Dicionário escolar afro-brasileiro (2006), voltado principalmente para o público mais jovem, exatamente com esse viés do reforço da autoestima, porque sempre lembro um caso do meu saudoso amigo Joel Rufino. Ele tinha prática de sala de aula. Sempre foi professor, que não é o meu caso. Ele dizia para mim: “Nei, você não sabe como é complicado ensinar História da África ou do Brasil africano para crianças e adolescentes. Todo currículo e abordagem desse tipo de informação e desse conteúdo são feitos a partir da escravidão”. Então, o ensino dessa matéria já começa fazendo mal e criando uma barreira entre professor e aluno. Não quero ouvir que os meus ancestrais foram escravizados, que vieram em navios negreiros, que apanharam e foram maltratados. Eu tomei isso como pauta também e comecei a criar dicionários sobre a História da África.

Comecei com o Dicionário da antiguidade africana (2011), no qual a gente começa pela Antiguidade mesmo, pelo Egito, que é uma civilização de base africana. O Egito é um país dentro da África, que foi politicamente tirado dela. Foi excluído e virou Oriente Médio, mas é o norte do continente africano, com uma forte população negra com origens no interior, no Sudão, onde nasce o Rio Nilo. O rio corre do interior da África para o Mediterrâneo. Eu tinha um professor no curso ginasial que dizia uma coisa. “O Egito é uma dádiva do Nilo”. Achava até que a frase era dele, mas não. Era de Heródoto, sábio grego tido como “o pai da História”. O que significa isso? Significa que, se não fosse o Nilo, não existiriam as civilizações egípcias e, ele nascendo no atual território de Uganda, depois do Sudão, tudo o quanto era riqueza corria de dentro para fora do continente até o mar Mediterrâneo. Tudo o que o Egito apreendeu, absorveu, difundiu e expandiu veio lá de dentro. Isso não sou eu que estou dizendo, foi o historiador africano muito famoso Cheikh Anta Diop. As pessoas tiveram que acolher muito do que ele falou. Ele que botou no papel esse conhecimento. É uma coisa extremamente importante para crianças e adolescentes: começarem a contar a História da África pelos grandes feitos dos africanos, não pela escravidão. Essa escravidão efetivamente comercial, que pegou pessoas e transformou em mercadoria, isso só começa no século XVI. Antes havia servidão, como existiu em todas as sociedades clássicas. Tinha escravidão em Roma, tinha na Grécia e entre os hebreus, na Índia... Mas não era pegar uma pessoa e despersonalizar, acabar com a estrutura psicológica, vender e jogar fora.

É uma revolução que tem que ser feita nos currículos escolares. Não tenho poder para fazer isso, ainda mais agora nesse contexto todo adverso que estamos vivendo. Mas a ideia é começar pelas grandes civilizações. A África teve, na época da Idade Média europeia, impérios importantíssimos e riquíssimos. Todo o ouro que baseou o enriquecimento da Europa foi tirado da África para lá. Teve um imperador do antigo Império do Mali que se tornou muçulmano, no século XIV, mais ou menos. Para cumprir um dos mandamentos da Lei Islâmica, ele foi fazer uma peregrinação à Meca, na Arábia. Olhando o mapa, você pode ver que é uma viagem muito longa e ele foi com uma caravana. Nessa viagem, ele levou ouro e foi usando em compras e trocas. Vários livros de História da África contam isso. Ele se chamava Mansa Kanku Mussá. Esse Mussa, em árabe, corresponde a Moisés. E provocou um problema econômico na rota que ele fez porque o ouro dele desvalorizou muita riqueza que havia pelo caminho, tanto que se tornou um rei lendário. Tem vários reis extremamente poderosos, vários impérios que foram criados e deixaram marcas, até hoje.


Nei na Academia Brasileira de Letras em 2010. Foto: Acervo pessoal

No Zimbábue, país que fica acima da África do Sul e ao lado de Moçambique no mapa, estão construções e ruínas de castelos absurdamente fascinantes. A gente sabe que existem hoje, em museus da Europa, acervos de arte escultural, de arte em cobre que foram roubados da África do século XVIII, principalmente do antigo Benim, reino do povo Edo, no leste do atual território da Nigéria. Houve lá um problema, o colonialismo britânico querendo tomar o reino à força e o Benim resistindo aos colonizadores e vencendo algumas batalhas. Até que os franceses mandaram pra lá uma “expedição punitiva”, como chamaram. “Ah, não querem obedecer? Vamos acabar com isso.” Arrasaram as cidades e levaram todo o acervo artístico, que está até hoje no Museu de Londres. E isso está lá escrito, como essas obras de arte chegaram lá. Você destrói uma civilização, faz um motim e leva para mostrar. Segundo uma outra informação, teve uma parte que recentemente, há três ou quatro anos, foi vendida para o Museu da Nigéria, país onde ficava o reino do Benim. Tiveram a “cara de pau” de vender uma coisa que tinha sido roubada. Essa é a história que a gente tem que mostrar, porque antes a África teve grandes civilizações. E a escravidão veio depois, do século XVI em diante. Uma destruição absoluta. E, no século XIX, a dominação se completa com as potências europeias pondo um mapa em cima da mesa, as lideranças se reunindo e dando a cada um a sua parte: “Esse pedaço aqui é seu, esse é seu, esse é seu”. Qual a consequência disso? Fazer uma partilha da África, sem levar em conta as diferenças étnicas, as fronteiras… Dividiram povos, que tinham uma unidade territorial e, de repente, ficou um pedaço de um território num país, outro, em outro. Aí hoje ficam dizendo: “Ah, não, tem grupos belicosos, que vivem guerreando. São tribos”. Tribos nada! São poderosas nações que foram destroçadas. A gente tem que começar lá de trás, reverter a ordem da difusão desse conhecimento para poder mexer com a autoestima de nossos futuros historiadores, nossos futuros professores etc.

CONTINENTE Sobre sua parceria com o saudoso Wilson Moreira. Entre outras vivências musicais, vocês dois gravaram A arte negra, em 1980, e O partido muito alto, em 1985. Conta um pouco dessa parceria e amizade também?
NEI LOPES A parceria nasceu por volta de 1975 e dela nasceu cerca de 35 % de todo o meu repertório gravado até aqui. Tenho inúmeros outros parceiros, mas, sem dúvida, o Moreira é o mais importante. Foi o único com quem gravei dois LPs cantando junto. Com temperamentos e modos de vida bem diferentes, não fomos “unha-e-carne”, de estar sempre juntos, mas fomos bastante amigos também. Com muito carinho e respeito de ambas as partes.

Ouça:
Gotas de veneno/Senhora liberdade

CONTINENTE E recentemente vi comentários que você compôs um samba para o grande Aldir Blanc, que nos deixou há pouco. O título seria Canto de chegada, é isso? Poderia falar um pouco dessa composição e contar sobre sua relação com ele?
NEI LOPES Não é um samba. É uma canção muito sentida, intitulada Canto de chegada, com melodia do Jayme Vignoli, parceiro do Aldir, e letra colocada por mim. Imaginei a chegada do Aldir no céu e disse pra ele o que Manuel Bandeira disse para sua personagem Irene: “Entra! Vai entrando! Você não precisa pedir licença!”. Aldir foi também um amigo que vi poucas vezes, mas nos gostávamos e admirávamos muito. Ele escreveu a apresentação do meu LP Negro mesmo.


Wilson Moreira e Nei Lopes. Imagem: Divulgação

CONTINENTE E sobre a sua relação com a cultura cubana?
NEI LOPES Por conta de um festival de música, conheci Cuba. Entre a década de 1980 e 1990, fui lá pela primeira vez. Eu já tinha uma admiração grande por conta da música, né? Existem três grandes músicas populares no mundo que são imbatíveis. A música norte-americana, a partir do jazz e do blues; a música brasileira, a partir do samba e da bossa nova, que é uma vertente do samba; e a música afro-cubana, que é muito rica, muito forte, muito potente e muito presente no cenário de música internacional. Tanto que, quando a África começou a se descolonizar, na década de 1960, na época das independências, a África não tinha uma música popular constituída. A África tinha uma música muito potente, grande e difundida, mas era música folclórica. Não era música popular, de tocar nas rádios. Não sei exatamente como isso aconteceu, mas aonde a África foi buscar essa essência que ela tinha mandado cá para as Américas? No Caribe, mais fortemente, em Cuba. Hoje, a música popular africana, que tem grande consumo, tem sociedades de direitos autorais. Uma artista importante da música africana, radicada em Paris, Angélique Kidjo, é dirigente da principal confederação de compositores do mundo, a Confédération Internationale des Sociétés d'Auteurs et Compositeurs (Cisac). Ela é um exemplo da permanência e fortaleza da música popular africana, como foi também Miriam Makeba e outros artistas de expressão internacional.

A música popular africana toca muito na Europa. Na França toca bastante, na Inglaterra toca bastante, no Japão também. Ouvindo com cuidado, você verifica que a essência rítmica vem de Cuba. Não é de samba, é de rumba. Com a maior certeza, digo isso. A música cubana tem uma importância fundamental, ela transformou o jazz. Ela só não interagiu muito com a música brasileira, acho. Mas foi muito executada no Brasil, nas rádios, principalmente, na época da minha infância e adolescência. Ouvi muito quando era pequeno e me encantei. Tinha um programa em uma rádio do Rio de Janeiro, quase toda tarde, que se chamava Tesouro das Antilhas. Eu ficava fascinado. Depois tinha o pai de um colega da época do ginásio, que era da Marinha e viajava muito. Ele viajava para o Caribe, para os EUA e trazia uns discos. Eu corria para a casa do meu colega chamado Adílson para ouvir esse tipo de música. Meu aprendizado veio também dessa coisa com os discos. Mais tarde, fui conhecer a grande cantora cubana Celia Cruz, lembro dos discos dela. Para te dizer da importância da popularidade da música cubana no Brasil nas décadas de 1940, 1950… Tinha um conjunto chamado La Sonora Matancera. Sonora é sinônimo de orquestra e matancera é porque vem da província de Matanzas, no sul de Cuba, onde tem uma música e cultura africana muito fortes. Bienvenido Granda, vocalista da Sonora, veio para o Brasil e ficou aqui durante muito tempo. Depois, ele foi para o México e faleceu lá. Numa dessas minhas idas a Cuba, as pessoas perguntavam para mim: “Você sabe o que foi feito do Bienvenido Granda? Poxa, era um cara tão popular, ele sumiu”. Eu dizia: “Se vocês não sabem, eu, muito menos. O que sei é que vi em algum lugar que ele teria ido para o México, depois do Brasil e faleceu por lá”. O contato veio naturalmente. Tenho um poema antigo que está no meu livro Poétnica (2014), em que conto que estava em Cuba. Quando escrevi isso, era um sonho, uma vontade que eu tinha de estar lá. E consegui ir muito depois. Li muito Nicolás Guillén, um dos poetas mais conhecidos de Cuba. Ele influenciou bastante a minha poesia também. Então, é um contato que surgiu quase que na pré-adolescência. Concretizei em três idas lá. E numa dessas idas, o contato com Ifá foi efetivo.


Ilustração do livro Ifá Lucumí, por Pedro Rafael

CONTINENTE Estava pensando aqui, quando você falou da década de 1940. Para a música brasileira, fomos presentados, né? Você, Caetano, Gal, Bethânia, Alcione, João Nogueira, Chico Buarque, muita gente incrível nasceu nesse período.
NEI LOPES (risos) No meu ano, que é 1942, tivemos vários, Milton Nascimento, Gilberto Gil. É a geração do fim da guerra. A guerra estava acontecendo, quando a gente nasceu. Quando a gente fez três anos, ela acabou. Tenho uma história com essa guerra também. Tive um irmão que foi para lá e voltou. Ele é um dos que já teriam mais de 100 anos. Faleceu aos 80 e poucos. Uma pessoa também muito importante, muito bem-dotado artisticamente. É o herói da família; o segundo chamava-se Dair. A gente brincava com ele o chamando de “Cabo Dair”, porque a graduação dele, no Exército, era de cabo, entre soldado e sargento.

CONTINENTE Já que falamos de música, não posso deixar de falar de intérpretes que gravaram composições suas. Alcione, por exemplo, já gravou várias. Queria que você comentasse também sobre essa amizade e parceria de anos.
NEI LOPES Começamos a carreira juntos. O ano de 1972 foi o ano da minha primeira gravação profissional. Estava começando a carreira de compositor e tinha largado a profissão anterior, que era advocacia. Tive a oportunidade de gravar com ela e fiquei sabendo que era a primeira gravação dela, de carreira. Ela gravou o que nós chamávamos na época de “compacto simples”. Gravou uma música minha de um lado; do outro, a de outro compositor. A partir daí, principalmente por intermédio do Reginaldo Bessa, que era o parceiro dessa época, gravei várias. As primeiras gravações com a Alcione. Não que eu seja um compositor que grava com ela sempre, mas, segundo ela, sou o compositor mais gravado por ela. Outro dia fui fazer uma contabilização disso, tenho cerca de 24 ou 25 canções, sambas e tal, gravados por ela. E com um detalhe: tem um chamado Gostoso veneno [cantarola “este amor me envenena”], que ela já gravou em várias versões diferentes. A mais recente foi com Djavan. Uma gravação muito boa, muito bem-feita. Tenho essa história com ela. Infelizmente, a gente não tem uma relação de proximidade, já que moro mais longe do centro, de onde acontecem as coisas, longe da Zona Sul, longe da parte da Zona Oeste que é mais badalada, que é a Barra da Tijuca. A gente não tem esse contato assim, mas, quando a gente se encontra, celebra isso. É uma amizade muito antiga. Você não precisa estar próximo o tempo inteiro para manter uma amizade. A gente mantém esse respeito e admiração. Admiro Alcione profundamente, como intérprete e pessoa. Inclusive, agora, está sendo feito um documentário sobre a vida dela, que, em princípio, vai ter o nome de uma música nossa que ela gravou.

Ouça:
Gostoso veneno, por Alcione

CONTINENTE Olha só, deve ser em primeira mão essa notícia (risos).
NEI LOPES (risos) Vou nem dizer o nome, para ser surpresa da produção dela. Mas é isso aí. Tem também a Clara Nunes, que a gente gravou muito. Foi uma pena a fatalidade ter levado ela tão cedo. Acho que estaríamos gravando até hoje. O marido dela, na época, e produtor, é meu amigo também, o grande poeta Paulo César Pinheiro. Beth Carvalho, a gente também gravou bastante coisas. O Zeca Pagodinho, mais recentemente, gravou coisas minhas. E fora o pessoal da chamada MPB, que tem gravado também. Um projeto de que participei, há pouco, com uma visibilidade grande, através das lives, foi o Festival Moacir Santos. Ele foi uma pessoa muito importante na música. Radicou-se nos EUA, na década de 1960. Tinha vontade que as músicas dele tivessem letras em português, mas não como versões e, sim, dentro das vivências dele. Li sobre a vida dele, como é que foi e tal… Ele é pernambucano também, como a Continente, estudou música com profundidade e tornou-se um dos maiores maestros brasileiros. Foi para os EUA e lá brilhou como grande criador de músicas de cinema.

CONTINENTE Lembro da trilha sonora que ele fez para Ganga Zumba (1963), de Cacá Diegues.
NEI LOPES É, ele não tinha letras que falassem da realidade dele. Criei cinco para canções que foram gravadas por Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento, João Bosco e Ed Motta. Segundo Andrea Ernest Dias, que é a biógrafa dele, flautista, com vida acadêmica, professora de música, pesquisadora e nossa amiga, ela me disse… Inclusive, isso foi falado na live, que, a partir da letra que fiz para o maestro Moacir Santos… Não digo que ele tenha se conscientizado, seria muita pretensão minha. Mas ele, de certa forma, assumiu sua condição de afrodescendente com certa força. Ela me mostrou um vídeo que ele dizia: “Nasci no Brasil, mas sou africano”. Ele falou isso pouco antes de ter falecido, acho que em 2008. “Nasci no Brasil, em Pernambuco, mas sou africano”. São cinco canções, letras, em que três, diretamente, falam em africanidades; duas tangenciam o tema e têm uma africanidade latente. Ela diz que esse trabalho foi muito importante para ele. É importante a gente ser reconhecido também por um trabalho mais elaborado.

Recentemente, fui chamado para fazer a trilha de um espetáculo musical no teatro para a peça Bilac vê estrelas. Foi interessante porque me chamaram apenas para fazer as letras e escrevi 17. Acabaram incluindo apenas 15 delas para a cena. O Ruy Castro, grande escritor, autor do livro em que a peça se baseia, e a Heloísa Seixas, com a parceira, Júlia Romeu, autoras da peça, me pediram, então, para fazer a trilha completa, letra e música. Perguntei: “Vocês confiam?”. “Claro que nós confiamos”. Fiz as músicas e simplesmente ganhei, com esse trabalho, o Prêmio Shell de Teatro na categoria Melhor Música, em 2016. É importante porque sou um compositor oriundo de escola de samba, a Acadêmicos do Salgueiro, e as pessoas não se acostumam com isso, desvalorizam.

CONTINENTE Ainda hoje existe isso.
NEI LOPES Ainda hoje. Aquela velha ideia de samba “de morro” e “de asfalto” ainda permanece na cabeça de muita gente. Acho que estou conseguindo desfazer isso, conseguindo impor o respeito que, até então, não havia. É muito salutar isso. Muito importante e prazeroso. A gente está conversando aqui há quase uma hora. Deu-se conta disso? (risos).

CONTINENTE (risos) Dei sim. Para fechar, já que estou falando com você, não posso deixar de perguntar sobre o samba. Queria que você discorresse sobre esse verbete e também que falasse sobre a importância dessa expressão cultural tão brasileira que é o samba.
NEI LOPES Alguma coisa que respondi também em outra entrevista, dizia que... O samba tem uma importância muito grande, é a célula mater da música popular brasileira. Mas é diferente o samba do início do que é hoje, como todas as músicas. Eu falava do tango argentino, é uma música que tem origem, embora remota, africana também. Da mesma forma que o samba. Depois veio para o ambiente mercadológico e se transformou numa outra coisa. A grande questão que acontece no samba hoje é que ele resiste bravamente, a cada década surge uma forma de samba nova. [Mas] Ele é fruto de uma grande incompreensão. Quando se fala em samba, as pessoas associam imediatamente a escola de samba. Não é só isso. O samba tem uma outra trajetória muito mais, na minha opinião, potente. Muito mais transformadora do que aquela do samba de escolas de samba. Ele é anterior à escola de samba. Antes de haver escola de samba já havia samba.


Nei e dona Ivone Lara. Imagem: Acervo pessoal

Hoje, a gente está passando por um momento em que há essa comercialização sobre a música popular. Antes a música era comerciável porque ela precisava ser vendida e comprada, mas o dado comercial era acessório. Por conta disso, você tinha toda uma variedade de músicas, vários gêneros, várias possibilidades, várias formas de fazer, de interpretar, anunciar… Chegou a um ponto que o lado comercial deixou de ser acessório para ser o principal. A música hoje é uma mercadoria, no sentido mais vil do termo. Uma coisa que se vende, que tem que vender de qualquer jeito. Então, você faz de qualquer forma e de uma só forma porque sabe que assim vai atender a um número maior de pessoas. O respeito que se tinha pela música brasileira está acabando. Havia uma admiração muito grande. De vez em quando, gente do Japão vinha ao Brasil para conhecer a música brasileira e levava artistas brasileiros, principalmente do samba, para ir ao Japão. Os principais instrumentistas de choro já foram e ninguém vai mais, ninguém chama mais. Por quê? Qual é a música do Brasil? É a música do agronegócio, essa música que está aí. Não estou menosprezando, estou expressando a minha opinião. É a música única. O problema não é qualidade, é ser a única opção, a única possibilidade. Qualquer lugar que você vai, só é essa música que está tocando. Até no carnaval do Rio de Janeiro já tem bloco com música sertaneja. É uma agressão, uma “violentação”. E com relação à escola de samba, ela tem uma importância muito grande. Mas, há muito tempo, tinha perdido aquela característica de afro-brasilidade. Passei a desconsiderar escola de samba como alguma coisa da cultura afro-brasileira há um tempo. E veja como as coisas são dinâmicas, de um relativo tempo para cá, através dos enredos, as escolas de samba retomaram uma linguagem altamente importante, principalmente pelo fato de abordar, com primazia, o universo das religiões afro-brasileiras. Isso tem sido algo de muita importância, que começou apenas pelo aspecto cenográfico, teatral e que hoje já penetra na sociedade carioca como uma prova da dignidade e importância das religiões afro-brasileiras. Isso está incomodando muito políticos contrários. Há uma má vontade tremenda com relação às escolas de samba no atual momento. Os governos cortando verbas, exatamente por isso, por elas colocarem “na cara” do Brasil a importância das religiões afro, não apenas esteticamente, mas também como fundamento de filosofia e de conhecimento. Acho que é por aí. O samba, além de tudo, ainda hoje, tem essa importância. Está bom para você?

CONTINENTE Ô, e como! Muito obrigada, Nei.
NEI LOPES (risos) Agora vou tomar uns cinco litros d’água. Obrigada a você, felicidades e saúde.

ERIKA MUNIZ é jornalista, tem graduação em Letras e participa do grupo de estudos Narrativas Anticoloniais.

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