“Está todo mundo com medo de pensar fora da lógica de grupo” [parte 2]
Filósofo, ensaísta, autor de 'O diálogo possível, Francisco Bosco conversa sobre o papel dos intelectuais no debate público, a polarização na política nacional e a crise mundial das democracias
TEXTO Débora Nascimento
05 de Outubro de 2022
Foto Bel Pedrosa/Divulgação
[continuação da entrevista da ed. 262 | outubro de 2022]
CONTINENTE Você diz que o debate público precisa dos termos certos para ser entendido entre as duas partes. No debate da Band, houve um momento em que Lula foi questionado com relação à polarização. E respondeu que ela sempre existiu entre PT e PSDB, mas o que existe hoje é discurso de ódio. Então, queria saber se essa palavra polarização é um termo correto a ser usado ou se a gente poderia utilizar a expressão radicalização política.
FRANCISCO BOSCO Sim, o que a gente hoje chama de polarização poderia ser chamado de radicalização política. A polarização, tal como a gente já conhece hoje nada tem a ver com a que a gente conheceu, por exemplo, nas primeiras décadas da redemocratização, quando havia dois polos, PT e PSDB, disputando a hegemonia do governo federal. Entretanto, esses dois polos eram muito mais próximos politicamente do que eles mesmos faziam aparecer para a opinião pública, como eu falei no início da conversa. O que acontece hoje é que houve uma supressão dos espaços intermediários. E isso por razões que têm a ver com toda essa nossa conversa aqui. Tem a ver com a emergência das redes sociais como espaço central no debate público, lógicas de grupo, interesses eleitorais. Também na origem dessa conversa toda está a crise da democracia liberal, que é um fenômeno não apenas brasileiro. A polarização, que também não é apenas brasileira, basta pensar nos EUA, que, sob esse aspecto, é o país mais parecido com o Brasil, seguiu o mesmo modelo. O que aconteceu foi que, desde os anos 1980, com a queda do bloco socialista, com o colapso da social-democracia, a emergência das políticas públicas neoliberais, tudo isso levou a uma inflexão global, no sentido do estabelecimento de democracias liberais que acabaram, com o passar do tempo, se revelando mais liberais do que democráticas.
Isso significa que, do ponto de vista político, essas democracias liberais conseguiram avanços importantes, por exemplo, no reconhecimento de direitos a minorias, o que pertence à tradição liberal, podemos dizer assim, embora também à tradição democrática, mas originalmente à tradição liberal. E, do ponto de vista de crescimento material, essas décadas de democracia liberal, que são também as décadas da globalização, foram muito bem-sucedidas do ponto de vista de aumentar a riqueza material da maioria dos países e, sobretudo, dos países que mais intensamente participaram da globalização. Nas últimas décadas, a globalização deixou de ser apenas você produzir em um lugar e vender em outro, acelerar as trocas comerciais dessa maneira, reduzir barreiras tarifárias. Mais do que isso, por conta das novas invenções tecnológicas, você pode dividir a própria produção em diferentes países. Então você pode ter uma empresa, por exemplo, cuja inteligência está num país, mas a execução da produção está em outro. Existe um conjunto de evidências muito fortes no sentido de mostrar que os países que conseguiram se inserir melhor nessas cadeias globais de produção, enriqueceram mais. Mas, de um modo geral, houve aquilo que um economista chama de grande convergência, que é o fato de, nas últimas décadas, países pobres ou de renda média terem aproximado os seus PIBs de países ricos. Houve uma convergência no sentido global, entre países. Ao mesmo tempo, houve um crescimento brutal da desigualdade no interior da imensa maioria desses países, desde a China até os Estados Unidos, passando pelo Brasil. Então, as democracias liberais, nas últimas décadas, têm resultados ambíguos, produziram direitos para minorias, aumentaram a riqueza material, diminuíram a distância da riqueza entre países. Mas elas aprofundaram enormemente as desigualdades no interior dos países. E com a globalização econômica e o peso que a questão econômica, material, tem nas civilizações contemporâneas, isso pode parecer um truísmo, mas não é: esse homo economicus que nós somos hoje, essa cultura que privilegia acima de tudo bens materiais, enriquecimentos econômicos, isso é uma coisa relativamente nova na história da humanidade. Outras épocas cultuaram valores diferentes.
Por conta desse privilégio à economia e das evidências de que as trocas comerciais mais desimpedidas favoreciam esse crescimento, isso subtraiu muito a soberania local. O que a gente está vendo, por exemplo, o caso mais famoso, o Brexit, é o resultado da perda de soberania dos países. Isso, na Europa, é sentido de uma maneira muito específica por conta da União Europeia. E, a partir da crise de 2008, uma crise que se originou nos Estados Unidos mas se tornou também uma crise global – por conta disso que a gente está falando aqui, por conta da globalização e do modo como todos os países estão com as suas economias enganchadas umas nas outras –, para sair da crise, a troika na Europa determinou medidas econômicas de austeridade, mesmo para países que não as queriam adotar. Toda crise política que houve na Europa na última década esteve relacionada a isso. A causa mais importante da polarização é a crise das democracias liberais. Tudo isso que eu estava falando agora é como as democracias liberais no mundo foram entrando em colapso.
CONTINENTE Estamos vivendo uma pós-democracia, não é isso?
FRANCISCO BOSCO Pós-democracia é um termo da Chantal Mouffe e do Ernesto LaClau justamente para designar esse estado da democracia liberal, que é mais liberal do que democrática. O traço fundamental do conceito de democracia é a soberania popular. Na sua versão moderna, pelo menos, não nas democracias antigas, que eram muito restritas, mas, a partir da obra de Rousseau, a democracia passa a ser pensada essencialmente como participação popular. Uma democracia é tão mais forte quanto mais intensa e inclusiva for a participação. O que aconteceu nas últimas décadas é que, apesar do sucesso econômico relativo das democracias liberais, houve um poder muito grande dos organismos econômicos globais e do modo como eles exerciam o poder sobre os governos locais, como é que os governos locais foram perdendo o poder e como é que tudo isso foi gerando uma sensação de cidadania impotente. De forma que esse conjunto de coisas, somadas a outras especificidades do Brasil, veio a dar na explosão de 2013, que tem como principal razão essa crise da democracia liberal.
Era uma forma de democracia que parecia estar esvaziando a capacidade que um cidadão sentia de participar do processo democrático. 2013 é o embrião da polarização no país, porque o modo como a redemocratização se estruturou no Brasil sofreu, ali, uma primeira fissura que só iria se expandir. Essa organização da redemocratização baseada em dois partidos relativamente próximos do espectro político, entre a centro-esquerda, o PT e o PSDB, de centro, às vezes um pouco mais centro-esquerda, um pouco mais centro-direita. A partir de 2013, a sociedade brasileira entrou num processo anti-institucional e antissistêmico que criou esse efeito de centrifugação. Porque o que representava o sistema político era justamente, na metáfora que o Marcos Nobre costuma usar, essa espécie de diâmetro muito reduzido do compasso. Então, quando isso entra em crise, automaticamente existe uma tendência para os extremos. Porque aquilo que governava, até então, era dentro desse círculo. Como essa política centrista se revelou insuficiente para dar conta das demandas sociais, quando isso entra em crise, há um empuxo social pra fora desse centro. Aí, por razões que têm a ver com o processo político específico do Brasil, o fato de que o PT estava no governo quando houve 2013 e depois a Lava Jato, que canalizou a energia antissistêmica de 2013, e o PT é o único partido de massas de esquerda no Brasil, a esquerda ficou inviabilizada como caminho. E aí a direita é que pulou nesse cavalo selado e o movimento de radicalização tendeu mais à direita. Eu diria que essa é a origem da polarização. Ela tem uma dimensão que é global e tem as características específicas do Brasil que a fizeram cair mais pra direita. Na verdade, a maior parte do mundo caiu mais pra direita. Se você for lembrar, no começo desse processo, parecia que ia cair pra esquerda. Como uma resposta à crise global de 2008, surgiram vários partidos que questionavam a esquerda centrista dos seus países e se apresentaram como opções de uma esquerda mais democrática, no sentido de participativa: o Syriza, o Podemos e por aí vai. Depois, o movimento acabou descambando pra direita.
CONTINENTE Tem muitos aspectos que envolvem junho de 2013. Um deles é que as redes sociais, em especial o Facebook, tiveram papel fundamental, assim como teve na Primavera Árabe, e foi também a demonstração de uma demanda reprimida de rua. Sobre junho de 2013, você fez o documentário O mês que não terminou.
FRANCISCO BOSCO O documentário é uma tentativa de entender o que foi junho, que tem uma dimensão um pouco enigmática, né? Hoje menos, mas quando aconteceu, ainda estava no primeiro governo Dilma, os indicadores econômicos ainda eram bons. E o Brasil vinha das maiores conquistas da sua história democrática. Então, como é que, nesse contexto, surgem os maiores movimentos de rua do Brasil desde as Diretas Já? O impeachment de Collor, que foi grande, não se compara ao que foi o junho de 2013. Aquilo foi muito desconcertante. Mas eu acho que, com o tempo, foi se estabelecendo a leitura que me parece a mais plausível, que é essa de entender 2013 como a explosão de uma insatisfação que vinha sendo acumulada no interior desse processo da democracia brasileira, apesar das suas conquistas.
Como o passivo brasileiro é gigantesco, as conquistas que houve na redemocratização não foram suficientes para tornar a democracia brasileira uma democracia sustentável. Houve crescimento da renda dos mais pobres? Houve. O Brasil saiu do mapa da fome? Sim. O desemprego estava muito baixo? Sim. Mas, por outro lado, os serviços públicos eram muito ruins para a população mais pobre, mas também para a população de classe média. Começou com a questão do transporte. Havia um passivo muito grande, que me parece ter se articulado com os grandes eventos esportivos que acabaram se revelando um autopresente de grego, as Olimpíadas e a Copa do Mundo. A sociedade fez uma leitura de que havia uma contradição entre a carência de investimento em serviços públicos essenciais e a exorbitância dos gastos com aquelas festas e que, muitas vezes, também, passavam de uma forma sem licitação, sob rubricas emergenciais. E, portanto, com suspeitas de corrupção que acabaram depois se revelando corretas. Basta ver o caso do Rio de Janeiro, o governador seria preso. Então, tudo isso eu acho que inflamou mais essa insatisfação, que já vinha crescendo na democracia brasileira.
Junho explode, portanto, como essa grande insatisfação. Era uma grande revolta da sociedade civil, que começou com a agenda do transporte livre gratuito, mas, quando ela se torna de massa, já não tem nada a ver com essa agenda específica. O seu estopim é a violência policial, o modo como a Polícia Militar, sobretudo de São Paulo, reagiu às primeiras manifestações. Foi muito violenta e violência policial também é um problema sério no Brasil, a polícia brasileira é uma das que mais matam no mundo. Isso transformou o movimento em movimento de massa. Mas sobretudo com esse caráter negativo e difuso. Dentro desse caráter negativo, o que mais ressaltava era esse leitmotiv do “não me representa”. Apontando para uma crise da democracia na sua dimensão representativa. Portanto, tem a ver com uma democracia liberal que parecia muito fraca do ponto de vista da participação popular, e aí estoura junho, que é essa primeira pedra atirada contra a vidraça da redemocratização brasileira. Aquilo poderia ter tido caminhos diferentes, sem dúvida.
Há uma perspectiva que insiste na leitura de que junho não pode ser lido na chave de uma relação de causalidade com tudo o que aconteceu depois. E me parece que eles estão certos nisso, em argumentar que entre junho e Bolsonaro aconteceu muita coisa que poderia ter acontecido de forma diferente. Eles leem junho como um grande clamor popular por reformas estruturais profundas, que não foram reconhecidas e assimiladas pela institucionalidade vigente. Ao contrário, o que o governo PT fez depois de um início de um certo semblant de reconhecimento, teve um pronunciamento da Dilma a favor de uma reforma política... Mas, na prática mesmo, o que aconteceu foi o reforço a leis repressivas. E uma repressão muito forte também. Então, a institucionalidade que assimilou a grande energia massiva despertada por junho foi a Lava Jato, com todo o paradoxo que isso tem, porque a Lava Jato tenta fazer justiça minando os princípios do Direito. Ela tenta purificar o sistema político, mas quando ela submete os fins aos meios, o resultado foi que até obteve ganhos imediatos, conseguiu punir castas políticas e empresariais que no Brasil jamais eram punidas, mas como ela fez isso? Violentando os princípios do Direito. Em vez de ela purificar o sistema político que, ao fim das contas, continua igual, ela acabou conspurcando o sistema da justiça. Então a Lava Jato contribuiu para fazer com que junho, em vez de ser um acontecimento de reforma institucional, no sentido de aprofundar a democracia, destruiu o sistema político, contribuiu para fragilizar a economia brasileira, propiciou o impeachment da Dilma Rousseff, que é um impeachment que considero ilegítimo, embora feito com todos os rituais da legalidade, e por conta de todos esses acontecimentos, junho acabou na origem de uma espécie de anomia generalizada da sociedade brasileira, que viria a eleger Bolsonaro.
Portanto, eu concordo com os que insistem na perspectiva de que não podemos ver uma relação direta entre junho e Bolsonaro. Eu vejo junho com uma ambiguidade irredutível. Os governos duráveis da redemocratização, o PSDB e PT, ambos, fizeram avanços muito importantes, mas, durante todo esse tempo, houve uma força conservadora no sentido fisiológico, representada pelos partidos do centrão e o PMDB. Como sempre, houve uma força do atraso, no sentido de impedir reformas demasiadamente democráticas no Brasil. Isso colocou um teto muito baixo para a democracia brasileira, que em algum momento acabava comprimindo os anseios da população e levando a uma crise sistêmica. Foi o que aconteceu em 2013 e seguirá sendo o destino do Brasil, caso não sejam feitas reformas da magnitude necessária para lidar com o passivo gigantesco do Brasil.
Talvez os movimentos de massa, de rua, sejam o terceiro termo necessário para pressionar esse sistema político ossificado e tentar quebrar as resistências que ele tem a reformas profundas. Então, de um lado, eu compreendo que um acontecimento como junho talvez seja o único instrumento que a sociedade civil tem pra transformar essa relação espúria e limitadora entre Executivo e Legislativo. Por outro lado, do modo como junho de 2013 se deu, ele é muito arriscado, porque você libera uma energia popular gigantesca sem uma direção prévia. Existe um risco embutido nesse processo, de que essa energia possa ser capturada e canalizada para destinos diferentes daqueles que você imaginou. E, de fato, foi isso o que aconteceu. Então, eu não estou nem entre os que consideram junho o ovo da serpente. Foi ali que tudo começou a dar errado, né? De fato foi, mas poderia não ter sido.
CONTINENTE Você considera que chegamos ao fim da Nova República. Qual seria o marco? Que fase estamos vivendo agora?
FRANCISCO BOSCO Pode ter vários marcos. Eu acho que 2013 é um importante e o impeachment/golpe é outro muito importante. Acho que a gente está numa espécie de limbo. Ninguém sabe direito o que vai acontecer, porque neste momento em que estamos conversando, hoje é dia 5 de setembro de 2022, a probabilidade de o Lula vencer as eleições é muito grande. Diante desse cenário, a pergunta mais frequente tem sido “Como é que você pensa que vai ser a oposição no Brasil?”. Essa, sem dúvida, é uma pergunta importante e me parece que tem tudo para acontecer aqui o que está acontecendo nos Estados Unidos, em que Trump perdeu a eleição, mas existe o trumpismo. Existe um movimento conservador com as mesmas características religiosas e paranoicas que tem no Brasil e que sobreviveu à derrota do Trump e manteve a sua organização em torno de uma mistificação, que foram as alegações de fraude na eleição do Joe Biden, de forma que o Trump é um candidato forte para a próxima eleição norte-americana. O Bolsonaro está tentando fazer a mesma coisa aqui: colocar suspeita sobre a eleição do Lula, manter a sua base social coesa, até também como uma forma de proteção a eventuais processos que ele vai ter que responder. Parece que existe um consenso no mundo do direito que não é bolsonarista de que o Bolsonaro cometeu crimes comuns. Então, ele pode ser processado, pode ser preso. Para que isso aconteça, o Direito não vive no mundo abstrato. O Direito vive no mundo das pressões políticas, no mundo real. Se a base bolsonarista estiver enfraquecida, as chances de ele ser preso são muito maiores. Tudo indica que a oposição no Brasil vai ser bolsonarista ferrenha. Eu diria até que mais social do que institucional, e institucionalmente, é provável que o centrão faça o que sempre faz, que é vender o seu preço para o governo Lula, que sempre pagou. Mas a minha preocupação, igualmente grande, é com a situação. Não é apenas com a oposição, mas que situação nós vamos ter? Que governo Lula será possível no Brasil?
Apoiadores de Bolsonaro fazem protesto pedindo intervenção militar, em Brasília (DF), em 2020. Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
Porque me parece que, na melhor das hipóteses, será um governo que vai voltar a dirigir o atraso brasileiro. E o que a gente precisa, entretanto, é dar um passo além. Se a gente não conseguiu dar um passo além naquele momento em que as condições eram mais propícias, está mais difícil dar um passo além, agora. O que eu estou chamando de passo além é conseguir realmente superar o atraso, o passivo de desigualdades brutais na sociedade brasileira. Eu acho muito difícil que haja condições políticas de um governo Lula conseguir agir nesse sentido. Na melhor das hipóteses, consegue fazer uma reforma tributária, o que já não seria pouco. Seria preciso uma reforma tributária de sentido progressivo radical no Brasil e com taxação de grandes fortunas, com taxação de herança significativamente mais alta, com outras faixas de imposto com maior progressividade. Reformas estruturais nesse âmbito, que são as que a gente precisa, vão ser muito difíceis de fazer nesse novo governo e, na ausência delas, a democracia brasileira continua uma democracia frágil, porque as tensões sociais devem continuar se acumulando, né?
Então, a gente tem várias tarefas ao mesmo tempo. Vai ser muito difícil dar conta delas. A gente tem que erradicar o bolsonarismo. Bolsonarismo não tem lugar no regime democrático. É um movimento dogmático, extremista, truculento, militarista, autoritário. Considero que uma das tarefas da esquerda é contribuir para reconstrução de uma centro-direita no Brasil, que foi completamente enterrada pela hegemonia dessa direita ultraconservadora. Então, erradicar o bolsonarismo, reconstruir uma direita democrática no Brasil e dar um passo adiante na democracia brasileira, vai ser difícil conseguir isso a curto e médio prazo.
CONTINENTE Como é que a gente vai erradicar o bolsonarismo?
FRANCISCO BOSCO Tem muitos nós aí pra desatar. Um importante é que nós sejamos capazes, todos os envolvidos nesse conflito, de dar um melhor encaminhamento ao conflito entre progressistas versus conservadores. Esse conflito é um dos mais sensíveis e acirrados, e não só no Brasil, porque a esquerda global – em alguns lugares mais e em outros menos; no Brasil, mais – teve uma inflexão no sentido das pautas progressistas, chamadas também de identitárias, ao mesmo tempo em que, como a gente conversava antes, no Brasil, o cristianismo sofreu uma inflexão também rumo ao neopentecostalismo, que é mais conservador do que aquele cristianismo católico que, para boa parte da sociedade brasileira, era mais cultural e inercial, e aqui uma verdadeira profissão de fé.
Então uma coisa está alimentando a outra. À medida que a agenda progressista pressiona em favor de uma sociedade mais aberta, a mentalidade conservadora se eriça, se fecha e reage. E esse conflito está difícil de desatar, e ele alimenta o bolsonarismo. O bolsonarismo vive, em boa medida, desse conflito. Então uma das formas para esvaziá-lo é tentar entender esse conflito e tentar encaminhá-lo de alguma maneira que a gente consiga preservar e expandir os direitos das minorias. Isso é um imperativo democrático e liberal. Mas, ao mesmo tempo, fazendo iss, quebrando as resistências dos conservadores. Para mim, tem espaço dos dois lados. Da esquerda, tem uma margem de manobra entre o que se chama de identitarismo e o que eu chamaria de defesa do antirracismo, da antimisoginia, da antiLGBTfobia. Não são a mesma coisa, você pode ser perfeitamente antirracista, a favor da igualdade de gêneros e não concordar com determinadas premissas e determinados métodos do chamado identitarismo que, a meu ver, aumentam muito a resistência dos conservadores. Da parte dos conservadores, também é preciso que a gente entenda que há uma distinção a ser feita entre ultraconservadores ou reacionários, que são normalmente grupos de inscrição religiosa, cristãos e evangélicos. Esses têm uma margem de manobra muito pequena, porque estão, em geral, sob a liderança de pastores, que são realmente reacionários. Mas tem um conservadorismo difuso, que não é completamente avesso a mudanças.
Tem diversos outros nós... Tem um nó da questão das forças armadas no Brasil. Seríssimo, também. Na minha concepção de Brasil, as forças armadas são um dos maiores inimigos internos da sociedade brasileira. Elas têm um complexo de poder moderador, que é uma função que não existe mais constitucionalmente e que, no entanto, eles ficam tentando criar artifícios de interpretação constitucional para se colocar num papel político que não têm e o Brasil não consegue civilizar as suas forças armadas. Não consegue fazer com que se tornem efetivamente democráticas, que abram mão de uma interferência política que, em qualquer país democrático digno desse nome, não existe. E como a gente vai fazer isso? Não sei, nós não conseguimos fazer até hoje e é um grande problema, porque, enquanto não o fizermos, estaremos sempre correndo risco de sermos chantageados pelas forças armadas, como estamos sendo neste momento.
CONTINENTE Queria que você falasse sobre essa construção do sentimento e da ideia de nação a partir da cultura popular, envolvendo elementos como a música e o futebol.
FRANCISCO BOSCO Esse é outro nó importante da experiência brasileira nesse momento em que estamos vivendo. Nós, no Brasil, não fomos capazes, nesses cinco séculos de história, de produzirmos marcos institucionais suficientemente vinculantes e transformadores e inclusivos para que pudessem funcionar como as referências do nosso sentimento de nação, daquilo que nos une enquanto povo dentro de um território sob as mesmas leis. Mas o que ele faz para que um brasileiro seja brasileiro? Qual é a nossa identidade enquanto brasileiro? A nossa identidade não passa por marcos institucionais. Um francês, por exemplo: provavelmente a identidade francesa, o seu traço fundamental de união está ligado à Revolução Francesa. E no Brasil, não.
No Brasil, os grandes movimentos, os grandes marcos institucionais, são muito ambíguos. Eles estão sempre funcionando dentro do que a gente poderia chamar de égide da modernização conservadora. Então, a independência do Brasil não deixa de ser um movimento que mobilizou classes populares, mas é um movimento feito pelo imperador e que continuou imperador português no comando de uma nação que deveria, entretanto, ser uma nação emancipada. A proclamação da República no Brasil é quase uma farsa, uma mistura de golpe militar com contragolpe das elites latifundiárias para frear os ímpetos democratizantes do movimento abolicionista e de movimentos republicanos “radicais” pra época, que existiam ali na segunda metade do século XIX.
Então, nós não temos isso. Onde temos o sentimento de unidade nacional é na cultura popular. Ela é o conjunto de cruzamentos que aconteceram no Brasil à revelia de qualquer oficialidade. É a mistura de náufragos e degredados portugueses com indígenas, com, depois, a população negra escravizada, mas que tinha um convívio social. Tudo isso foi formando uma mistura biocultural no Brasil, que viria a produzir uma cultura popular, que é a língua, o português abrasileirado, a nossa música, a nossa forma de sociabilidade, o nosso futebol, o nosso Carnaval, que são as nossas festas e por aí vai. Essa cultura popular foi muito recalcada durante boa parte da história brasileira, mas ela chega no final do século XIX e no começo do século XX, e é reconhecida e afirmada como essa grande instância de união nacional.
Por que ela é afirmada assim e foi tão exaltada por gerações de intelectuais e de artistas? Porque conseguiu realizar feitos que a sociedade brasileira nunca conseguiu realizar. Então, na cultura popular, você tem protagonismo efetivo de pessoas negras. O maior jogador de futebol da história do Brasil é uma pessoa negra. Na canção popular, você tem uma presença negra também muito mais forte do que em qualquer outro campo de profissões de prestígio no Brasil. Você tem mais cancionistas populares importantes negros do que você tem médicos negros ou engenheiros negros ou advogados negros e por aí vai. Então, gerações pensaram a cultura popular como um modelo que deveria orientar a transformação da sociedade brasileira. Tem uma coisa muito interessante, esse é o verdadeiro nó: o modelo da cultura popular é um modelo da utopia mestiça. A cultura popular é uma forma de universalidade. Ela não trabalha com particularismos. O que a cultura popular conseguiu? Pelo menos parcialmente, realizar uma espécie de lugar em que todas as misturas são possíveis e tem os mesmos direitos de acesso, de prestígio. Essa utopia mestiça esteve muito longe de acontecer na sociedade brasileira.
Enquanto isso acontecia na cultura popular, no futebol, na canção, no Carnaval, não de forma plena, com limitações também, é verdade. Mas muito mais avançado do que na sociedade nacional, que continuou hierarquizada, desigual, racista, misógina. Por conta disso, foi crescendo a consciência dessa discrepância entre os feitos da cultura popular e o que aconteceu na sociedade brasileira. E o problema não era apenas que existia um abismo entre uma coisa e outra. Mas também o problema é que a cultura popular era instrumentalizada por uma elite social brasileira que procurava fazer dela uma espécie de lugar compensatório, de válvula de escape, a fim de mascarar os conflitos sociais efetivos. Então, a gente exaltava a cultura popular como o lugar da mestiçagem, o lugar dessa universalidade, desse encontro de todos os brasileiros, independente de raça, independente de gênero, independente de classe social. E isso funcionava como um agente de dissolução dos conflitos sociais que aconteciam. Isso desencadeou séries sucessivas de críticas à cultura popular. A mais recente delas é o que se chama de identitarismo, uma crítica ao universalismo, porque este nunca foi capaz de produzir uma sociedade verdadeiramente universal.
CONTINENTE “O esquecimento e eu diria até o erro histórico são um fator essencial da criação de uma nação e é assim que o progresso dos estudos históricos é com frequência um perigo para a nacionalidade.” Gostaria que você falasse um pouco sobre essa frase de Ernest Renan, que está no seu livro.
FRANCISCO BOSCO O Renan é um historiador francês importante. Você tem um historiador defendendo o esquecimento e dizendo que o estudo da história é um estudo perigoso, porque todo o Estado é fundado pela violência e pela submissão de alguns grupos sobre outros grupos. E, nos melhores casos, os Estados e as nações conseguem se formar e esses acontecimentos de violência originária vão ficando perdidos no tempo, quando você consegue construir uma democracia inclusiva para todos os grupos que fazem parte desse estado, dessa nação. No caso brasileiro, isso não é possível, está muito longe de ter acontecido, porque os traumas fundamentais da sociedade brasileira, da submissão dos povos negros e indígenas, continuam se perpetuando no presente. Então, a gente não conseguiu encaminhar democraticamente esses traumas, tanto da escravização das pessoas negras quanto do assalto aos territórios indígenas, da expulsão dos indígenas, quando não do seu assassinato. E são grandes passivos que a sociedade brasileira tem até hoje e que funcionam permanentemente como uma produção de conflito. Então, o único caminho para a sociedade brasileira é não esquecer. É ir na origem do trauma e tentar elaborá-lo. O que, em política, significa criar políticas públicas para transformar a situação objetiva.
DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.