Entrevista

“Está todo mundo com medo de pensar fora da lógica de grupo”

Filósofo, ensaísta, autor de 'O diálogo possível', Francisco Bosco conversa sobre o papel dos intelectuais no debate público, a polarização na política nacional e a crise mundial das democracias

TEXTO Débora Nascimento

05 de Outubro de 2022

Foto Bel Pedrosa/Divulgação

[conteúdo na íntegra | PARTE 1 | ed. 262 | outubro de 2022]

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Em 1976, enquanto o Brasil estava ainda sob o manto opressor da ditadura militar, João Bosco lançava o disco Galos de briga, que sedimentava seu nome como respeitável novo compositor da Música Popular Brasileira. Naquele mesmo ano, nascia o primeiro de seus dois filhos, Francisco de Castro Mucci. Chico tinha apenas três anos quando uma composição de seu pai (em parceria com Aldir Blanc), O bêbado e a equilibrista, na voz de Elis Regina, era o tema não oficial da Anistia, no regresso dos exilados ao país, em meio ao processo de abertura política que viria desaguar no início da Nova República, em 1985.

Pouco mais de 40 anos depois, quando parece que o Brasil está seguindo o caminho inverso ao da democratização, o filósofo e ensaísta Francisco Bosco se tornou um dos requisitados intérpretes da realidade brasileira e hoje fala sobre o fim da Nova República. Para ele, estamos em um limbo histórico, ainda sem denominação exata, com o agravante de estarmos com a nossa jovem democracia ameaçada. O autor lançou recentemente seu 11º livro, O diálogo possível (Todavia), no qual analisa este período conturbado em que a palavra polarização ocupa, em substantivo e ação, os discursos políticos e as redes sociais digitais. É como se figuras tão antagônicas, quanto o “bêbado” e a “equilibrista”, estivessem em polos cada vez mais distantes.

A trajetória cumprida por Chico Bosco – como é mais comumente chamado – para se tornar intelectual começou, sem ele perceber, ainda na juventude. Sob a influência do pai, gostava de música, mas ainda mais de literatura. Vivia cercado por livros. Essa paixão o levou ao curso de Jornalismo. Segundo ele, foi a profissão que se mostrou mais próxima da leitura e do conhecimento. “Ao mesmo tempo, era uma profissão socialmente reconhecida e que, naquela época, parecia propiciar uma carreira profissional e materialmente digna”, conta, nesta entrevista à Continente. Durante o curso na Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), foi aprofundando o interesse por estudos de teoria literária e filosofia e traçou o plano de ter uma carreira acadêmica como professor. Fez mestrado e doutorado em Teoria Literária na UFRJ. Durante três anos, deu aulas dessa disciplina e de Filosofia em faculdades particulares. Paralelamente a tudo isso, compôs e lançou canções com seu pai, muitas das quais tem orgulho da criação.

Para ele, a música é uma derivação do interesse por cultura brasileira e literatura. “Ela (a música) nunca foi o centro da minha atividade. O centro da minha atividade é o ensaísmo, que pode se manifestar tanto por escrito como falado. Eu deixei de ser professor universitário, mas nunca deixei de dar aulas. Passei minha vida toda dando aula, dando palestra, conferência, grupos de estudo, essas coisas”, relata.

Francisco passou a interpretar a realidade e a sociedade através de textos publicados na imprensa, nos seus livros e no Papo de Segunda (GNT), programa televisivo onde, desde março de 2018, toda segunda-feira, reúne-se, com o ator João Vicente, o rapper Emicida e o apresentador Fábio Porchat para discutir temas atuais. O programa é um dos mais assistidos do canal, preenchendo uma lacuna de debates de qualidade na TV e contribuindo para projetar seu nome nacionalmente, devido à sua capacidade de elaborar análises sobre os assuntos mais diversos. “Hoje eu estou na televisão exercendo o que considero alguma coisa que é da ordem do ensaio, da aula, da intervenção do intelectual público”, pontua.

O pensador carioca, que foi brevemente presidente da Funarte entre 2015 e 2016 (com o impeachment de Dilma Rousseff, entregou o cargo), se tornou o que ele denomina de “intelectual público freelancer”. Em O diálogo possível, inclusive, ele destaca uma frase do filósofo Paulo Arantes: “Intelectual é aquele que não adere”. Por conta da prática desse lema, nem tudo são aplausos na sua carreira. Francisco, vez ou outra, se vê alvo de críticas - quando, por exemplo, lançou o documentário O mês que não terminou (2019), sobre as manifestações de junho de 2013, e o livro A vítima tem sempre razão? – O novo espaço público brasileiro (Todavia, 2017), no qual avalia, sob outra perspectiva, fatos que geraram polêmicas nas redes sociais. “Acho que o papel do intelectual público, de certa forma, é até o contrário (à aderência). É mais o de instaurar complexidade na vida política social, de forma a não permitir que certos movimentos se tornem demasiadamente coesos a ponto de funcionarem como forças de intimidação. Então, o papel do intelectual público é o de destilar complexidade”, observa.

Nesta entrevista à Continente, ele fala, com muito zelo, sobre algumas das questões que compõem o novo livro. Analisa temas como as lógicas de grupo, a polarização política, a crise das democracias liberais, os governos do PT e do PSDB, a relação entre Olavo de Carvalho e o bolsonarismo, o impeachment ilegítimo de Dilma Rousseff, a ambiguidade de junho de 2013, o avanço das pautas dos evangélicos, a diferença entre o papel dos intelectuais e da militância. E em todas as respostas, Francisco Bosco demonstra ser uma das vozes guias para ajudar o país a sair dessa transversal do tempo.

CONTINENTE Queria começar pelo título, O diálogo possível. Alguma vez o diálogo foi possível no Brasil?
FRANCISCO BOSCO Vou te contar uma história curiosa sobre esse título, que eu ainda não tinha contado publicamente. Esse livro demorou uns três ou quatro anos para ser feito. Fui pesquisando, escrevendo e, ao longo desse processo, ele tinha outros títulos. Mas, quando fui lançar, o meu editor, Flávio Moura, da Todavia, com o qual trabalhei no Instituto Moreira Salles e tenho muita confiança, sugeriu esse título. Na leitura dele, essa dimensão do diálogo era muito central e eu acatei. Mas isso produziu um efeito sobre a recepção do livro. Porque entendo esse livro da seguinte maneira: ele tem uma premissa que eu chamaria de premissa epistêmica. Ou seja, sobre a forma como o debate público hoje funciona. E a tese fundamental é a de que o debate público está disfuncional porque está muito largamente constituído por lógicas de grupo. E daí, então, a ideia de como fazer e o que fazer para tornar o diálogo possível. Mas, por conta desse título, essa premissa epistêmica veio ao proscênio do livro, e eu praticamente só passei a falar sobre ela. Quando, na verdade, essa é a premissa do livro. Mas o livro é organizado em capítulos que tentam desconstruir pares de oposições, que eu acredito que estão justamente muito sedimentadas ou polarizadas por conta dessas lógicas de grupo.

Por conta das lógicas de grupo, foram se criando oposições que são muito ingênuas. Ou, o contrário, né? Ou, na verdade, são muito astuciosas, porque são, e foram formadas seja por objetivos eleitoreiros, seja por objetivos inconscientes de manutenção da lógica de grupo. Mas, são oposições erradas do ponto de vista teórico e histórico. Erradas no sentido de que elas são simplórias demais, como, por exemplo, a oposição entre liberalismo e socialismo. É verdade que há duas tradições que se formaram e que, nos seus pontos mais puros ideologicamente, elas são completamente distantes. Mas também é verdade que, ao longo de pelo menos mais de um século de convívio, essas duas tradições também se misturaram. E, do ponto de vista teórico e ideológico, estou dando só um exemplo, essa coisa de liberalismo e socialismo fundaram toda uma tradição, que é tanto de uma esquerda socialista que foi se movendo mais para uma social-democracia – e foi, portanto, se flexibilizando a princípios liberais – quanto de uma tradição liberal na origem, que também foi assimilando princípios, valores da tradição socialista e aproximou-se dela. É o caso dos sociais liberais, como o Norberto Bobbio, como o John Rawls, pra ficar entre os mais famosos. Então, o que eu procurei fazer foi identificar o que me parecem ser as zonas mais sensíveis da vida política, social, brasileira neste momento e tentar desconstruir as oposições em que essa discussão está fundada. Mas eu quase não falo sobre isso. Falo mais sobre a questão epistêmica mesmo de lógicas de grupo. Que foi, na verdade, também a origem da sua pergunta, não foi?


As manifestações de junho de 2013 começaram em São Paulo em tomaram o país. Foto: Valter Campanato/ABR

CONTINENTE Sim. E aí queria complementar: quais são as raízes dessa falta histórica de diálogo no Brasil?
FRANCISCO BOSCO Acho que são muitas e de temporalidades diversas. Tem uma que é a que se confunde com a própria origem do Estado brasileiro, que é um Estado que acumula cinco séculos de injustiças estruturais muito grandes, injustiças econômicas, sociais, raciais, de gênero. O Brasil tem um passivo gigantesco de injustiça. E me parece razoável pensar que as situações objetivas das pessoas, quando elas são muito diferentes e muito injustas entre si, tendem a produzir posições epistêmicas muito diferentes também. É irrazoável supor que um país muito desigual vá ter um debate público que parta de referências comuns, porque as referências reais são muito diferentes. Num primeiro nível, a resposta à sua pergunta seria: o diálogo no Brasil nunca foi muito possível. Porque como é que você vai fazer dialogarem um proletário completamente explorado e um industrial que é capaz de fazer lobbies pesados com governantes que vêm da sua mesma classe e com quem tem relações afetivas e que, portanto, aprovam leis que são favoráveis a estes? Em primeiro lugar, para fazer esse diálogo, teria que ter uma forte mediação do poder público. Essa mediação nunca foi suficientemente forte para transformar as condições objetivas dos envolvidos. O primeiro ponto é que, para tornar um diálogo mais possível, no sentido de partirmos de referências mais comuns, seria preciso mudar a condição objetiva das pessoas para tornar essa condição objetiva das pessoas mais comum também. Esse é o primeiro ponto.

CONTINENTE Gostaria que você trouxesse exemplos mais específicos.
FRANCISCO BOSCO Procuro fazer no livro a história de temporalidades mais recentes e de como a gente foi degradando o debate público. Então, isso tem várias camadas. Uma, por exemplo, na redemocratização, a relação que eu chamaria de relação abusiva entre PT e PSDB. Ambos os partidos se caricaturando reciprocamente. Então, pra mim, é claro que o governo do PSDB, o governo Fernando Henrique Cardoso, os dois foram mandatos que têm uma dimensão social-democrata e têm uma dimensão liberal. Foi o FHC quem tirou do papel, quem começou a transformar em realidade certos princípios de cidadania inclusiva inscritos na Carta de 88, como, por exemplo, o próprio SUS. Evidente que os governos do PT iriam aprofundar essas políticas públicas, torná-las mais extensivas. Mas essa visão que o PT nutriu durante muito tempo, de uma herança maldita não corresponde à realidade. Isso tem interesse eleitoreiro. Isso o PT fez pra poder tomar conta de um espectro da esquerda e depois da centro-esquerda, já com o PT no governo. O PT fez essa inflexão também. Foi deixando de ser um partido mais associado a uma esquerda marxista e foi fazendo o caminho para uma social-democracia e não interessava a ele que houvesse um outro partido disputando também esse lugar. Então, esse tipo de retórica é para fins eleitorais, que mistificou o debate público brasileiro e, com o tempo, sem que PT e PSDB percebessem, à medida em que os dois partidos se entregavam a esses exercícios de caricatura...

Mais tarde, já em 2014, quando o Aécio perdeu a eleição, o PSDB chafurdou numa caricatura do PT como um partido corrupto, populista de esquerda, autoritário. E o que ambos acabaram colhendo foi uma espécie de falta de credibilidade dos seus respectivos partidos junto à sociedade civil brasileira. Quando, a partir de 2013, a gente entrou nessa sequência de episódios coletivos de caráter anti-institucional, antissistêmico, e a sociedade brasileira foi entrando nessa espécie de descrença generalizada, os dois partidos acabaram se inviabilizando, porque tinham construído uma imagem recíproca muito negativa. Quem colheu esse espólio acabou sendo o Bolsonaro. Então, esse é um problema. Outro problema, eu diria que foi uma excessiva hegemonia das ideias de esquerda no debate público. Já desde antes da ditadura militar, importantes intelectuais de esquerda reconheciam que a esquerda já era dominante no debate público brasileiro. Roberto Schwarz, por exemplo, tem um texto clássico sobre isso. E quando o Brasil saiu da ditadura, a direita, com razão, foi muito associada à ditadura. Então, mesmo as ideias de direita que nada tinham a ver com a ditadura, ideias liberais ou mesmo ideias conservadoras, moderadas, como os agentes históricos liberais e conservadores, em boa parte, apoiaram a ditadura, essas ideias foram contaminadas por isso e não puderam se manifestar no debate público durante muito tempo.

Frequentei a UFRJ, fiz mestrado, doutorado, fiquei quase 10 anos na universidade e nunca estudei sequer um autor de direita. Estudei todo o marxismo ocidental. E era muito difícil para as pessoas da minha geração que não se identificavam com, digamos, a cosmovisão da esquerda, a cosmovisão progressista. Essas pessoas não conseguiam se manifestar. Isso também fez com que toda uma geração que não se identificava com a esquerda não tenha achado o seu lugar no debate público e, nesse meio tempo, quem pôde perceber isso e criou um trabalho contra isso, infelizmente, foi o Olavo de Carvalho. O personagem que conseguiu fazer convergir todas as vertentes da direita, que são muitas, são diferentes, para um ambiente que não era de intimidação, infelizmente, foi um sujeito reacionário e que, às vezes, é muito lúcido e muito inteligente, mas, nos mais das vezes, é um paranoico de marca maior. Quando a sociedade brasileira se perdeu de si nesses últimos anos e a esquerda sofreu um golpe moral e institucional, a direita que emergiu era a que vinha sendo organizada já há anos nos porões do debate público, sobretudo na internet, pelo Olavo de Carvalho. Isso também piorou muitas coisas. Quando a direita teve a oportunidade de se manifestar, quem estava preparado para fazê-lo foram esses ultraconservadores que já eram efeito da polarização, bem antes de ser causa dela também. São diversas temporalidades e diversos processos que foram corroendo as condições de possibilidade de um debate público mais funcional no Brasil.

CONTINENTE Qual é a dimensão que você dá a essa participação de Olavo de Carvalho? Porque, às vezes, ela parece superestimada e, às vezes, parece subestimada no debate público.
FRANCISCO BOSCO Não, nunca a considero superestimada. Eu o considero o intelectual público mais influente do Brasil nas últimas décadas. Não tenho a menor dúvida. O papel dele é impressionante. Ele começou como uma espécie de vox clamantis in deserto. Na verdade, teve uma atuação na imprensa brasileira, primeiro na imprensa cultural brasileira. Foi colunista da revista Bravo, depois do jornal O Globo. Já ali, ensaiava essas ideias de marxismo cultural e, já ali, aparecia a dimensão paranoica com muita clareza. Mas, ele estava fazendo isso no auge do lulismo, ele era, em larga medida, tomado como um excêntrico, um exótico, inconsequente. Porque havia uma grande desatenção de nossa parte – o “nós” aqui significa os intelectuais de esquerda e progressistas – para um ecossistema que ainda era minoritário, que era o da internet, naquele momento do Orkut, do início dos blogs. Já estava havendo uma movimentação importante ali, mas isso passava um pouco abaixo do radar da nossa percepção, de quem frequentava, participava e se orientava pelo que eu chamo de espaço público tradicional no Brasil – o espaço público da grande mídia, principalmente impressa, de televisão, veículos de massa, universidades, mercado editorial. Quem estava lidando com esse espaço público não conseguia ainda perceber que havia uma movimentação se fermentando, sobretudo na internet, nesse momento. Também em alguns think tanks de direita, sobretudo de direita liberal.

Nesse meio tempo, também, a população brasileira estava mudando um traço demográfico importante, que é aquele religioso. Dentro do cristianismo, estava havendo essa inflexão do catolicismo para o protestantismo, sobretudo neopentecostal, o que também tem consequências no Brasil. Vou fazer esses parênteses aqui: o catolicismo no Brasil funcionava politicamente de uma forma diferente. O catolicismo foi a religião oficial do Brasil até a nossa primeira constituição republicana. Portanto, o Brasil tem pouco mais de 100 anos de Estado propriamente laico. É muito pouco tempo histórico. Os protestantes, os evangélicos, vão crescendo no Brasil sob a sombra dos católicos. Então, quando tentam se firmar no país, é muito importante para eles uma atuação política que, em primeiro lugar, garanta a eles sobrevivência em relação aos católicos. Boa parte da atuação política institucional dos neopentecostais vem daí, da sua rivalidade com os católicos. Isso teve consequências importantes, porque o catolicismo no Brasil nunca precisou ter uma força institucional, porque ele era tão hegemônico, que exercia uma espécie de poder de veto prévio. Tinha uma espécie de lobby difuso, que sempre foi muito efetivo. Basta a gente lembrar, por exemplo, de campanhas recentes. Como o tema do aborto era um tema hipersensível. Fazia com que candidatos de esquerda, em geral, recuassem diante de uma defesa dos direitos reprodutivos da mulher.

Mas essa transformação rumo aos evangélicos criou também uma atuação institucional muito forte e que veio a ter papel fundamental, decisivo, nos acontecimentos recentes do Brasil, sobretudo a partir da tentativa daquele projeto, cujo espírito era absolutamente correto, né? Em 2010, no começo do governo da Dilma, de tentativa de uma formação pedagógica de crianças e adolescentes no Brasil em relação às novas consciências conectadas à sexualidade, identidade, gênero, mas que, pela força institucional evangélica, foi transformada em pânico moral: kit gay, mamadeira de piroca, tudo isso está diretamente relacionado à ascensão do conservadorismo no Brasil. E aí as pontas se encaixam, porque o reacionarismo que o Olavo de Carvalho estava fomentando estava muito alinhado a esse tipo de reacionarismo de matriz neopentecostal. Estavam acontecendo dois grandes fenômenos na sociedade brasileira. E a esquerda brasileira e os setores progressistas não foram capazes de identificar.

Considero, para voltar a responder diretamente à sua pergunta, o Olavo de Carvalho o intelectual público mais influente do Brasil nas últimas décadas. Foi quem conseguiu criar um território de liberdade para que a direita no Brasil saísse do armário. Em torno dele surgiu um verdadeiro ecossistema editorial. Surgiu na Editora Record, sob a direção do Carlos Andreazza, um intelectual conservador, que hoje em dia talvez se arrependa de ter editado o Olavo de Carvalho. Eu conheço o Andreazza e ele é um conservador que vem de uma tradição de um conservadorismo esclarecido e que, particularmente, acho que tem muito valor; filósofos como Michael Oakeshott e Roger Scruton, que o próprio Andreazza editou na Record. Mas, naquele momento, não havia essa tradição no Brasil. E quem apresentava essa tradição ao leitor brasileiro era Olavo de Carvalho. Tem muitos intelectuais, jornalistas brasileiros que foram apresentados às ideias de pensadores conservadores pelo Olavo de Carvalho. Olavo fez surgir tudo isso, um ecossistema digital, um ecossistema editorial, uma nova direita brasileira. De cara, hegemonicamente conservadora. Não dá para subestimar o papel dele.

CONTINENTE O presidente da república, que tinha ligação forte com Olavo de Carvalho, sempre repete a frase bíblica “Conheceis a verdade e ela vos libertará”. As pessoas querem realmente conhecer a verdade? Estão em busca da verdade ou de reforçar o que acreditam?
FRANCISCO BOSCO Exatamente. A verdade, dentro das religiões monoteístas que trabalham com a revelação, é fundamentalmente diferente do que nós entendemos como verdade na época moderna, nas chamadas sociedades abertas. A verdade, dentro da religião monoteísta, é uma verdade revelada pela palavra divina. É da ordem do dogma. No espaço religioso, a verdade é dogmática, ela não é passível de ser debatida, interrogada por meio de evidências, de fatos, do choque entre argumentos. Além disso, houve uma confluência entre essa mentalidade monoteísta e o que eu chamo de lógicas de grupo, que é a forma em que está estruturada, em larga medida, a conversa política no Brasil hoje, e as lógicas de grupo acabam tendem a – embora num registro secular, a princípio, não precisa estar em âmbito religioso – a produzir uma atitude epistêmica que é muito semelhante à atitude epistêmica de uma pessoa religiosa. Porque a atitude epistêmica de uma pessoa religiosa é de crença em uma verdade revelada, que, portanto, não é passível de ser criticada pelos meios que uma sociedade aberta tem para exercer a crítica.


Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) nas fotos oficiais da presidência da República.
Imagem: Divulgação


O indivíduo, quando está fazendo parte de uma lógica de grupo, se encontra em uma situação inconsciente em que acaba se levando para a mesma atitude epistêmica, porque agora ele passa a considerar inconscientemente que a verdade do grupo não pode ser questionada. Então, dentro de uma lógica de grupo, embora a verdade não tenha o caráter da palavra divina revelada, ela tende a assumir um caráter dogmático, porque a pessoa que está dentro dessa lógica recebe muitos benefícios psico-afetivos por fazer parte do grupo. Esse é um fenômeno que todos nós experimentamos. Todos nós, em alguma medida e em diferentes zonas da vida social. Por exemplo, futebol. Eu sou flamenguista. Tenho um grupo de WhatsApp de flamenguistas. É muito bom aquilo, porque todo mundo tem o mesmo interesse, tem os mesmos desejos. Se entrar ali um tricolor, parte de uma outra premissa, ele vai ser expulso do grupo, porque a verdade primordial de que devemos torcer para o Flamengo não pode ser questionada.

Ora, se você instaura o mesmo mecanismo de grupo em política, a consequência disso é que determinadas premissas também não podem ser questionadas. E se entra alguém para questioná-las, também será expurgado. E o que está acontecendo, em grande parte, no Brasil, é que o debate público está estruturado em lógicas de grupo. Com essa infelicidade complementar de que o Brasil é um país pouco secularizado. É um país muito religioso. Você junta as duas forças. Já tem uma tendência de grande parte da população a verdades inquestionáveis de origem religiosa. Agora uma outra parte da população tende a verdades inquestionáveis por lógicas de grupo. Então, tudo isso está tornando o debate público no Brasil muito difícil de cumprir sua função. E qual é a sua função? Justamente a de que verdades prévias, determinados consensos, podem e devem ser questionados, à medida que novas evidências, novas estatísticas, novos fatos, novos argumentos vão surgindo. É só assim que você tem um debate público funcional, saudável. A pré-condição para um debate público funcional é que os seus participantes estejam cognitivamente abertos para se transformarem. No Brasil de hoje, os participantes do debate público, em larga medida, não estão cognitivamente abertos a se transformarem, porque eles estão afetivamente comprometidos pela sua participação em lógica de grupo.

CONTINENTE É o que você chama, no livro, de política afetiva…
FRANCISCO BOSCO Isso é, na verdade, a dimensão afetiva ou imaginária da psicanálise lacaniana, que fala muito da dimensão imaginária, que é a dimensão do narcisismo. Essas dimensões que são inconscientes, que têm a ver com o narcisismo, com o nosso ego, com as identificações que a gente faz ao longo da vida. Tudo isso é muito mais forte do que a dimensão racional, que é a que, entretanto, deveria, pelo menos, em maior medida, orientar as escolhas políticas. Então, no mundo ideal, as nossas escolhas políticas deveriam ser feitas pela análise de políticas públicas. Como é que essas políticas públicas funcionam? Quais são? Quais as evidências que a gente já tem historicamente? A privatização é um tema aleatório que peguei aqui. Como se faz para construir uma posição? Hoje em dia, já é abundante a história da privatização, podemos pegar os exemplos do Brasil. Qual é a história das privatizações no Brasil? Como é que se deu? O que funcionou? O que não funcionou? E se chegaria a uma conclusão por meio das evidências que se dispõe. Mas, em lógicas de grupo, funciona assim: Você é de esquerda? Então, você é contra a privatização.Você é de direita? Você é a favor de privatizações. Não estuda nada, simplesmente é a favor da premissa básica e elementar de que o estado deve ser um estado mínimo que deve atuar em pouquíssimas áreas e todo o resto deve funcionar melhor sob o comando da iniciativa privada. Isso basta para que você tenha uma posição, porque o seu grupo pensa assim e você quer agradar o seu grupo. E hoje em dia, esse imperativo de agradar ao grupo é muito importante para esta conversa.

A lógica de grupo está muito forte, basicamente por causa da internet, das redes sociais. Antes, no espaço público tradicional, o que você tinha? Tinha o seu círculo de amigos, em que os afetos eram muito mais garantidos independentemente de posições políticas. Porque, na vida real das relações afetivas reais, presenciais, a posição política do outro, do amigo, ela é uma das dimensões que faz o indivíduo. Agora, dentro das redes sociais da internet, você não conhece profundamente o outro, você não conhece a família do outro. Você não tem memórias em comum com o outro.

Basicamente, o que você conhece são as posições políticas dos outros. Hoje em dia, o outro fica reduzido nessa posição. Então, o que está acontecendo é que as relações se fazem e se desfazem a partir das posições políticas. É o que dá muito medo a uma pessoa. O ambiente digital é muito infenso, ele dificulta muito a produção do dissenso, por conta da intimidação. No espaço público tradicional, o que você tinha? Se você escrevesse um livro, você poderia ser atacado na imprensa. Certamente, sempre foi desagradável. Ninguém nunca gostou de receber críticas, né? Ser criticado sempre foi um preço narcísico que todo intelectual público paga. Mas esse preço era muito menor, porque dificilmente formava uma corrente de opinião onipresente contra você. O espaço público tradicional é mais separado da esfera da vida particular. Então você tinha a sua vida particular com as suas relações eletivas de afeição, família, amigos etc. E que, como eu falei, nessas relações cada sujeito é feito de muitas dimensões. E a vida pública é uma dessas dimensões. No ambiente digital, essa separação se perdeu. Tudo virou uma espécie de amálgama, de coalescência entre vida pública, vida afetiva, intimidade, vida privada, relações pessoais, relações impessoais. Essas diferenças se perderam muito. Então, a participação pública está dentro de um registro muito perigoso de intimidação. Você pode ser massacrado, como a gente tem visto. A chamada cultura do cancelamento é precisamente isso. Ela só é possível dentro de um ambiente em que não há mais separação de esfera pública e esfera privada. E um passo em falso nesse ambiente pode custar a uma pessoa a perda da sua vida afetiva total. Você é completamente ostracizado. Todo mundo vai saber que aquilo aconteceu, e você vai ser lançado num limbo.

Assim, está todo mundo com medo de pensar, está todo mundo muito intimidado e isso acaba favorecendo também as lógicas de grupo, as pessoas se sentem mais preservadas, protegidas, pensando o que o grupo está pensando. Então a participação política está sendo pautada por esse ambiente em que é muito mais fácil você reproduzir o que o grupo pensa. Mas a consequência disso é que a qualidade da interpretação da realidade caiu vertiginosamente. Basta pensar que, em boa medida, a gente está vivendo, sobretudo da parte da direita, boa parte do debate que se dá na direita hegemônica ultraconservadora, é um debate que não tem nada a ver com a realidade. É um troço assim: as pessoas estão debatendo comunismo, que, a rigor, é uma coisa que não existe institucionalmente no Brasil. Os partidos que afirmam o marxismo, o leninismo no Brasil, são partidos residuais. Em geral, não têm sequer um representante institucional, às vezes tem um vereador; não tem existência institucional o comunismo no Brasil. Tem uma existência, uma neoexistência digital agora, mas que, em parte, é por convicção de jovens intelectuais que são comunistas mesmo e, em parte, por demagogia de grupo. Boa parte do debate brasileiro, sobretudo na direita, é mistificado a ponto de ser um delírio. Está tratando de coisas que não existem. Tudo isso tem a ver com o que eu chamo de novo espaço público no ambiente digital.

CONTINENTE No livro, você usa a frase do filósofo Paulo Arantes:“Intelectual é aquele que não adere”. Gostaria que você discorresse sobre ela e o comportamento dos intelectuais nas redes sociais no Brasil.
FRANCISCO BOSCO Poderia começar fazendo uma diferença que me parece importante entre os papéis do intelectual público e o papel da militância. Ambos são importantes na vida política, mas são diferentes. O militante é aquele que tenta transformar em ação uma determinada ideia, uma linha política ou uma proposta de política pública. O papel da militância é sempre esse de levar uma ideia à ação. E, para isso, precisa de organização e coesão. Em nome disso, deve ser necessário sacrificar certa complexidade, certa disputa interna que pode haver no interior de uma linha macro de pensamento que, entretanto, pode conhecer divergências. Mas a militância não pode se deixar orientar pela primazia da divergência, da complexidade, da heterogeneidade. Faz parte do papel da militância um certo sacrifício da complexidade, porque só de forma coesa você consegue fazer as coisas virarem realidade. O papel do intelectual público é diferente. É até o contrário. É mais o de instaurar complexidade na vida política social, de forma a não permitir que certos movimentos se tornem demasiadamente coesos a ponto de funcionarem como forças de intimidação. O papel do intelectual público é o de instilar complexidade. O papel do militante é de transformar ideias em realidade, às expensas, muitas vezes, da complexidade. As duas coisas são importantes. Problema: de novo esses papéis têm se confundido e uma das maneiras de entender isso é voltando à frase do Paulo Arantes que você citou: “Intelectual público é aquele que não adere”. Eu diria que, ao longo do século XX, a grande tentação dos intelectuais era o poder, o poder do Estado. Tem uma longa tradição de fortuna crítica sobre esse problema: como é que os intelectuais traíram o seu compromisso com o pensamento, o seu compromisso com a verdade, o seu compromisso com a realidade, em nome do poder, de participarem de um determinado governo que havia se tornado detentor do poder do Estado.

Nos últimos anos, a tentação dos intelectuais mudou. Já não é mais tanto o poder do Estado. Eu diria que agora é, de novo, o pertencimento à lógica de grupo. Então, tem sido muito comum ver intelectuais, sobretudo quando estão em ação em redes digitais. E há uma perda de complexidade notável nas suas atuações. Às vezes, você vê um intelectual que, em livro, é sofisticado, complexo, com o pensamento nuançado e, vai pras redes sociais e vira uma espécie de bobo lacrador, para nitidamente cair na tentação de pertencimento do grupo. Com isso, esses papéis do intelectual público e do militante se confundem e a dimensão do intelectual público fica esvaziada. Você perde um aspecto importante da vida política, que é o de resguardar a capacidade crítica, mesmo no interior de um certo consenso político. 

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