Entremez

A pergunta do Anjo

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

05 de Outubro de 2021

Leda Alves no Cinema São Luiz, no lançamento do filme 'Lua nova do penar' (2016)

Leda Alves no Cinema São Luiz, no lançamento do filme 'Lua nova do penar' (2016)

Foto Jan Ribeiro/Secult PE-Fundarpe

Suponho que a mesa de Leda Alves ficava ao lado do birô de César Leal. Não lembro se José Carlos Targino, poeta da Geração 65, tinha mesa em alguma sala, nem sei qual era o cargo do sociólogo Sebastião Vila Nova. Muitos trabalhavam ou circulavam pelo Departamento de Extensão Cultural (DEC) da Universidade Federal de Pernambuco, dirigido por Ariano Suassuna, no Recife, na década de 1970. 

Era comum avistar-se Francisco Brennand e sua esposa Deborah, Gilvan Samico, Aluísio Braga, Janice Japiassu, Marcus Accioly, Maximiano Campos, pintores, escultores, cordelistas, compositores, escritores, todos querendo conversar e saber novidades. Hermilo Borba Filho, que morreu com apenas 58 anos, vivia doente, mas era citado e lembrado por suas encenações no Teatro Popular do Nordeste e pela extensa produção como ficcionista. 

Ângelo Monteiro, poeta e aluno de filosofia, companheiro na Casa do Estudante, foi quem me introduziu nesse mundo. Depois se tornaria funcionário do DEC e, mais adiante, professor de Estética, a disciplina do seu mestre. Ângelo contou-me que ele e Ariano se dirigiam à Reitoria, no tempo em que o campus ainda era coberto de árvores, arbustos e capim, quando pisou e matou uma cobra. Ariano ordenou que se ajoelhasse e consagrou-o Cavaleiro das Serpentes. 

Naqueles anos, as pessoas buscavam camuflagens à repressão militar do Golpe de 1964. Ariano lia trechos do Romance d’A Pedra do Reino para um público deslumbrado e grato. Brincalhão e sedutor no papel de palhaço de circo e Quixote, distribuía títulos de nobreza entre os amigos. Ângelo Monteiro tornou-se Imperador das Ilhas Magas (ilhas bem magras, pois o poeta vivia na mais completa penúria), Marquês de Maribranca e Príncipe de Marilenda. 

Leda Alves, esposa de Hermilo, de formação brechtiana e atenta ao caráter popular da arte e ao realismo, divertia-se com as loucuras, perversões e delírios. A ditadura estendia o braço pesado e sombrio sobre todos nós, éramos vigiados por um departamento de investigação e informação, que funcionava na própria Reitoria. Há nomes que prefiro não lembrar nem dizer, pessoas medíocres que nos amedrontavam com seus podres poderes. Todas esquecidas hoje, mas precisariam ser desempoeiradas e expostas, pela semelhança com o tempo de sombras que novamente atravessamos. 

Foi Leda quem me apresentou aos atores do TPN, Lúcia Neuenschwander, Lúcio Lombardi, Maurício Carvalheira, Germano Haiut, Carlos Reis e outros que emprestaram suas vozes para o filme Lua Cambará, um longa-metragem na bitola super-8 que realizei com Assis Lima, Horácio Carelli Mendes e vários malucos, nos anos de 1975, 76 e 77. Convidei Leda para dar voz à protagonista, mas ela não aceitou pela proximidade da morte de Hermilo. Dublar era um trabalho cansativo, demorado, e os artistas não recebiam pagamento. Quanta generosidade! 

O filme fortaleceu meus vínculos com Leda e Ariano e nos aproximou de Davi Arrigucci Jr. e Antonio Cândido. A trilha foi composta por Antonio Madureira, o aclamado compositor armorial. Ficamos amigos e depois parceiros do Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim de Carnaval e O pavão misterioso. Antonio Nóbrega entrou em várias dessas parcerias.

Leda escancarava as portas aos brinquedos populares de Recife, Olinda e Zona da Mata. Rainha e mãe dos brincantes, tinha a mesma garra e empenho de Hermilo em defesa da Cultura Popular. 

No aniversário em que Mestre Salustiano brincou doze horas com o seu cavalo marinho, adoeceu pelo esforço e precisou implantar um marca-passo cardíaco, eu estava presente. Leda foi homenageada. Quando trabalhava na empresa de publicidade Grupo Nove, recorríamos a ela, pedindo patrocínio. Em oito anos como secretária de Cultura do Recife, o espetáculo Baile do Menino Deus, do Marco Zero, teve nela uma grande defensora e incentivadora. Nos anos em que ocupei a presidência do Centro Apolo Hermilo, Leda era conselheira. 

Mas há um fato marcante e definitivo em nossa amizade de 50 anos. O espetáculo que inaugurou o novo teatro Hermilo Borba Filho se chamava Auto das portas do céu. Criado em parceria com Assis Lima e Everardo Norões, foi dirigido por mim e Elisa Toledo Todd. O maestro José Renato Accioly assinava a direção musical. Pareceu-me a mais bela realização de minha vida. Concebido para um público de apenas cem pessoas por apresentação, quatro dias na semana, ficamos pouco mais de cinco meses em cartaz e viajamos algumas vezes. A montagem ocupou-nos sete meses com ensaios e preparação do elenco. 

Quando estivemos à frente do Apolo Hermilo, Elisa Toledo e eu trouxemos ao Recife artistas e formadores de todo o mundo, nomes como Roberta Carreri, do Odin Teatret, Eugenio Barba e até Pina Bausch – numa rápida passagem –, e muita gente da cena brasileira, dos espetáculos populares e do mundo das artes. A experiência durou três anos e se desfez por motivos que um dia revelarei. 

Comemoramos a estreia do Auto das portas do céu com um coquetel. Em meio à euforia pelo êxito alcançado, recolhi-me ao canto mais reservado do teatro para degustar a emoção. Bebia uma taça d’água e pensava no meu trabalho de médico, no dia seguinte bem cedo. Uma senhora elegante e perfumada, com um belo colar de âmbar, sentou-se ao meu lado. 

– Meu filho, que espetáculo tão lindo, falou comovida. Pena Hermilo não ser vivo.  Ele iria gostar muito. 

Não consigo lembrar o que falei, nem se falei. Mas nunca esqueci o que a mulher disse em seguida.

– Meu filho, eu vejo seu trabalho em parceria, mas só enxergo você. Quando vai ter coragem de assumir-se sozinho? 

Tomei um susto, quase caio da cadeira. 

Leda Alves tem esse jeito franco de nos revelar verdades.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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