No aniversário em que Mestre Salustiano brincou doze horas com o seu cavalo marinho, adoeceu pelo esforço e precisou implantar um marca-passo cardíaco, eu estava presente. Leda foi homenageada. Quando trabalhava na empresa de publicidade Grupo Nove, recorríamos a ela, pedindo patrocínio. Em oito anos como secretária de Cultura do Recife, o espetáculo Baile do Menino Deus, do Marco Zero, teve nela uma grande defensora e incentivadora. Nos anos em que ocupei a presidência do Centro Apolo Hermilo, Leda era conselheira.
Mas há um fato marcante e definitivo em nossa amizade de 50 anos. O espetáculo que inaugurou o novo teatro Hermilo Borba Filho se chamava Auto das portas do céu. Criado em parceria com Assis Lima e Everardo Norões, foi dirigido por mim e Elisa Toledo Todd. O maestro José Renato Accioly assinava a direção musical. Pareceu-me a mais bela realização de minha vida. Concebido para um público de apenas cem pessoas por apresentação, quatro dias na semana, ficamos pouco mais de cinco meses em cartaz e viajamos algumas vezes. A montagem ocupou-nos sete meses com ensaios e preparação do elenco.
Quando estivemos à frente do Apolo Hermilo, Elisa Toledo e eu trouxemos ao Recife artistas e formadores de todo o mundo, nomes como Roberta Carreri, do Odin Teatret, Eugenio Barba e até Pina Bausch – numa rápida passagem –, e muita gente da cena brasileira, dos espetáculos populares e do mundo das artes. A experiência durou três anos e se desfez por motivos que um dia revelarei.
Comemoramos a estreia do Auto das portas do céu com um coquetel. Em meio à euforia pelo êxito alcançado, recolhi-me ao canto mais reservado do teatro para degustar a emoção. Bebia uma taça d’água e pensava no meu trabalho de médico, no dia seguinte bem cedo. Uma senhora elegante e perfumada, com um belo colar de âmbar, sentou-se ao meu lado.
– Meu filho, que espetáculo tão lindo, falou comovida. Pena Hermilo não ser vivo. Ele iria gostar muito.
Não consigo lembrar o que falei, nem se falei. Mas nunca esqueci o que a mulher disse em seguida.
– Meu filho, eu vejo seu trabalho em parceria, mas só enxergo você. Quando vai ter coragem de assumir-se sozinho?
Tomei um susto, quase caio da cadeira.
Leda Alves tem esse jeito franco de nos revelar verdades.
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