Entremez

São João dormiu, sua festa não viu

(acerca das origens da mais popular festa nordestina)

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

07 de Julho de 2023

ILUSTRAÇÃO VITO SANTIAGO

ILUSTRAÇÃO VITO SANTIAGO

[conteúdo exclusivo Continente Online]


Na cidade de Barbalha, no Ceará, ainda celebram Antonio, um santo cristão franciscano. A festa é cheia de reminiscências pagãs aos cultos celtas e à divindade asiática e grega Dioniso. Porém o mais fantástico são os resquícios da adoração ao falo.

Alguns dias antes do início das novenas, os homens da região do Cariri sobem a chapada do Araripe, onde sobrevive uma reserva de Mata Atlântica, e buscam a maior e mais aprumada das árvores para servir de mastro à bandeira do santo. Depois cortam o tronco rente ao chão e o podam de suas galhas.

Chega o dia da buscada do pau da bandeira, uma típica festa pagã. Devotos e brincantes sobem a serra na companhia de músicos, geralmente uma banda cabaçal formada por dois pífaros, uma zabumba, uma caixa e pratos. Enquanto alguns homens suam para carregar o pesado tronco nos ombros, outros dançam em volta do mastro, cantam, bebem aguardente, banham-se nas nascentes e nas poças d’água do caminho. Garrafas de cachaça circulam de boca em boca, a embriaguez cresce.

Quase caindo de bêbadas, as pessoas do cortejo chegam em frente à matriz de Santo Antonio, onde foi cavado um buraco profundo, e nele enfiam o pau. Antes, as mulheres solteiras e viúvas se sentam no mastro para arranjarem casamento. Fixado o pau no solo, em meio aos vivas e estrondos de fogos, hasteia-se a bandeira que ficará balançando no alto, durante os nove dias que durarem a festa. No interior da igreja, acendem-se velas, reza-se, cantam-se benditos. Do lado de fora, tem música profana, bebedeira e danças. 

A fogueira de São João foi incorporada das festas célticas, quando era acesa no cume dos morros e celebrava-se o amor, o sexo e o casamento. Na Europa, o calendário junino corresponde ao solstício de verão, com o dia mais longo e a noite mais curta. No hemisfério Sul, acontece no solstício de inverno, o dia mais curto e a noite mais longa. Para os celtas o sol era o próprio fogo gerador da vida, pois transformava as coisas vivas através de suas chamas.

Na cultura popular brasileira, sobretudo no Nordeste, as festas juninas têm lugar especial. Além de valorizarem as tradições locais do país, também revelam aspectos históricos, religiosos e mitológicos. Elas seguem o calendário litúrgico da Igreja Católica que, no processo de assimilação dos antigos cultos pagãos europeus – na transição da Idade Antiga à Idade Média –, acabou por substituir os rituais dedicados aos deuses médio-orientais, gregos, romanos e nórdicos por festas aos santos cristãos.

Na segunda quinzena do mês de junho, no solstício de verão na Europa, acontecia o culto a deuses da natureza, das plantações e colheitas. Um deles era Adônis. Segundo o mito grego, ele foi disputado por Afrodite, deusa do amor, e Perséfone, deusa do Hades. A disputa foi apaziguada por Zeus, que determinou que Adônis passaria metade do ano com Afrodite, no mundo superior, à luz do Sol, e a outra metade com Perséfone, no mundo inferior, nas trevas.

A disputa entre deusas acabou sendo associada aos ciclos naturais da vegetação, que morre no inverno e renasce na primavera e verão. O culto a Adônis, cujo dia era 24 de junho, tinha por objetivo a celebração dessa renovação, da “boa-nova” pelo renascer da natureza. O cristianismo assimilou essa liturgia, substituindo Adônis por São João Batista. Segundo a tradição cristã, São João anunciou a “boa-nova” da vinda de Cristo, filho de Deus, salvador da humanidade, que “renovaria todas as coisas”. 

Foi também este santo quem batizou o Cristo no rio Jordão. Da história de São João, a cultura popular europeia retirou vários símbolos, que passaram a se mesclar com os tradicionais ritos de colheita, remanescentes do culto a Adônis. Um dos símbolos mais importantes é a fogueira.

No Brasil, os africanos e seus descendentes se viram quase obrigados, por necessidade de sobrevivência religiosa e cultural, a sincretizar os seus orixás aos santos da Igreja Católica.

Numa noite chuvosa de 23 de junho, véspera de São João, um cortejo de homens e mulheres vestidos de branco deixa a casa do Sítio de Pai Adão e anda pelas ruas do bairro popular de Água Fria, no Recife. Para trás ficou o peji, o altar com os assentamentos dos orixás, os ilús usados nos toques, velas acesas e quartinhas. Ao fundo do sítio, a gameleira gigantesca, Iroco, cuja semente foi trazida pela gente das nações escravizadas, olha os devotos.

Eles dão algumas voltas pelas ruas com fogueiras acesas, entoam benditos católicos e, apressados, retornam à casa, fecham as portas e janelas e começam um novo culto, desta vez oferecido a Xangô. São tempos difíceis na década de 1930, quando os terreiros de candomblé do Recife foram invadidos, tiveram os instrumentos rituais confiscados, pais e mães de santo humilhados e presos. Tempo bastante estranho, não muito diferente de agora.

Com as portas bem trancadas, as frestas das janelas vedadas com panos, eles tocam os ilús e celebram Xangô, o santo da Casa.

Mas quem é o São João sincretizado com Xangô? Vocês o conhecem? Dizem que também é o ascético Shiva do hinduísmo, ou o orgiástico Dioniso dos gregos, divindade do vinho, da embriaguez e da possessão. Mas serão mesmo tantos os São João que nós aprendemos a celebrar com festa? Ou ele foi transformado ao nosso gosto e vontade?

Os padres trouxeram o catolicismo e suas doutrinas ao Brasil. O processo de conversão era semelhante ao usado na Europa, Ásia e África, sincretizar os santos do cristianismo às entidades de culto local. Os naturais da terra não tinham um panteão semelhante ao dos católicos, eram animistas, reverenciadores da natureza, da lua, do sol, dos trovões. Temiam assombrações, o poder do sobrenatural, de animais e pássaros. Mesmo assim, os catequistas conseguiram estabelecer aproximações entre mundos tão desiguais e iniciar os índios na adoração de seus mitos.

O São João indígena foi celebrado com fogueiras, corridas, saltos, comidas, um costume que permaneceu no sertão, no preparo da mandioca, dos bolos e aluás, semelhantes ao caxiri.

Mas o São João de adoração do povo nordestino é bem diferente do São João anacoreta, o que profetizava a vinda de Jesus, o Batista, que teve a cabeça degolada. Esse é bravo e valente, mais próximo do orixá Xangô. O das festas juninas trata-se de uma criança, São Joãozinho Menino, São João do Carneirinho, semelhante ao deus Krishina dos indianos, eternamente tocando flauta e tangendo rebanhos pelo sertão, vez por outra descansando na beira de algum riacho.

Os costumes nordestinos geravam a poesia, a poesia os hábitos. As festas de Santo Antonio, São João e São Pedro se alimentavam dos ciclos agrários e pastoris, que por sua vez se alimentavam dos ciclos das festas, gerando mais poesia e se eternizando.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente.

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