As mulheres se levantam às três horas da madrugada, ao primeiro cantar do galo. Nunca dormem antes das oito horas da noite, pois há muito trabalho a fazer. Mal se acordam, lavam o rosto e as mãos, prendem os cabelos, vestem roupa limpa e começam a jornada sem descanso, pois há galinhas pondo ovos, vacas dando leite, algodão para fiar e tecer, panos estendidos nos varais precisando ser engomados.
São elas que emendam as histórias ouvidas nos terreiros, nos roçados e na cozinha e as transformam em outras narrativas para onde confluem saberes do mundo, terminam sempre com uma nota de indefinição, se prolongando até as fronteiras do mistério, infinitas e misturadas como os temperos nas panelas de carne e feijão, que cozinham e depuram ao calor do fogo. As narradoras escutam, guardam, ruminam semelhantes às vacas no curral e depois passam adiante. Preservam a essência dos enredos fugidios, instáveis, ambíguos ao ponto da incoerência, porém vivos e eternos.
A cozinha é a colmeia de onde os enxames voam para todos os lados, criando a vida social, organizando o trabalho, zelando pelo bem-estar da família.
Se havia festa, três dias antes os homens tinham arrancado as mandiocas, lavado para tirar a areia e deixado de molho em grandes potes de barro.
Depois que as manivas apodreceram, descascaram e trouxeram para as mulheres findarem o trabalho. Agora peneiram a massa em urupemas de palha, tecidas por elas mesmas com as folhas da carnaúba, depois lavam em sacos de algodão, espremem e botam para escorrer dependurados. Quando a puba está bem pastosa, preparam bolinhos achatados nas palmas das mãos, e deixam secar ao sol, em jiraus ou nos telhados baixos dos alpendres. Depois de secos, eles se tornam as carimãs, usadas nos mingaus, papas e bolos. Duram muito tempo, se guarda em malas de couro, forradas com panos limpos, lavados e corados ao sol.
Se há milho verde, colhem-se as espigas no ponto certo, nem muito verdes, nem maduras demais, pois não é para fazer a pamonha que foram escolhidas. A canjica fica pronta e é arrumada em travessas.
As mulheres mais jovens dessoram a coalhada dos queijos de coalho prensados, para se tornarem resistentes e duradouros. Deixam amadurecer como os parmesãos em tábuas penduradas por cordas dos caibros altos. São as queijeiras. Para fazerem os queijos, largam o tear onde tecem madapolões, redes e cobertas. Outra mulher arruma num alguidar de barro o almoço dos homens que trabalham nos roçados: cuscuz de milho, feijão, toucinho e carne. Alguns pedaços de charque são espalhados dentro do farnel, para ver quem tem a sorte de achar.
Lá na roça, os trabalhadores se sentam em torno do alguidar e comem todos ao mesmo tempo, enfiam colheres de pau na vasilha ou servem-se com as próprias mãos. Às vezes ganham rapadura e queijo de sobremesa, um manjar do céu. Mas garantido mesmo é a água no gargalo da cabaça.
Comunga-se o trabalho e o pão nosso de cada dia.
O sertão não obedecia às leis do senhor crucificado no altar, onde o padre celebrava missa. O sertão tinha suas próprias leis. Nele, o tempo e a matéria trabalhavam a favor das misturas, do improvável, mesmo que no futuro essa miscigenação fosse condenada pelos homens de ciência e poder, pelos eugenistas, como degradante e enfraquecedora da espécie humana.