Curtas

Brasil futuro: As formas da democracia

Exposição em cartaz, até 26 de fevereiro, no Museu Nacional da República, em Brasília, busca celebrar a democracia e suas possibilidades de tradução artística

TEXTO Luciana Veras

01 de Fevereiro de 2023

Ao centro, 'A queda do céu e a mãe de todas as lutas' (2022), de Daiara Tukano

Ao centro, 'A queda do céu e a mãe de todas as lutas' (2022), de Daiara Tukano

Imagem Marina Gadelha/ASCOM SECEC DF

[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]

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“Ao longo da nossa história, o Brasil já se perdeu e já se encontrou várias vezes.” Esta frase, dita pela historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz em 2 de janeiro, horas após a abertura da exposição Brasil futuro: As formas da democracia, no Museu Nacional da República – MuN, em Brasília, pode ser tomada com uma epígrafe daquele conjunto de mais de 200 obras de 104 artistas reunidas na instituição. Não somente da exposição em si – montada em apenas 18 dias para ocupar a espaço museológico arquitetado por Oscar Niemeyer e localizado, quase como uma nave espacial com seu formato insólito, no início da Esplanada dos Ministérios –, mas também da posse da nova ministra da Cultura Margareth Menezes (ocorrida no mesmo dia e no mesmo local em que Brasil futuro fora descortinada ao público), bem como da própria refundação do Ministério da Cultura – MinC.

Porque os três núcleos expositivos – Retomar símbolos, Decolonialidade e Somos nós – buscam celebrar, justamente, a democracia e suas possibilidades de tradução artística. As veredas de Brasil futuro evidenciam obras que radiografam tensões, contradições e emoções deste país gigantesco e complexo que chegou ao final de 2022 sob o signo da esperança, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em uma turbulenta eleição presidencial. Sejam esculturas, objetos ou símbolos recentes, como A queda do céu e a mãe de todas as lutas, quadro de Daiara Tukano pintado in loco, concebido especialmente para a exposição; ou obras já antigas, como Orixás, a imponente tela pintada por Djanira em 1962, retirada do Salão Nobre do Palácio do Planalto em dezembro de 2019 por retratar a religiosidade de matriz africana e as orixás femininas Iansã, Iemanjá e Nanã (rasurada com um furo de caneta durante a administração do ex-presidente Jair Bolsonaro, como Lilia Schwarcz contou ao público na cerimônia de posse de Margareth Menezes).


Em O moedor (2021), Adriana Varejão propõe uma releitura do verde e amarelo da bandeira brasileira. Foto: Marina Gadelha/Ascom Secec DF

Há ainda peças enormes e icônicas como O moedor, uma coluna de azulejos feita em óleo sobre alumínio e poliuretano em que o verde e o amarelo da bandeira nacional se recompõem em padrões geométricos, criada por Adriana Varejão em 2021. E diversas releituras do “lábaro que ostentas estrelado”, com artistas de vários estados e em suportes distintos a repensar esse símbolo-chave das disputas de narrativa na contemporaneidade brasileira.

Francisco Costa, por exemplo, propõe uma Bandeyra (2019) rosa e com o arco-íris do movimento LGBTQIAP+ substituindo a faixa “Ordem e progresso”. Já Marilá Dardot nos lembra a idiossincrasia conservadora e misógina da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, em abril de 2016, com seu tríptico A República, destacado no ensaio visual estampado na capa desta Continente na edição #261, de setembro passado; e Thiago Honório, Antonio Dias, Emmanuel Nassar e Bruno Baptistelli convidam a uma expansão do olhar para “o verde-louro desta flâmula”, ora trocando as cores, ora subvertendo os materiais, ora conclamando a nação para, em vez de ordenar e progredir, caminhar com todos os seus artistas – homens, mulheres, brancos, negros, indígenas, LGBTQIAP+ e periféricos – e com “liberdade e amizade”, nas palavras de Nassar.

Cerca de metade das obras pertence aos acervos do MuN, do Museu de Arte de Brasília (MAB) e da Presidência da República. Quando enfeixadas sob um desejo curatorial de ratificar a cultura como elemento crucial da identidade de um país, ganham e reverberam novos sentidos. “A cultura não é produto, a cultura produz valores, conhecimentos e afetos”, sintetizou Lilia, cocuradora da mostra ao lado do arquiteto Rogério Carvalho, do ator Paulo Vieira e de Márcio Tavares, ex-secretário nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores e atual secretário-executivo do MinC.

E a cultura “somos nós”, Brasil futuro ratifica, apontando para um “nós” que traz a iconoclastia de Nelson Leirner e Lourival Cuquinha, a delicadeza inventiva de Rivane Neuenschwander e Leonilson, a força de Jaime Lauriano e Thiago Martins de Melo, a expressividade de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (presentes com Fala da terra, xilogravura em três partes, de 2022) e José Bezerra, a polifonia de Bené Fonteles e Paulo Nazareth e a convergência entre passado, presente e porvir manifestada em criações de Anita Malfattti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Mauro Restiffe, Cildo Meirelles, Leda Catunda, Ernesto Neto, Rosana Paulino, Aline Albuquerque e Dalton Paula.


O quadro Orixás (1962), de Djanira, foi retirado do salão nobre do Palácio do Planalto em 2019. Foto: Marina Gadelha/Ascom Secec DF

Outro eixo fundamental da exposição, aberta até o próximo 26 de fevereiro, é a paisagem erigida da e na arte dos povos originários. Gustavo Caboco, Jaider Esbell, Aslan Pankararu, Denilson Baniwa, Ailton Krenak e Edgar Kanaykô Xakriabá representam múltiplas etnias e um avanço inédito. “Essa exposição é muito importante para a arte indígena, porque é a primeira vez que estamos dentro do Museu da República, desse espaço em Brasília. Claro que já teve várias mostras no Memorial dos Povos Indígenas e exposições no Centro Cultural Banco do Brasil, mas o espaço do MuN representa outro tipo de diálogo com a sociedade”, pontua Daiara Tukano. Como ela mesma ressaltou nas frases que circundam o cromatismo magnético de A queda do céu e a mãe de todas as lutas: “A floresta que segura o céu já disse: democracia é democracia em todas as terras indígenas. Terra é mãe de todos os entes”.

Para Daiara, Brasil futuro: As formas da democracia e as projeções das obras na fachada do Congresso Nacional, ocorridas no Festival do Futuro, parte festiva da posse do presidente Lula, “marcam uma chegada indelével dentro de um espaço de diálogo e notoriedade que é essencial no campo das artes visuais”. “É uma representação de que estamos lá por nós mesmos. Em 2022, quando estávamos comemorando e rememorando o centenário da Semana de Arte Moderna, as exposições de arte indígena eram muito marcadas pelos contextos dos outros, de brancos acadêmicos, em relação a outros movimentos artísticos na história da arte brasileira. A partir de agora, estamos ocupando esse lugar por nossas histórias e pela complexidade das nossas culturas e vivências como seres humanos e artistas”, disse, em conversa com a Continente.

Três dias após a invasão da Praça dos Três Poderes e a depredação do Congresso, do Planalto e da sede do Supremo Tribunal Federal em atos terroristas, ocasionando o fechamento preventivo e temporário do MuN e da exposição, Sônia Guajajara assumiu o Ministério dos Povos Indígenas, demarcando um recomeçar na História brasileira. “Quando Sônia foi empossada, ela disse que a terra é a mãe de todas as lutas. Essa é uma frase que não é só dela, mas das mulheres indígenas, e marca essa relação com o mundo, do luto, da luta e da reconstrução através das transformações que compartilhamos”, arremata Daiara Tukano. Não há transformação possível sem arte, como atesta Brasil futuro: As formas da democracia.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

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