Porque os três núcleos expositivos – Retomar símbolos, Decolonialidade e Somos nós – buscam celebrar, justamente, a democracia e suas possibilidades de tradução artística. As veredas de Brasil futuro evidenciam obras que radiografam tensões, contradições e emoções deste país gigantesco e complexo que chegou ao final de 2022 sob o signo da esperança, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em uma turbulenta eleição presidencial. Sejam esculturas, objetos ou símbolos recentes, como A queda do céu e a mãe de todas as lutas, quadro de Daiara Tukano pintado in loco, concebido especialmente para a exposição; ou obras já antigas, como Orixás, a imponente tela pintada por Djanira em 1962, retirada do Salão Nobre do Palácio do Planalto em dezembro de 2019 por retratar a religiosidade de matriz africana e as orixás femininas Iansã, Iemanjá e Nanã (rasurada com um furo de caneta durante a administração do ex-presidente Jair Bolsonaro, como Lilia Schwarcz contou ao público na cerimônia de posse de Margareth Menezes).
Em O moedor (2021), Adriana Varejão propõe uma releitura do verde e amarelo da bandeira brasileira. Foto: Marina Gadelha/Ascom Secec DF
Há ainda peças enormes e icônicas como O moedor, uma coluna de azulejos feita em óleo sobre alumínio e poliuretano em que o verde e o amarelo da bandeira nacional se recompõem em padrões geométricos, criada por Adriana Varejão em 2021. E diversas releituras do “lábaro que ostentas estrelado”, com artistas de vários estados e em suportes distintos a repensar esse símbolo-chave das disputas de narrativa na contemporaneidade brasileira.
Francisco Costa, por exemplo, propõe uma Bandeyra (2019) rosa e com o arco-íris do movimento LGBTQIAP+ substituindo a faixa “Ordem e progresso”. Já Marilá Dardot nos lembra a idiossincrasia conservadora e misógina da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, em abril de 2016, com seu tríptico A República, destacado no ensaio visual estampado na capa desta Continente na edição #261, de setembro passado; e Thiago Honório, Antonio Dias, Emmanuel Nassar e Bruno Baptistelli convidam a uma expansão do olhar para “o verde-louro desta flâmula”, ora trocando as cores, ora subvertendo os materiais, ora conclamando a nação para, em vez de ordenar e progredir, caminhar com todos os seus artistas – homens, mulheres, brancos, negros, indígenas, LGBTQIAP+ e periféricos – e com “liberdade e amizade”, nas palavras de Nassar.
Cerca de metade das obras pertence aos acervos do MuN, do Museu de Arte de Brasília (MAB) e da Presidência da República. Quando enfeixadas sob um desejo curatorial de ratificar a cultura como elemento crucial da identidade de um país, ganham e reverberam novos sentidos. “A cultura não é produto, a cultura produz valores, conhecimentos e afetos”, sintetizou Lilia, cocuradora da mostra ao lado do arquiteto Rogério Carvalho, do ator Paulo Vieira e de Márcio Tavares, ex-secretário nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores e atual secretário-executivo do MinC.
E a cultura “somos nós”, Brasil futuro ratifica, apontando para um “nós” que traz a iconoclastia de Nelson Leirner e Lourival Cuquinha, a delicadeza inventiva de Rivane Neuenschwander e Leonilson, a força de Jaime Lauriano e Thiago Martins de Melo, a expressividade de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (presentes com Fala da terra, xilogravura em três partes, de 2022) e José Bezerra, a polifonia de Bené Fonteles e Paulo Nazareth e a convergência entre passado, presente e porvir manifestada em criações de Anita Malfattti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Mauro Restiffe, Cildo Meirelles, Leda Catunda, Ernesto Neto, Rosana Paulino, Aline Albuquerque e Dalton Paula.
O quadro Orixás (1962), de Djanira, foi retirado do salão nobre do Palácio do Planalto em 2019. Foto: Marina Gadelha/Ascom Secec DF
Outro eixo fundamental da exposição, aberta até o próximo 26 de fevereiro, é a paisagem erigida da e na arte dos povos originários. Gustavo Caboco, Jaider Esbell, Aslan Pankararu, Denilson Baniwa, Ailton Krenak e Edgar Kanaykô Xakriabá representam múltiplas etnias e um avanço inédito. “Essa exposição é muito importante para a arte indígena, porque é a primeira vez que estamos dentro do Museu da República, desse espaço em Brasília. Claro que já teve várias mostras no Memorial dos Povos Indígenas e exposições no Centro Cultural Banco do Brasil, mas o espaço do MuN representa outro tipo de diálogo com a sociedade”, pontua Daiara Tukano. Como ela mesma ressaltou nas frases que circundam o cromatismo magnético de A queda do céu e a mãe de todas as lutas: “A floresta que segura o céu já disse: democracia é democracia em todas as terras indígenas. Terra é mãe de todos os entes”.
Para Daiara, Brasil futuro: As formas da democracia e as projeções das obras na fachada do Congresso Nacional, ocorridas no Festival do Futuro, parte festiva da posse do presidente Lula, “marcam uma chegada indelével dentro de um espaço de diálogo e notoriedade que é essencial no campo das artes visuais”. “É uma representação de que estamos lá por nós mesmos. Em 2022, quando estávamos comemorando e rememorando o centenário da Semana de Arte Moderna, as exposições de arte indígena eram muito marcadas pelos contextos dos outros, de brancos acadêmicos, em relação a outros movimentos artísticos na história da arte brasileira. A partir de agora, estamos ocupando esse lugar por nossas histórias e pela complexidade das nossas culturas e vivências como seres humanos e artistas”, disse, em conversa com a Continente.
Três dias após a invasão da Praça dos Três Poderes e a depredação do Congresso, do Planalto e da sede do Supremo Tribunal Federal em atos terroristas, ocasionando o fechamento preventivo e temporário do MuN e da exposição, Sônia Guajajara assumiu o Ministério dos Povos Indígenas, demarcando um recomeçar na História brasileira. “Quando Sônia foi empossada, ela disse que a terra é a mãe de todas as lutas. Essa é uma frase que não é só dela, mas das mulheres indígenas, e marca essa relação com o mundo, do luto, da luta e da reconstrução através das transformações que compartilhamos”, arremata Daiara Tukano. Não há transformação possível sem arte, como atesta Brasil futuro: As formas da democracia.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.