Amor, ordem e progresso
A bandeira do Brasil como emblema para a arte
TEXTO Olívia Mindêlo
01 de Setembro de 2022
Hal Wildson, 'Re-Florestar', 2022. Impressão fotográfica em pigmento mineral sobre papel algodão, 45 x 32 cm
Imagem HAL WILDSON/GALERIA MOVIMENTO/DIVULGAÇÃO
[ed. 261 | setembro de 2022]
Entre 2020 e 2021, quando o Brasil tentava dormir em meio aos números aterradores da pandemia da Covid-19, Hal Wildson viveu um momento de suspensão durante o sono. O artista teve dessas experiências oníricas que poderiam ser o prenúncio para a (re)criação de um território pleno de suas funções vitais – incluindo corpo, mente e espírito. Transcendendo o contexto de então, o sonho trazia a atmosfera de um dia vivido por Hal com os “parentes” amigos da Aldeia Rio Silveira, dos guarani mbyá, no litoral norte de São Paulo. De quebra, alinhavava também a relação que ele mesmo vinha tecendo, em seu trabalho, entre memória, esquecimento e as narrativas da nossa história reproduzidas através de discursos e símbolos de poder.
Em um manifesto que guia sua produção artística recente, Hal nos relata: “Naquele dia sonhei, vi a palavra escrita de urucum e dendê: Re-Utopya, da palavra e seu simbolismo vi uma bandeira do Brasil, mas entre as estrelas se escrevia: ‘Teko Porã e Ubuntu’ substituindo o slogan positivista ‘ordem e progresso’. Talvez esteja aí a solução... já que não dá pra apagar a invasão do Brasil, que seja possível então a sua reinvenção. RE-UTOPYA! Reescrever a utopia brasileira é escrever este país com Teko Porã e Ubuntu”.
A imagem de capa desta edição da Continente e a que abre este ensaio visual são parte da materialização desse sonho e integra a série de obras do artista goiano que, vindas de um insight, são um convite para reimaginarmos o nosso mundo. Como ele explica, Re-Utopya, sua divisa para a bandeira nacional, funciona como uma síntese poética de duas visões complementares. De um lado, a filosofia indígena teko porã, do tupi-guarani, remete ao sentido de bem-viver em comunidade, numa dimensão relacional ampla e integrada ao meio ambiente, “um ser vivo e ativo”; de outro, a filosofia africana ubuntu, baseada no “eu sou porque nós somos” – “eu sou humano, e a natureza humana implica compaixão, partilha, respeito, empatia”, cita em seu manifesto.
O que significa reinventar o Brasil a partir de sua bandeira? O que significa reimaginar esta nação em 2022? Estamos certamente em um ano simbólico para esse exercício coletivo, numa trincheira crucial de autorreflexão sobre quem somos e o que queremos ser. Como fatos, sentimos a conta chegar com a volta da fome, a alta da inflação e do desemprego, a destruição acelerada da Amazônia, dos povos indígenas e seus defensores, o genocídio contínuo e crescente da população negra, as mudanças e os colapsos climáticos e, acima de tudo, um governo federal que – como analisa Eliane Brum no livro Brasil, construtor de ruínas (Arquipélago Editorial, 2019) – representa não apenas uma ameaça à democracia: “o bolsonarismo é um risco à civilização”.
Além disso, temos datas. Em 2022, relembramos o centenário da Semana de Arte Moderna e as suas tentativas de elaborar uma identidade nacional; neste setembro, marcam-se os 200 anos da Independência do Brasil; em outubro, as eleições para presidente, governadores, deputados e senadores; e, em novembro, a maior das celebrações patrióticas, a Copa do Mundo. O país que, nos últimos anos, sofreu vários “7x1” em diferentes campos e arca com as síndromes pós-Covid, há de superar o estresse pós-traumático em curso?
Para lembrar a fala do filósofo Vladimir Safatle à Agência Pública, às vésperas das eleições de 2018, “quando você não acerta as contas com a história, a história te assombra”. O país que não quis encarar feridas coloniais e políticas, tapando-as sob o discurso oficial e oficioso, agora tenta estancar um sangue que jorra das profundezas. Eis o nosso tempo. Como boa obreira que é dos momentos de crise, a arte nos provoca a sair do senso comum, a suspender o peso dos dias, a simular algum horizonte. Melhor diria o artista Gustavo Torrezan, para quem a arte, sendo via de pesquisa, se apresenta mais como a possibilidade de “habitar um problema do que apontar uma solução”.
Os artistas contemporâneos que reunimos nestas páginas partilham, de alguma maneira, desse ímpeto que os levou a revisitar o maior dos símbolos nacionais. Procurando repensá-lo ou mesmo desestabilizá-lo, esses 15 nomes de diferentes gerações e regiões do país propõem novos arranjos visuais à bandeira republicana instituída em novembro de 1889, cujo desenho, utilizado até hoje, foi de Décio Villares. O pintor adaptou, à época, a insígnia do Brasil imperial aos ideais positivistas, conservando o retângulo verde e o losango amarelo, ao tempo em que preencheu a esfera com o azul, as estrelas e a faixa, em substituição ao brasão ladeado pelos ramos de café e tabaco.
Como narra o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, no livro A formação das almas – O imaginário da República no Brasil (Companhia das Letras, 1990), a adoção das bandeiras nacionais sempre foi motivo de disputa na história da formação dos Estados modernos. O Brasil não seria exceção. A flâmula atual encontrou oposição desde o momento em que foi oficializada, sendo alvo de críticas e ridicularização nos jornais, vindas sobretudo dos chargistas. “A principal inovação, a que gerou maior polêmica, a que ainda causa resistência, foi a introdução da divisa ‘Ordem e Progresso’ em uma faixa que, representando o zodíaco, cruzava a esfera em sentido descendente da esquerda para a direita”, escreve o autor.
Decerto, esse é também um dos incômodos que atravessam algumas obras dos artistas deste ensaio – e mesmo outras que ficaram de fora. Quando não reelaboram as cores e formas da bandeira, atacam diretamente o lema de Auguste Comte defendido e instituído goela abaixo por um dos grupos que estiveram na base dos ideais republicanos do país. Diferente da Revolução Francesa, a bandeira brasileira nunca foi um emblema erguido em bases populares, bem como, a saber, a própria República, instalada sob as sombras de mais de 300 anos de escravidão.
O fio de dois séculos de história como país nos liga agora à mesma bandeira sendo tomada, em 2022, como marca de uma corrente política de extrema direita que está longe de representar a maioria dos brasileiros, mas ainda consegue cooptar uma parcela considerável da população. Desde 2013, com as Jornadas de Junho, como hoje chamamos a série de manifestações que culminaram na deposição da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, vemos a bandeira ser utilizada como adorno de quem exalta ditadura, torturador, arma, anticiência e morte em nome da família, de Deus e da pátria. A necropolítica vestindo verde e amarelo, cores tão desgastadas quanto as nossas riquezas naturais e a nossa história política.
Interessante trazer aqui o rito das Forças Armadas quando uma bandeira se desgasta e deve descer do mastro e ser substituída. As que não servem mais ao hasteamento são reunidas e incineradas no Dia da Bandeira, 19 de novembro (data do seu decreto em 1889). Como ato simbólico, é hora, pois, de atear a bandeira ao pátio aceso da arte, que, em seu dever cívico, tem a vocação para tensionar esse imaginário e afrontar o poder, entrando no campo de disputa cultural – às vezes de maneira direta, às vezes metafórica e quase ambígua, como num “patriotismo” às avessas.
“A manipulação do imaginário social é particularmente importante em momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidades coletivas”, enfatiza José Murilo de Carvalho em seu livro. Ao passo que testemunhamos os acontecimentos recentes do país, vemos surgirem respostas artísticas, como parte do zeitgeist, do espírito do nosso tempo. As escolhas deste ensaio refletem, portanto, esse momento, mas inclui também trabalhos de outras épocas. No conjunto que ora se apresenta, identificamos três núcleos de trincheira poética, por assim dizer.
O primeiro tem a potência dos arquivos: propõe a escrita (ou reescrita) da história do país tendo a bandeira como suporte dos acontecimentos ou aspectos dignos de nota. Nesse núcleo, os artistas são mais diretos e tornam a fusão entre arte, política e memória evidente, exercendo um papel de oposição ao modelo de Estado empenhado pelo executivo e legislativo ao longo de décadas – sobretudo nos últimos anos. Tomando partido em defesa da democracia, e numa inclinação à esquerda, estão aí nomes como Marilá Dardot, Pontogor, André Parente, Raul Córdula e Hal Wildson.
Este último está representado nesta ala por outra série, intitulada Monumento à Independência, um conjunto de cinco bandeiras no qual retrabalha as insígnias do Império e da República a partir de elementos como projéteis, cruzes e gado, numa alusão aos pilares de fundação do Estado brasileiro. Inserem-se aí duas paródias à versão verde-amarela da flâmula norte-americana, que chegou a ser hasteada pelo novato regime republicano, mas refutada logo em seguida.
Hal Wildson, Monumento à Independência (V, I, II, III, IV), 2021-2022. Bordado sobre cetim, 87 x 130 cm (cada). Imagens: Rafael Salim/Galeria Movimento/Divulgação
Não menos crítico e político é o segundo núcleo de obras aqui expostas. Por meio de uma lógica mais iconoclasta, Paulo Bruscky, Iran do Espírito Santo, Gustavo Torrezan, Jefferson Medeiros, Desali Xo e Lourival Cuquinha refazem o símbolo nacional em trabalhos bidimensionais e tridimensionais, sejam instalações, colagens ou objetos. As escolhas aqui passam menos por uma ordem direta de denúncia e mais por um jogo poético que fratura o signo e lhe confere outros sentidos.
Por fim, há o grupo de artistas que reimaginam o Brasil e propõem outras representações a partir da bandeira – caso de Hal Wildson, com Re-utopya, como vimos, mas ainda de Gilvan Barreto, Bruno Baptistelli, Jeff Alan, Leandro Vieira e Christina Machado. Seus trabalhos assinalam desejos, sonhos, utopias e propostas de posicionamento e inserção de outros signos à insígnia oficial, considerando, por exemplo, a representatividade de povos marginalizados e oprimidos historicamente. O Brasil aqui se recria em cores, rostos e dizeres.
Juntos, esses três núcleos funcionam à polissemia, às várias formas de olhar, organizadas aqui por uma divisão que é uma proposta, não uma verdade, e abraça cruzamentos e pontos de fluidez próprios do imaginário. A tarefa comum está no gesto de criação artística: ao dar um sentido coletivo e aberto à bandeira, nos conhecermos e nos pensarmos como povo de múltiplas histórias a compor os vários fios desse tecido.
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Uma dessas narrativas vem do tempo em que os militares governaram o Brasil por mais de 20 anos. De 1964 a 1985. Vem “dos segredos dos porões da ditadura”. Flávio Tavares os guardou por três décadas e “tendo tudo para contar, sempre quis esquecer”. Sobrevivente dos regimes opressores que tomaram a América Latina no período, o jornalista e professor narra em seu livro Memórias do esquecimento (L&PM, 2012) um sonho recorrente da época em que viveu compulsoriamente longe do país.
O que lemos é o seguinte: “Ao longo dos meus dez anos de exílio, um sonho acompanhou-me de tempos em tempos, intermitente. Repetia-se sempre igual, com pequenas variantes. Meu sexo me saía do corpo, caía-me nas mãos como um parafuso solto. E, como um parafuso de carne vermelha, eu voltava a parafusá-lo, encaixando-o entre minhas pernas, um palmo abaixo do umbigo, no lugar de sempre”. O pesadelo tinha, como todo ele, um fio na realidade, confundindo-se com os choques sofridos nas sessões de tortura no Rio de Janeiro. Flávio foi um dos 15 presos políticos cuja liberdade veio como moeda de troca do famoso sequestro do embaixador dos Estados Unidos, em 1969. No mesmo ano, ele precisou se exilar no México, quando começou a ter o sonho.
Enquanto isso, do lado de cá do Equador, não demorou para a bandeira verde-amarela servir ao popular slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, propaganda do governo militar e recado direto aos que se opunham a ele. Assim como as técnicas de tortura, o ditame fora importado dos Estados Unidos, onde circulava o adesivo“America: love it or leave it”, direcionado a quem protestasse contra a Guerra do Vietnã, mas também de mensagem racista. Em suma, lá ou cá, os que não se sentissem pertencendo que se retirassem.
Nesses anos de chumbo no Brasil, mexer no símbolo nacional era crime, o que tornaria este ensaio motivo de censura e prisão dos envolvidos. Mesmo assim, em fevereiro de 1968, quase 10 meses antes da promulgação do AI-5, artistas do Rio de Janeiro não se intimidaram em realizar o happening Bandeiras na Praça General Osório, que se confundiu com o clima de prévia carnavalesca e não foi reprimido. Presos em varal, os trabalhos ocuparam a Praça de Ipanema, alguns trazendo o losango da insígnia com a cara do Tio Sam, ícone norte-americano. Foi na ocasião que Hélio Oiticica apresentou, pela primeira vez, a famosa bandeira com a frase “Seja marginal, seja herói”.
Na Paraíba, Raul Córdula, um artista da mesma geração, viria a expor sua crítica ao regime. No hall da reitoria da UFPB, a série de pinturas Primavera negra denunciava a violência militar. Num flerte com a estética da pop art, presente no imaginário artístico de então, Raul criou sua versão da bandeira nacional, que acabou se perdendo e sendo refeita em 2008. Em Primavera negra 2, uma mão branca salta do losango amarelo apontando uma arma ao espectador. Obra mais direta e atual impossível. O curioso é que a exposição veio a ser censurada não pelos agentes do governo, ou mesmo por ter ofendido o símbolo patriótico. O Conselho Universitário da UFPB mandou recolher as obras da mostra sob a justificativa de ter visto nos quadros uma “ofensiva à moral e ao pudor público”, pois havia nudez em alguns deles. Logo depois, a exposição voltaria a acontecer em João Pessoa, no Recife e em Olinda.
Raul Córdula, Primavera negra 2, 2008. Pintura s/ tela (releitura), 180 x 150 cm.
Imagem: Reprodução
Os artistas dos anos 1960 e 1970 desejavam uma arte próxima do cotidiano e do povo, menos elitista e mais engajada, inter-relacional, ambiental, performática, política e questionadora do próprio conceito de arte – como acontecia da Europa aos Estados Unidos. Insere-se nesse contexto também o pernambucano Paulo Bruscky, cuja obra O que nos espera?, de 2020, traz uma composição com a imagem da bandeira em pedaços. Parte dos criadores que experimentaram o exercício da liberdade artística em plena ditadura e fundaram a arte contemporânea brasileira, Bruscky foi detido algumas vezes nos tempos de exceção e se vê até hoje preocupado com a situação sociopolítica do país.
Daí porque a insígnia nacional, que considera uma das mais bonitas do mundo, sempre esteve nos arquivos do artista. Desse banco de criação, surgiu, além de O que nos espera?, Inconstitucionalmente, trabalho de arte correio em que também picota a imagem da bandeira e coloca em um envelope carimbado com o título da obra. A palavra remete ao ato ilegal, da época da ditadura, de danificar o emblema. A ideia só foi executada em 1991 e está sendo mostrada pela primeira vez nestas páginas. Trata-se de um múltiplo de 61 cópias feito a partir da proposta de circulação da arte por correspondência, como faziam Bruscky e outros artistas que buscavam, antes da internet, tirar a arte da sua zona institucional, criando redes e abrindo percursos de fruição.
Esse gesto de unir arte e vida e dialogar com o tempo presente pode ser visto nos demais trabalhos deste ensaio.
Paulo Bruscky, Inconstitucionalmente, 1991. Múltiplo, arte correio.
Imagem: Reprodução
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A história recente republicana – repleta de um passado presente – imprime-se nas superfícies antipatrióticas de Iran do Espírito Santo, Marilá Dardot, André Parente e Pontogor. Eles não só subtraem as cores da bandeira, como subvertem os sentidos do verde, amarelo e azul, quando estes aparecem em cena.
A mais emblemática – e pioneira – dessas manipulações figura numa serigrafia de 1998, sob o título A noite. Ao contrário de Bruscky, Iran detesta a bandeira nacional e, quanto mais pesquisava sobre, menos gostava. Reconhece que, à época do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), “éramos felizes e não sabíamos” e, se pudesse prever, teria feito a bandeira em fundo azul escuro e não preto – esta caberia aos tempos atuais, que o motivaram a recriar uma edição em tecido. O fato é que, para o artista paulista, o projeto neoliberal de FHC era a frustração de uma promessa de país pós-reabertura, refletida nas dificuldades financeiras que ele vivia dentro e fora de casa.
Em um ato antiufanista, Iran extraiu as cores da bandeira – “cores da nobreza” (originalmente das dinastias portuguesa, o verde, e austríaca, o amarelo) – e manteve em céu escuro a constelação de 27 estrelas brancas que representam os estados da federação e aludem ao Cruzeiro do Sul (numa substituição, pelos positivistas, da cruz católica da bandeira imperial). A posição de todas elas se manteve, enquanto os demais elementos saíram de cena por meio de uma meticulosa tarefa manual. O resultado é minimalista, poético.
Iran do Espírito Santo, A noite, 1998. Serigrafia sobra papel, 45 x 64,5 cm. Imagem: Divulgação
Também em preto e branco, a obra A República, de Marilá Dardot, inverte o gesto de Iran: retira as estrelas (para ela, o povo do país) e mantém o retângulo, o losango e o círculo, dispostos separadamente em um tríptico. Em cada forma, lemos a sobreposição de palavras repetidas pelos deputados federais durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff, no dia 17 de abril de 2016. “Família”, “Deus” e “meus amigos” compõem os discursos de homens, em sua maioria, que golpearam a primeira mulher da presidência deste país. Aqui, salta aos olhos a questão fulcral brasileira da relação do público versus o privado. Pessoas eleitas pelo povo reclamando para si e os seus o espaço político. Eis o Brasil. Não era pela nação ou pela população, era por “mamãe”, “meus netos” e, pasmem, “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. As palavras do então deputado Jair Bolsonaro em alusão ao torturador de Dilma na ditadura se somam à obra de Marilá, cuja pesquisa com a palavra, marca de seu trabalho, serve aqui como uma lupa em nossa história.
Os acontecimentos políticos do Brasil do século XXI aparecem também nos projetos de Pontogor e André Parente. Enquanto o primeiro desenha o céu do 14 de março de 2018, data do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), e o insere no lugar do céu do 15 de novembro da bandeira, o segundo parte dos 20 dias após a votação do impeachment. Na série Bandalhas, o filho da artista Letícia Parente (1930-1991) borda em tecido, rodeando as formas da bandeira, trechos de diálogos que vazaram o esquema golpista por trás da destituição da presidente.
Marilá Dardot, A República, 2016. Tríptico em impressão digital sobre algodão, 90 x 130 (cada). Imagem: Edouard Fraipont/Divulgação
Pontogor, 14 de março de 2018, 21:30 | 22°54’52.2”S 43°12’27.2”W, 2020. Impressão por sublimação em tecido de microfibra, 100 x 150 cm. Imagem: Divulgação
Primeiro, André edita a famosa conversa entre o então senador Romero Jucá (PMDB) e o empresário Sergio Machado, da Transpetro. “A solução mais fácil era botar o Michel (Temer)... É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional”, sugere Machado. “Com o Supremo, com tudo”, afirma Jucá. Frases assim estão nesse conjunto da “bandalheira”, como ele diz, ou das “bandeiras dos canalhas”, poderíamos complementar. Depois, o artista traz outras conversas (Joesley Batista x Michel Temer, Joesley x Aécio Neves) e por aí vai.
O que estava (ou não) debaixo dos panos é ativado nesses estandartes “fascistas”, desvelando a face sombria do país que se esconde sob clichês e signos oficiais. Funcionando como diários, suas obras em verde, amarelo, azul e preto compõem a memória que poderia ter se perdido entre os recantos escusos da política nacional. A série segue em curso e traz ainda algumas das falas antológicas de Bolsonaro, em letras amarelas sobre fundo preto. “Sou favorável à tortura”, vociferou em vídeo. “É só uma gripezinha”, disse ele em fala oficial sobre a Covid-19. Com o bolsonarismo, a bandeira brasileira se converteu em símbolo tóxico.
André Parente, série Bandalhas, 2016-2020. Tecidos Oxford preto,
amarelo e verde com letras bordadas em verde e amarelo,
190 x 130 cm (cada). Imagens: Divulgação e José Pelegrini/
Galeria Jaqueline Martins/Divulgação
Gustavo Torrezan expressa o drama nos trabalhos Noite e Pó, de 2021. Memórias afetivas são elaboradas em formas conceituais de contestação a um Estado personificado por sua bandeira. Ao desconstruí-la, o artista radicaliza, de forma não intencional, a ideia de Iran do Espírito Santo, transformando a flâmula em um manto fúnebre que cobre uma tribuna e sobre o qual são cravadas 27 estrelas em muirapiranga (madeira tida como o falso pau-brasil). A outra instalação, Pó, traz apenas a constelação feita em carvão, que aborda questões como a “supressão da paisagem”, o “resto”, o “Estado mínimo conformado” e a “Amazônia queimada”.
Os artistas Jefferson Medeiros, Desali Xo e Lourival Cuquinha desconstroem a bandeira e a refazem a partir de materiais que lhe atribuem novos sentidos – tijolos, esponjas de prato usadas e cédulas de moedas brasileiras de diferentes tempos, respectivamente. São intrigantes, para começar, e resvalam o caráter ambíguo que têm esses trabalhos feitos a partir da bandeira.
Gustavo Torrezan, Noite, 2021. Instalação
(cravos de muirapiranga sobre tecido) e detalhe da instalação,
5,4 x 3,8 x 0,4 m. Imagens: Divulgação
Na obra Amor, ordem e progresso – Projeto de arte financeira, Cuquinha vai além da representação, trazendo em seu processo uma espécie de jogo entre o sistema especulativo da arte e do capital financeiro. As notas costuradas em suas bandeiras, como numa colcha de retalhos, foram “doadas” por “acionistas”, investidores da série que começou em 2009, com a insígnia da Inglaterra. O artista comercializa cada obra e reparte com os “sócios” um valor 10 vezes maior em relação ao investido.
Na bandeira do Brasil, em especial, Cuquinha coloca a palavra “amor” junto a “ordem e progresso”, como está no título do trabalho. Escrita em moeda, a divisa proposta por ele soa irônica. Mas é também uma menção ao lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”, criado por Auguste Comte. Alguns sustentam a ideia de que o verbete foi suprimido da bandeira pelos positivistas brasileiros, enquanto outros defendem que, no princípio, o amor não estava no lema comtiano. Independentemente disso, há um movimento recente no Brasil, por parte de algumas pessoas, incluindo artistas, para acrescentar a palavra “amor” à divisa, o que certamente ganha outros significados no contexto atual.
Em meio aos horrores ditos e praticados, como podes ainda ser, ó Brasil, uma pátria amada?
Lourival Cuquinha, Amor, ordem e progresso –
Projeto de Arte Financeira. Bandeira costurada com notas
e moedas de dinheiro brasileiro de várias épocas, 110 x 170 cm.
Imagens: Divulgação
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“Saudade do Brasil”, desabafa o artista Gilvan Barreto em tipografia branca (semelhante à da divisa oficial) sobre tecido azul. Ele confessa: sua bandeira foi uma resposta à humilhação política pela qual o país passava no pandêmico 2021 e continua a passar. Sua saudade expressa na imensidão anil é a de poder olhar novamente para frente, voltar a sonhar. Uma poesia visual nostálgica de um passado recente, ou uma possibilidade de utopia, de poder reinventar novos territórios a partir de novas bandeiras.
Gilvan Barreto, Saudade do Brasil, 2021. Bandeira com bordado sobre tecido, 50 x 38 cm. Imagem: Divulgação
Jefferson Medeiros, Obra embargada, 2022. Instalação (tijolo),
80 x 50 cm. Imagem: Divulgação
Desali Xo, Bandeira nacional, 2021. Instalação com 504 esponjas
doadas pela Terracycle, coladas sobre espuma apoiada sobre limpadores,
200 x 180 cm. Exposição Carolina Maria de Jesus:
um Brasil para os brasileiros, IMS/SP (2021).
Imagem: Desali/Divulgação
Também criam suas insígnias os artistas Bruno Baptistelli, Jeff Alan e Leandro Vieira, quase numa proposta de “acerto de contas” com a história dos povos excluídos pelo poder hegemônico, em especial negros e indígenas. Bruno troca o verde, amarelo, azul e branco pelas cores da bandeira pan-africana, num gesto apropriado do artista norte-americano David Hammons com a bandeira dos EUA, nos anos 1990.
O pintor Jeff Alan reelabora o símbolo nacional dando-lhe, literalmente, novos rostos. Como o de Ednaldo Ribeiro da Silva Júnior, menino de oito anos que conheceu em seu bairro, no Recife. Ou o de Zezé Maria, com quem cruzou na Favela do Detran. Em desenhos com lápis grafite, Jeff extrai as cores da bandeira para deixá-a em preto e branco e provocar um olhar também para as pessoas que fazem o país.
Bruno Baptistelli, Bandeira afro-brasileira (em diálogo com
David Hammons), 2ª versão, 2020. Impressão sobre tecido de algodão,
193 x 135 cm. Imagem: Eduardo Ortega/Divulgação
Jeff Alan, Olhe as crianças que é o futuro e a esperança. Ednaldo | caminho da escola, caminho de descobertas, 2022. Lápis grafite sobre papel, 29,5 x 20 cm. Imagem: Divulgação
Nesse sentido, o carnavalesco Leandro Vieira foi eloquente e eficaz ao levar uma bandeira gigante com as cores da Mangueira ao desfile que rendeu, em 2019, o 20º campeonato à escola verde-rosa. Carregada por várias pessoas na Avenida Marquês de Sapucaí, a flâmula trazia “Índios, negros e pobres” como divisa-síntese de um discurso decolonial, ao som do samba-enredo História para ninar gente grande. O lema em substituição ao “ordem e progresso” foi uma forma direta de lembrar os que são estrategicamente apagados das narrativas oficiais e, como parte disso, aniquilados das políticas e do território, por meio de um Estado que lhes impede sistematicamente o direito de existir. Performance da resistência a se repetir ano a ano, o Carnaval é a possibilidade simbólica de se contrapor a isso, de erguer e reerguer o valor de pessoas que, na verdade, fazem este projeto de nação ser possível.
Quando Hal Wildson sonha com a palavra “Re-utopya” estampada na bandeira do Brasil, ele nos chama a mirar o futuro olhando o passado. Estão aí sementes guardiãs de uma ancestralidade que, apesar de negada a partir do paradigma branco-europeu, sempre arruma um jeito de brotar das ruínas, dos fantasmas, das matas, dos terreiros, do inconsciente. Não cabem em um retângulo, como nenhum povo cabe.
Em sua proposta, a artista Christina Machado crava um coração no meio da bandeira e é “ele” quem nos diz: “Faço o que vier na sua cabeça”. É tempo de soltar nossas imagens, revirá-las ao avesso, atirá-las ao vento das possibilidades. É tempo de dançar com as feridas, ou de outra forma, não há independência, república ou democracia possível. Se fecharmos os olhos, o que nos espera?
Leandro Vieira, Bandeira brasileira, 2019. Estampa em sublimação e costura sobre tecido. Desfile da Mangueira no Carnaval do Rio de Janeiro. Foto: Marcelo Fonseca/Folhapress
Christina Machado, Amor, da série Artérias, 2022. Serigrafia sobre papel.
Imagem: Divulgação
OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural, editora da Continente Online.