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Titãs: desde os primórdios até hoje em dia

Turnê de comemoração dos 40 anos da banda, 'Todos ao mesmo tempo agora', que reúne os antigos integrantes, passou pelo Recife deixando algumas reflexões

TEXTO Débora Nascimento

05 de Junho de 2023

Vista do Palco Flores, no Classic Hall

Vista do Palco Flores, no Classic Hall

Foto Débora Nascimento

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Praia de Boa Viagem, 1989:
as pessoas tomavam banho de sol sem protetor solar, mergulhavam e passavam horas no mar sem medo algum – os tubarões ainda não haviam migrado como consequência do Porto de Suape. "Tubarão" era apenas um filme de Spielberg e gíria para rico, poderoso e perigoso. A praia não era loteada por cadeiras e guarda-sóis de marcas de cerveja. Cada banhista que estivesse em busca de diversão gratuita e do obrigatório bronzeado da época tinha que levar cangas, cadeiras, toalhas, guarda-sóis, caixa de isopor e até galeto com farofa. 

Em meio à carestia da inflação, muita gente desempregada também ia vender sanduíche natural, picolé, caldinho, bugiganga. Dentre essas pessoas que circulavam nas areias pelo ganha-pão, se destacava uma dupla de cantadores de meia-idade. E cantavam uma espécie de embolada que ninguém entendia quase nada do que diziam, a não ser "É na tela do cinema". Parecia um inglês macarrônico. Um dia, eles pararam na frente de um turista especial. O cantor Paulo Miklos, que tinha vindo ao Recife com a turnê do Go back, havia descido do hotel à beira-mar, junto ao guitarrista Tony Belloto, para aproveitar a praia, encarando de frente a fama de integrante da banda que possuía dezenas de hits tocando nas rádios: Titãs. Quando ouviu o canto diferente do casal, que passava pela areia, Paulo correu para pegar o gravador no hotel, enquanto Tony corria para trazê-los de volta ao lugar e esperar um pouco.

Essa gravação improvisada, Paulo levou aos demais integrantes do grupo e ela acabou inspirando a composição Miséria – dele, Arnaldo Antunes e Sérgio Britto, e parte da concepção do disco seguinte da banda, Õ blésq blom, uma expressão inexistente, mas que foi grafada por Nando Reis e decifrada como parte da "língua" da dupla pernambucana Mauro & Quitéria, e que hoje a inteligência artificial do Word aceita como existente.

Quando a turnê do aclamado disco pousou no Pavilhão do Centro de Convenções, a plateia, que incluía o então desconhecido Francisco de Assis França (futuro Chico Science), explodiu em aplausos ao avistar a chegada dos dois emboladores. Era uma alegria imensa e um orgulho indescritível vê-los abrirem o show do álbum que tocava em todas as rádios do país. Na época, o Movimento Manguebeat ainda não existia. No resto do país, Pernambuco era mais lembrado pelas praias (em especial a turística Boa Viagem), pelo Carnaval, por Alceu Valença e Luiz Gonzaga – falecido em agosto de 1989.

Três anos depois, em 1992, foi lançado o Movimento Mangue, a partir do Manifesto Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred Zeroquatro. Olhando em retrospecto, dá para perceber uma influência – talvez inconsciente – de Miséria e Õ blésq blom no conceito da junção entre rock e cultura popular, na abordagem poética e crítica da pobreza extrema das cidades, na inserção de vinhetas em uma música (como o canto de Mauro e Quitéria), um recurso também utilizado no Da lama ao caos (1994). Mas, claro, ambos foram produzidos por Liminha – e isso pode ter sido determinante para algumas semelhanças entre os dois.

Agora, não é maravilhoso testemunhar, quase 35 anos depois daquela gravação na Praia de Boa Viagem, Mauro e Quitéria, já falecidos, sendo lembrados na turnê comemorativa dos 40 anos dos Titãs? A dupla ganhou homenagem especial no show da banda no Classic Hall, na última sexta, dia 2 de junho de 2023, que já se tornou um dia memorável. A passagem pela cidade foi a 12ª apresentação da turnê Todos ao mesmo tempo agora – é curioso que o nome faça referência a Tudo ao mesmo tempo agora (1991), disco que provocou a primeira saída de um integrante da banda. E foi um duro golpe, pois, do octeto, era provavelmente o membro mais querido pelo público.

Arnaldo Antunes anunciou a saída em 1992. O artista afirmou que queria mais liberdade artística. Mas, nos bastidores, fala-se também que não ficou satisfeito com o fato de que, naquele disco, as autorias das músicas foram creditadas a todos os integrantes, sem distinção. Chegou a compor depois umas poucas parcerias e a fazer parte, como convidado, em 1997, da gravação do Acústico MTV, projeto inicialmente recebido pela crítica e por parte do público como uma ideia estranha em um momento esquisito (influenciados pelo grunge, os discos do início dos anos 1990 dos Titãs eram muito mais pesados e já não rendiam mais tantos sucessos como os dos anos 1980), mas que virou o maior e mais inesperado fenômeno comercial na carreira da banda. 

O mega-hiper-super sucesso levou o grupo a convenientemente gravar uma continuação. Desta vez não foi gravado ao vivo, mas em estúdio, o Volume 2. De um lado, o grupo conquistou novos fãs; do outro, desagradava os mais antigos, que gostariam de voltar a ouvir Paulo Miklos berrando "Vão se foder!" e não "É preciso saber viver!". Dentre as faixas do Acústico MTV, duas das mais tocadas eram de Nando Reis: Os cegos do castelo e Pra dizer adeus (com Tony Belloto). Isso deu um impulso para que o músico, que já havia feito parcerias bem-sucedidas com a ex-namorada Marisa Monte, desse uma guinada solo, principalmente depois do avassalador sucesso de suas músicas na voz da amiga Cássia Eller, perto do final da década de 1990. 

As músicas do Acústico MTV tocaram tanto entre 1997 e 1999, que chegou um momento que parecia que não iam parar de tocar mais nunca. Os cegos do castelo só diminuiu de tocar nas rádios por causa de outra música de Nando Reis, O segundo sol, desta vez na voz de Cássia Eller. E daí, entre 1999 e 2002, lá estávamos nós, de novo, em outro looping interminável de uma canção: "Quando o segundo sol chegar/ Para reanimar as órbitas dos planetas…".  (Não, Nando. Não precisamos de um segundo sol. Cê tá louco, mêu! Já temos problemas suficientes com um só, aqui perto da Linha do Equador).

Então, quando O segundo sol finalmente deu uma trégua aos nossos ouvidos, foi para dar espaço ao novo projeto da ex-namorada de Nando e do amigo de Nando, Arnaldo Antunes, e mais Carlinhos Brown. Sim, Os Tribalistas. Para ouvir alguma faixa desse disco, era só acordar para um novo dia. Já sei namorar tocava nas ruas, nas praças, em festa de formatura, de casamento, festa infantil, shopping, academias, boates, Carnaval.

Foram muitos sinais, até que Nando percebeu que ele, mesmo sem ser um tribalista, poderia fazer muito sucesso também. Em 2002, cansado de suas novas ideias não vingarem nos Titãs, também quis colocar os pés fora da banda, assim como Arnaldo. E engatou a vitoriosa carreira solo, situada entre o rock, o folk e a MPB. Posteriormente, ela passou a contar com o baterista e produtor pernambucano Pupillo, ex-integrante da Nação Zumbi – as várias histórias da música brasileira se entrelaçam para formar uma só. Nando virou um grande hitmaker, comparável a Lulu Santos, e que também lota shows pelo país. Sua turnê Nando Hits é uma prova.

Agora, na turnê dos Titãs, quando ele chega ao microfone para cantar as músicas que fizeram sucesso com sua voz na banda, recebe uma grande ovação da plateia – principalmente no set dedicado ao Acústico MTV e que também incluiu uma homenagem a Marcelo Frommer, morto em 2001, em um atropelamento. A filha do guitarrista, a cantora Alice Frommer, interpretou Toda cor (do pai) e Não vou me adaptar (de Arnaldo e Nando). 

Em alguns shows da turnê, Nando causou certa revolta nos bolsominions, que ouviram o "santo" nome do ex-presidente dentre os maiores vilões da história da humanidade na letra de Nome aos bois. O compositor também pode estar desagradando alguns fãs novatos desavisados, quando canta Igreja. No Recife, a letra que começa "Eu não gosto de padre…" foi cantada no dia em que estourava a acusação do envolvimento de um padre de Arcoverde em um estupro.

Nessa turnê, após quase 20 anos, Nando voltou a tocar contrabaixo. Na carreira solo, o músico vem tocando violão. Ele disse, na coletiva de anúncio dessa turnê, em novembro de 2022, que voltar a tocar baixo era como andar de bicicleta. Mas parece que houve um estranhamento na "cozinha" da banda, no começo do show no Recife. Charles Gavin olhou algumas vezes meio estranho para o colega. Será que era porque o baterista estava prestes a vestir a camisa do Náutico? Esta foi a primeira das camisetas dos três principais times pernambucanos que ele vestiu durante o show, arrancando gritos, aplausos e até vaias! (Esses torcedores estão loucos? Embora alguns façam coisa muito pior do que vaiar um ídolo por causa de uma camisa de time). Há controvérsias sobre a mais aplaudida: acho que foi a do Sport (a jornalista e rubro-negra Luciana Veras concorda), entregue pelo jornalista esportivo Marcelo Cavalcante. Mas o desenhista tricolor Flavão defende que foi a do Santa Cruz.

Há controvérsias também sobre a quantidade de gente dentro do Classic Hall. A assessoria de imprensa informou que foram vendidos 13 mil ingressos, a quantidade comportada pela casa de shows, que estava com som ecoando muito bem no ambiente, sem aquele recorrente bate-rebate de sua acústica, que às vezes embola o som ou deixa o ouvinte em algum "ponto surdo" do espaço.

Porém, nem tudo foi perfeito naquela noite. Além de os Titãs terem suprimido o poema Andar andei, de Torquato Neto, em Go back, pessoas relataram confusão nos guichês de entrada, principalmente no momento mais próximo da hora marcada para começar o show, 22h. Houve relatos de que muitos ingressos sequer foram checados pelos funcionários, devido à pressa para a entrada do público. 

Mas é possível que o problema maior desse evento tenha sido tratar a "Pista Flores" como "pista". Ali eram apenas as beiradas, os arredores da pista da casa de shows (totalmente considerada prime e chamada de "Pista Diversão"). Muitos fãs que estavam na Pista Flores, que seria a "pista normal", mal conseguiram ver o palco, por conta da distância, dos elevados do piso e também do teto baixo dos camarotes, isso somado à grande quantidade de pessoas. Restava apenas uma faixa no campo de visão dos espectadores.

Pelo menos, essas pessoas adquiriram ingressos para ver esse momento histórico de reunião dos Titãs. Porque milhares não conseguiram comprar (seja pelo preço ou porque os bilhetes esgotaram) ou até vender (principalmente os fãs da Paraíba, que compraram ingressos para o show no Recife, bem antes de ser anunciado o de João Pessoa). Há também os que caíram em golpes nas redes sociais. Um lugar maior teria resolvido o problema de comportar mais público. Em Salvador, o show foi na Arena da Copa: mais barato e com mais gente. No entanto, a Arena Pernambuco ainda é uma opção que causa arrepios nos espectadores, só de pensarem "na volta".

E por falar em volta, não pensem que os Titãs voltaram. Essa é apenas uma turnê comemorativa. E muito bem-produzida. Surpreende a iluminação primorosa, as projeções nos telões, assim como o registro visual do show, que não é feito de forma tradicional e chapada, apenas com as câmeras paradas de frente para o palco. Além delas, há cameramen circulando no palco com grande-angulares, que dão uma dimensão da dinâmica entre os artistas. 

Logo no início do show, às 22h30, causou muita vibração a chegada da banda ao palco, com as silhuetas dos músicos em contraste com o telão em branco (assim como a capa original de Help dos Beatles) e ao fundo tocava um sample de bateria eletrônica que logo se mesclaria ao arranjo de Diversão, a primeira do setlist de 31 músicas.

Diversão é cantada por Paulo Miklos, voz forte e rascante das músicas mais pesadas, aproveitou seu momento catártico em Bichos escrotos (cuja radiodifusão foi censurada nos anos 1980, por conta do palavrão). Sérgio Britto, um dos vocais mais marcantes e diversificados da banda, trouxe sua amplitude de interpretação, que vai da suavidade de Go back ao peso de Polícia, Desordem, Homem primata e AA UU. No entanto, outra voz importante do grupo está afetada: por causa do câncer na garganta, Branco Mello surgiu com um fiapo de voz rouca. Por isso, foi bonito e ainda mais emocionante vê-lo dançando e cantando, como pôde, o mega-sucesso Flores, além de Cabeça dinossauro, Eu não sei fazer música, 32 Dentes.

Difícil imaginar que depois dessa turnê sensacional, cada um voltará à sua normalidade. Paulo Miklos para sua carreira de ator e cantor solo. Arnaldo e Nando aos shows de suas aclamadas carreiras. Charles Gavin para suas pesquisas musicais e programas de TV. E os remanescentes, Tony Belloto, Sérgio Britto e Branco Mello voltando a se apresentarem como um trio – acompanhados, desde 2016, por Beto Lee, filho de Rita e Roberto.

Beto não participou dessa turnê, por conta da doença da mãe e porque Liminha já havia aconselhado e "ameaçado" cada um dos Titãs que encontrou pelo caminho: "Por que vocês não voltam?", "Por que não fazem uma turnê", "Se vocês voltarem, se não me chamarem pra tocar, vocês vão ver". Foi mais ou menos dessa forma que Liminha contou, na entrevista coletiva do anúncio da empreitada, como abordou os músicos. Mas eles já estavam cogitando fazer uma turnê comemorativa do começo da carreira - quando, lá em 1982, os alunos do Colégio Equipe de São Paulo formaram uma banda. Charles Gavin, que entrou em 1985, e Tony Belloto eram apenas frequentadores da escola, que abrigava eventos culturais e shows, muitos deles produzidos pelo amigo deles Serginho Groisman.

A banda surgiu em um momento de reconstrução do país, ainda sofrendo censura, mas, ao longo dessas décadas, principalmente nos anos 1980, ajudou na formação cultural, musical, política e comportamental de toda uma geração. Ao tocar na rádio e na televisão (que os anos provaram, não deixou as pessoas tão burras assim; o pior estaria por vir…), sua música, bem-pensada, bem-gravada e bem-executada, conseguia um alcance imenso, era ouvida por todas as classes sociais. Hoje talvez parte da plateia dos Titãs tenha se "endireitado" e só goste do lado soft da banda.

A turnê Todos ao mesmo tempo agora é uma máquina do tempo que nos transporta (go back) de volta ao passado. Ao fim da viagem sonora e imagética, voltamos ao presente, em que os Titãs ressurgem, mais uma vez, em um momento histórico de reconstrução do país, e novamente com a confirmação: diversão é solução, sim.

DÉBORA NASCIMENTO é repórter especial da Continente, crítica de música e colunista da Continente Online.

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