Entrevista

“Amadurecimento é algo que a gente vai vivendo”

Arnaldo Antunes completa 60 anos, trazendo como marca uma intensa e múltipla produção artística, na qual trafega, sobretudo, pela interseção entre o experimentalismo e a matriz popular

TEXTO Leonardo Vila Nova

02 de Setembro de 2020

Arnaldo Antunes em seu sítio

Arnaldo Antunes em seu sítio

Foto José de Holanda

[conteúdo na íntegra em nosso App | ed. 237 | setembro 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

Em 2 de setembro de 1960 nascia, em São Paulo (SP), Arnaldo Augusto Nora Antunes Filho. O quarto de uma família de sete filhos. Nasceu predestinado à arte. Por volta dos 13 anos, esboçou os primeiros versos. O rapaz de múltiplos interesses estéticos se lançou a experimentar as possibilidades que o uso da palavra lhe permitia, atuando em territórios artísticos diversos. Foi na música que, a partir de 1984, o Brasil passou a conhecê-lo como Arnaldo Antunes, um dos vocalistas da banda de rock Titãs. Certamente, o mais “estranho” entre eles, com visual e performances que chamavam atenção. Na sua presença e no seu repertório, convergiam a poesia concreta, o rock, a antropofagia modernista, o Tropicalismo setentista e outras referências deste paulistano cosmopolita.

Hoje, são cerca de 40 anos de trajetória artística, em que Arnaldo Antunes se lançou em variados caminhos, com uma produção prolífica e intensa na música, literatura, artes visuais, videoarte... De 1981 até hoje, ele tem na conta: 16 exposições individuais; 37 exposições coletivas (algumas estiveram na Alemanha, Estados Unidos, Cuba, Espanha, China/Macau); 24 livros; sete discos gravados com os Titãs (com a qual esteve de 1982 a 1992) e dois álbuns com os Tribalistas (com Carlinhos Brown e Marisa Monte); um álbum do projeto Pequeno Cidadão (com Edgard Scandurra, Taciana Barros e Antonio Pinto e seus respectivos filhos); um álbum do projeto A curva da cintura (também com Scandurra e com o músico malinês Toumani Diabaté); e 17 álbuns solo (incluindo a trilha sonora para o espetáculo de dança O corpo, do Grupo Corpo, em 2000; e o mais recente trabalho, O real resiste).

Em virtude da pandemia da Covid-19, Arnaldo chega aos 60 anos em isolamento no seu sítio, em Piracaia (SP). Foi de lá que ele conversou com a Continente, através de chamada de vídeo. Esta foi a sua primeira entrevista desde março, quando entrou em quarentena. A conversa ocorreu no dia 29 de julho e havia uma expectativa – mas não perspectiva – para o retorno às suas atividades, em especial para a estreia do show O real resiste (em que dividirá o palco com o pianista pernambucano Vitor Araújo), que estava em vias de acontecer quando o Brasil se viu instado a ficar em casa. De fala serena e gentil, Arnaldo contou sobre como tem sido a pandemia e o isolamento, a passagem do tempo, como enxerga sua própria arte, Titãs, Chico Science, o universo infantil com o qual também dialoga, o cenário político e social brasileiro e o seu novo show.

CONTINENTE Você está chegando aos 60 anos em meio a uma pandemia e está recolhido no seu sítio. Imagino que você nunca tenha passado tanto tempo assim, isolado, desconectado da sua vivência cotidiana – shows, entrevistas e os compromissos habituais de trabalho. Como é que está sendo para você esse isolamento? Está aí desde quando?
ARNALDO ANTUNES Lá pelo dia 10 de março, mais ou menos, eu vim para cá. E a gente está vivendo, no dia a dia, sem saber o quanto isso vai durar, né? Vendo as notícias e, de certa forma, com toda a rotina diferente do que eu vinha vivendo. Nunca passei tanto tempo assim sem fazer show, que é uma coisa que eu sinto muita falta. Nos primeiros meses, eu me senti muito imobilizado, sem vontade de produzir nada. Eu falava: “Tem que parar com tudo. As pessoas têm que aprender a parar. Eu preciso parar”. Então, fiquei só nas tarefas domésticas, cuidando de bicho, da horta, lendo, mas sem conseguir criar nada. Aos poucos, eu fui voltando, consegui retomar um pouco da minha produção. Eu estava com um livro de poemas praticamente pronto e acabei refazendo muita coisa dele, mexendo na ordem, fazendo novos poemas, tirando alguns. Isso deve ser lançado só no começo do ano que vem, por conta da pandemia, pois agora não dá para fazer um lançamento. Eu já tinha mostrado para a editora e estava satisfeito com o que tinha, até que eu voltei a mexer nele e isso me trouxe um monte de coisa. Também comecei a compor algumas canções em parceria, online, com a Marisa [Monte], o Domenico [Lancellotti], o Cézar Mendes, parceiros queridos que foram me mandando coisas nesse período.

É um período muito imobilizador, não só pela quebra da rotina, mas pelas notícias todas – seja da pandemia, da questão ambiental, da política no Brasil, em que estamos vivendo um momento dramático, muito difícil de perceber as coisas, e, ao mesmo tempo, muito mobilizado por pedidos de auxílio, de dar visibilidade a questões urgentes, de se solidarizar com comunidades que estão precisando. Tudo isso é muito diferente do ritmo de vida, acho que é para todo mundo. Para mim, foi especialmente paralisante nos primeiros meses. Depois, aos poucos, fui tomando o gosto de voltar a produzir.

Claro que tem dias que eu fico mais deprimido, angustiado, como todo mundo. Eu vinha num processo de ensaios para estrear um show que foi abortado, cancelado ou adiado para “não se sabe quando”. A gente já estava a duas semanas da estreia, nos últimos ensaios, com todas as ideias de figurino e cenário levantadas, quando começou a quarentena e a gente teve que paralisar esse processo, com o desejo de retomar quando for possível.

CONTINENTE Você já declarou que não é muito ligado em efemérides e nem em revisitar muito o passado. Mas, se a gente for exercitar aqui esse olhar sobre a sua trajetória artística – que já vai em, pelo menos, 40 anos – como você avalia o processo da passagem do tempo influindo no seu fazer criativo, seja no procedimento, no repertório, nos interesses de expressão? Como você avalia a maturidade nesse sentido, se for olhar o Arnaldo dos 20 anos e o Arnaldo dos 60?
ARNALDO ANTUNES Eu acho que essas idades redondas – 40, 50, 60 anos – acabam mobilizando uma energia coletiva, dos amigos. Isso tem um valor simbólico, de serem datas em que você repensa tudo o que fez, inicia um novo ciclo, mas é claro que cada dia é um novo aniversário, é réveillon, a passagem do tempo é sempre gradual. Mas são oportunidades de comemorar e criar algum evento em torno do tempo passado.

No período em que eu completei 50 anos, por exemplo, eu gravei o Ao vivo lá em casa. Mas, agora, como eu falei, eu vinha muito paralisado pela situação da pandemia, da política, da quebra da rotina. Então, eu estava com muita preguiça dos convites para fazer live. Eu até tenho assistido algumas lives, assisti à do Curumin, à do Péricles. Mas tenho recusado muitos convites para fazer, porque não estava condizendo com meu momento interior, eu precisava desse stop também. Acho que tem um significado importante para mim, interiormente.

Mas foi dando um gosto, fui retomando um pouco o interesse em fazer alguma coisa. Então, aproveitei essa data do meu aniversário para pensar em fazer uma live comemorando os 60 anos. O show que eu ia estrear em março e que acabou não acontecendo, me deu vontade de fazê-lo num teatro vazio, só eu e o Vitor Araújo – é um show de voz e piano, que inclui as várias músicas d’O real resiste, que já tem uma formação enxuta, mas também algumas músicas retrospectivas da carreira, relidas para esse formato, que é uma coisa inédita, eu nunca tinha feito algo tão intimista e, ao mesmo tempo, trocando essa informação com um músico que eu admiro pra caramba, com uma sensibilidade muito especial. Então, quis aproveitar a data, a efeméride dos 60 anos. Como eu tinha feito, aos 50, o Ao vivo lá em casa, que era um show de banda, agora, aos 60, fazer um show de retração emocional, de condensação, com voz e piano, que já vinha sendo preparado para estrear. Tivemos essa ideia de fazer num teatro vazio, com pouca gente na equipe e os cuidados necessários. Mas ainda não sabemos, a um mês da data, se será possível. Temos que ver se é viável, pelas condições sanitárias, de ter um teatro com gente da manutenção, com segurança, para não ter perigo de contágio, e se temos condição técnica para fazer isso.

A coisa interior do amadurecimento é algo que a gente vai vivendo e sentindo. Claro que eu teria mil coisas para falar sobre o processo de envelhecer, de ver os filhos crescendo, de ter um olhar mais maduro sobre a criação e como a depuração vai acontecendo no decorrer do tempo, o aprendizado desses anos todos. Mas acho que qualquer coisa que eu diga é melhor dita nas minhas músicas – como Na barriga do vento, que fala do filho que cresce; ou como Envelhecer, que gravei por volta dos meus 50 anos, que já era o começo do processo em que a gente sente a passagem do tempo, mas sem querer perder a vitalidade. Acho que tem o ganho de amadurecimento, sim. É claro que a gente não tem a mesma vitalidade da juventude, mas, de certa forma, quer manter uma inquietação. Eu espero, aos meus 60, aos 70, nunca perder uma certa inquietação. Eu quero sempre coisas que me façam levantar do sofá mais do que coisas que me façam sentar na poltrona.


Persona de palco de Arnaldo Antunes, na banda paulistana
Titãs, anos 1980. Foto: Silvio Luiz Pinhatti/arquivo pessoal do artista

CONTINENTE Perguntei isso porque, na minha cabeça – de quem nasceu nos anos 1980, cresceu nos anos 1980 e 1990 – há uma imagem muito marcante, que é a do Arnaldo com os cabelos espetados, sem costeleta, camisa de botão branca, com aquelas danças e performances, o canto berrado, gritado. Gradativamente, essa imagem foi dando lugar a algo de maior suavidade, seja no visual, na música, no próprio canto. Então, houve um caminho aí que denota outros interesses de expressão, enfim...
ARNALDO ANTUNES Eu acho que tem isso mesmo, uma serenidade que vai surgindo com a passagem do tempo. Agora, eu acho que isso não significa perda da inquietação, sabe? Eu gosto sempre de estar experimentando soluções novas. Acho até que fazer um show só de voz e piano, como estou envolvido agora, traz uma serenidade, mas também uma inquietação, por ser uma coisa que eu nunca tinha feito. Nada me impede, por exemplo, de fazer um disco de punk rock no futuro, também. Isso é um pouco conquista do tempo, que é conseguir exercer liberdade e uma capacidade de renovação de linguagem constante. Isso eu não quero perder. O acomodamento que eu não quero é o da minha linguagem. Então, mesmo que eu tenha as limitações todas que a idade também traz – é outra vitalidade, outra saúde, outra relação com as questões hormonais –, o desejo de renovação da linguagem é algo que não vejo desaparecer do meu interesse, acho que isso está sempre presente, de alguma forma.


Personalidades e talentos distintos fortaleceram a primeira formação dos Titãs.
Foto: Bel Pedrosa/Folha Imagem

CONTINENTE Sobre O real resiste, você disse que já estava ensaiando com Vitor Araújo para o show, e aí veio a pandemia. De lá pra cá, você chegou a mudar alguma coisa do repertório que será apresentado?
ARNALDO ANTUNES O show estava praticamente pronto. Teve todo um processo, mais de um mês de ensaios, em que a gente foi chegando num roteiro, experimentando várias canções do meu repertório, vendo o que resultava melhor, mais original. Também não é um show só de canções, eu quis entremear as canções com poemas, em diálogo com o piano do Vitor. É, também, um pouco performance, com poesia misturada às canções. Então, é um formato em que o roteiro era muito importante, e esse roteiro foi depurado durante um período grande de ensaios. Eu não alteraria muita coisa dele, mesmo hoje em dia. A gente tem registros dos ensaios, inclusive, às vésperas de parar tudo, já com as projeções de cenário, projeto de luz esboçado e com o roteiro todo definido, num pequeno teatro, num palco. Deu pra ter um registro disso, eu tenho assistido e curtido muito. Passei um tempo distante disso, nesse período em que eu não estava nem um pouco ligado à criação, ao trabalho. Mas, recentemente, voltei a assistir e ouvir as coisas do ensaio. Talvez – por ter feito muitos novos poemas nesse período da quarentena – eu incluísse alguma coisa disso, mas só quando eu me encontrar com o Vitor para “reensaiar” vou saber o que realmente mudaria. Mas acho que é um roteiro muito bem costurado para mostrar o repertório do disco novo e releituras simbólicas de fases marcantes da minha carreira, canções que, inclusive, eu não cantava há muito tempo. Acho que relê-las nesse formato é uma coisa muito delicada. Tem coisas que dão certo, outras que não. Por exemplo, uma coisa que deu muito certo e que era um pouco imprevisto é uma releitura de Saia de mim, da época dos Titãs, do último disco que eu gravei com eles, o Tudo ao mesmo tempo agora. Na gravação original é um rock pesado, em que eu canto berrado, e a gente fez uma releitura de voz e piano que ficou incrível! Ao mesmo tempo, canções que achei que se adequariam bem, não conseguimos chegar a uma solução e acabaram ficando de fora. Claro que a gente vai retomar esse trabalho no pós-isolamento, e é na volta dos ensaios que a gente vai sentir o gosto do roteiro. Mas, pelo que eu já assisti aqui, fiquei muito entusiasmado.

CONTINENTE Talvez pouca gente saiba, mas o primeiro disco que você gravou na vida não foi com os Titãs, mas como integrante da Banda Performática, em 1982. Só que o trabalho da Banda Performática era mais ligado às artes visuais do que propriamente à música, não é?
ARNALDO ANTUNES A Banda Performática era um projeto do [José Roberto] Aguilar, que é artista plástico, também escreve, fazia videoarte. Eu morava na casa dele, no começo dos anos 1980, eu e a Go [Regina de Bastos Carvalho], com quem eu era casado na época, e começamos a fazer umas performances juntos. Aí surgiu a ideia de fazer uma banda que misturasse performance com música, artes visuais e cênicas, era bem híbrido. Era um projeto do Aguilar do qual a gente participava, não só eu e a Go, mas também o Paulo Miklos, o Thomaz Brum, amigos que foram se juntando nesse grande projeto, que acabou virando uma banda de 10 pessoas ou mais. Isso é uma curiosidade: o primeiro disco, que foi o único disco que a gente gravou – acho que o Aguilar fez outros, com outras formações – foi produzido pelo Belchior. E o Belchior foi o primeiro intérprete a gravar músicas minhas. Ele acabou se encantando por duas músicas minhas que estavam no disco da Banda Performática – Estranheleza [de Arnaldo Antunes] e Ma [de Aguilar/Arnaldo Antunes/Nuno Ramos]. Foi incrível, porque eu era um menino, 20 e poucos anos, e o Belchior gravar essas duas músicas foi um presente. Eu fui para o Rio de Janeiro, acompanhei as gravações na época. Desde o colégio eu já compunha algumas coisas do que viria a ser os Titãs, que começou em 1982, mas a minha primeira banda foi a Banda Performática.


O trio de Tribalistas: Arnaldo com Carlinhos Brown e Marisa Monte.
Foto: Marco Froner/Divulgação

CONTINENTE Nos Titãs, você acabou colocando em prática essa coisa da performance, dessa persona artística que eu citei, que gerava certa estranheza, só que a banda também teve um alcance popular muito grande – o rock brasileiro, nos anos 1980, estava bombando na mídia. E a banda, como um todo, tinha essa característica, vocês trabalhavam com muitos elementos – era uma coisa meio punk, meio new wave, uma mistura de coisas. Durante os 10 anos em que você esteve nos Titãs, como vocês conciliavam essas “nuances”, da estranheza ao popular?
ARNALDO ANTUNES Eu acho que existe muito preconceito de ambos os lados, seja das pessoas que defendem uma cultura de massa, popular e acham que qualquer estranhamento ou novidade vai ser uma coisa não assimilável pelo grande público; seja das pessoas que estão interessadas em fazer uma linguagem experimental e não veem a possibilidade de isso ser conjugado com a cultura de massas. E a gente tinha esses dois lados, de algo que introduzisse algum estranhamento, alguma novidade na consciência e na sensibilidade das pessoas. Mas, ao mesmo tempo, a gente acreditava que era possível isso ser popular. A gente adorava televisão, adorava fazer os programas de auditório, e tudo isso fazia parte também do nosso repertório.

Claro que a gente era uma banda que tocava rock, reggae, punk, já tinha uma diversidade da natureza híbrida, de serem muitos compositores na banda e de a gente curtir sons diferentes, mas tinha também uma influência forte da tradição em canção popular brasileira, que a gente ouvia e via os shows quando era adolescente, nos anos 1970, no colégio onde a maioria dos Titãs estudou, o Colégio Equipe. Tinha uma programação cultural em que a gente assistia, todo fim de semana, a shows incríveis: Caetano, Gil, Novos Baianos, Clementina de Jesus, Cartola, Nelson Cavaquinho, Hermeto Paschoal, Luiz Melodia, o próprio Belchior. Seja no pátio ou no teatro da nossa escola, a gente estava muito ligado na programação cultural, que era feita pelo Serginho Groisman. A gente foi formado por uma geração da música popular brasileira que tinha essa conjunção de apelo de massas, popular, com uma inserção de novidade, de originalidade, de criar estranhamentos, como a gente viu na Tropicália, no trabalho do Walter Franco. Acho que vem toda uma sofisticação da música popular brasileira dos anos 1970, que a gente, de certa forma, herdou, e muito com a cultura do rock mesmo, do punk, como você falou. A gente acreditava nessa coisa, em que eu ainda acredito – apesar de parecer um tanto utópica nos dias de hoje, em que parece que o mainstream se separou muito da coisa experimental –, que as pessoas têm sede de novidade, de informação nova, que é dever não só do artista experimental, mas qualquer artista, de estar sempre procurando criar informação original, renovação para a sensibilidade, de buscar não apenas repetir o que já está estabelecido como fórmula do sucesso. É isso que me move, artisticamente, até hoje e era o que movia a gente ali nos anos 1980.

CONTINENTE
E quando você ingressou na carreira solo foi uma forma de explorar outros caminhos estéticos, além do rock, e de ter mais autonomia para decidir os rumos da própria criação nesse campo. A palavra é a matéria-prima principal do seu trabalho, e através do ingresso na carreira solo você conseguiu radicalizar essas possibilidades de experimentação da palavra, seja a palavra escrita, a palavra falada ou cantada, a palavra como recurso visual ou como elemento na espacialidade. Fala um pouco dessa migração para o solo e o que isso lhe trouxe de possibilidades.
ARNALDO ANTUNES Ao sair dos Titãs, eu tinha esse desejo de exercer uma maior liberdade, seja de gênero musical, de poder cantar com várias formações instrumentais, de cantar em outras regiões da minha voz a que eu estava acostumado a cantar nos Titãs – eu cantava em tons mais altos do que a minha região natural de voz, para poder cantar berrado e aquilo ser compatível com o peso do som que a banda exigia. Tinha uma série de desejos de exercer uma liberdade maior, de experimentar caminhos criativos que não caberiam naquele consenso dos Titãs.

Mas, paralelamente a isso, eu já tinha o meu trabalho com poesia, e também desde a Banda Performática, com a coisa da performance. Então, logo que eu saí dos Titãs, quis fazer um projeto misturando o que eu vinha fazendo na poesia e na música, mas que não cabia muito bem com a linguagem dos Titãs. Eu misturei tudo isso no projeto Nome, que envolvia não só um disco, mas também vídeo, com animação. E eu fui seguindo na carreira solo, musicalmente, mas continuei exercendo esses canais entre as linguagens, que é uma coisa que me interessa muito e me possibilita transitar entre os diferentes códigos. O trabalho com a palavra me levou para a música e a palavra cantada; para a poesia, a palavra escrita; para a performance, a palavra falada ou entoada ou berrada, ou para a palavra distribuída no espaço, no caso de um cartaz ou de um objeto, ou a palavra em movimento na tela de um vídeo... tem essa intersecção. Tudo o que eu faço envolve a palavra em si, e eu não me sinto especializadamente músico ou artista visual, não gosto dessa ideia de especialização. Acho que a palavra me levou a poder transitar entre os diferentes territórios da linguagem.


Chico Science e Arnaldo, na época da gravação do disco O silêncio. 
Foto: Jota Correia/Arquivo pessoal do artista

CONTINENTE Quero pontuar um momento: seu encontro com Chico Science, na música Inclassificáveis, do seu disco O silêncio. Que aspectos da música de Chico, e do próprio Chico, lhe fisgaram para ensejar o convite para essa participação?
ARNALDO ANTUNES Ontem mesmo eu estava assistindo a algumas coisas no YouTube, com meu filho Tomé, que está em quarentena com a gente aqui no sítio, e aí eu perguntei: “Ah, Tomé, quer ver a minha participação no show do Chico Science, no Bem Brasil?”, que foi um convite que ele me fez para eu participar no show. E foi superlegal, um encontro com muita afinidade energética. Não sei se foi a primeira vez que a gente se encontrou, mas tem o registro disso no YouTube, com a qualidade de vídeo muito ruim, mas que deu pra gente curtir. Na hora que você falou, eu pensei: “Puxa, ontem eu estava com a cabeça nisso”.

A Nação Zumbi, logo que surgiu, me deixou muito encantando. Eu lembro que, nessa época em que eu estava gravando o disco O silêncio, produzido pelo Suba, tinham duas coisas que estavam me encantando no cenário da música brasileira, pela originalidade, que me influenciaram muito: a Nação Zumbi, com o Chico, e o Carlinhos Brown, não sei se ele já tinha lançado o Alfagamabetizado. E chamei os dois, quis que os dois participassem d’O silêncio. Os dois participaram e foi uma realização muito feliz. 

E o Chico foi incrível, porque essa canção, Inclassificáveis, acho que já compus um pouco impactado pelo trabalho da Nação, pelo jeito dele cantar, influenciado por aquilo, que era uma novidade com muito frescor e vitalidade na época. Eu o chamei para participar por conta dessa afinidade. E ele fez uma participação incrível, a gente teve esse contato, ele era uma pessoa muito doce, muito gentil. E isso foi uma semente, né? Depois, quando eu estreei o show O silêncio, no Rio de Janeiro, ele foi assistir, a gente se reencontrou, e depois de um tempo teve a morte dele.

Eu acho que o Chico era uma promessa de uma produção incrível que foi abortada, um futuro abortado ali. Então, foi uma tristeza muito grande, mas, ao mesmo tempo, me aproximou de todo o trabalho da Nação durante todos esses anos, participei de shows com a Nação Zumbi, depois cantamos juntos no palco algumas vezes, já fiz coisas com o Pupillo, com o Jorge Du Peixe. Então, tem isso: são afinidades que deixam frutos.

CONTINENTE Você também transitou pela criação para o universo infantil. A gente tem essa música hoje tão atual e atemporal, que é Lavar as mãos, o projeto Pequeno Cidadão, também. O que lhe aproximou desse universo infantil? Foi a paternidade que lhe propiciou isso?
ARNALDO ANTUNES Eu acho que uma conjunção de coisas, mas, sem dúvida, a paternidade me levou a criar muitas coisas sob a ótica infantil. Acho que fui muito inspirado pelos meus filhos pequenos crescendo e de olhar através dos olhos deles, as coisas, de pensar o mundo, toda uma experiência. Eu acho que aprendi com meus filhos tanto ou mais do que eles aprenderam comigo. Eles me inspiraram em várias criações, coisas que eu fiz, como Como é que chama o nome disso?, que era uma frase da minha filha Celeste; o livro As coisas é todo um pouco assim, também.

Mas também tiveram os convites, que acabam chegando e motivando a gente. A música Lavar as mãos foi um convite da TV Cultura para o programa Castelo Rá-tim-bum. Atualmente, ela ficou muito presente nos meios digitais, pela questão sanitária, de como evitar o contágio nesses tempos da pandemia. Muita gente vem me dizer que cresceu aprendendo a lavar as mãos com essa música. É uma coisa que ficou marcada, mas que eu fiz sob encomenda, com o tema dado. Também os convites do Palavra Cantada, nessa época e posteriormente. Várias vezes eu fiz canções com o Paulo Tatit – que tocava comigo e coproduziu meu primeiro disco, Nome – e a Sandra Peres.
Depois, eu fiz parte do Pequeno Cidadão, que era um conjunto de quatro pessoas – eu, Edgar Scandurra, Taciana Barros e o Antonio Pinto –, e todos éramos pais e já fazíamos músicas para os nossos filhos, de brincadeira, música para dormir, para comer, enfim... Já tínhamos um repertório feito para os filhos, que a gente resolveu juntar e fazer mais algumas músicas. Foi uma oportunidade também de a gente trabalhar com nossos filhos, seja em show, seja no estúdio, nas gravações. Então, eu gravei com o Pequeno Cidadão o primeiro disco, depois não dava para seguir em frente porque tinha minha carreira e começou a ficar muito difícil de acompanhar. Mas eles continuam, acho que fizeram mais dois discos, em um deles fiz uma participação especial.
Então, tem esses convites que chegam e que acabam levando a gente para um lado, para outro, como um convite para fazer uma música pra um filme, por exemplo, e aquilo acaba tomando um caminho que você não espera, ou como o Grupo Corpo, que me convidou para fazer a trilha para dança. Aquilo acaba levando a caminhos imprevistos.

Mas, sem dúvida, a paternidade me trouxe muita inspiração e a experiência de ver com um olhar renovado, associando até a questão do surgimento da poesia, o “ver com olhos livres”, do Oswald de Andrade, com um olhar infantil. Acho que isso foi uma influência forte no meu trabalho, seja na canção, seja na poesia.


Parceria recente e inédita com o pianista Vitor Araújo, em O real resiste.
Foto: Márcia Xavier/Divulgação

CONTINENTE Voltando a O real resiste: é um disco que tem recados políticos muito proeminentes, principalmente a faixa-título, com uma tomada de posição diante do contexto político e social que vivemos hoje no Brasil. Há alguns meses, você passou por duas situações desagradáveis que exemplificam essa “instabilidade democrática”: a música O real resiste foi cortada de um programa que seria exibido pela TV Brasil; e O pulso, utilizada à sua revelia em um vídeo de divulgação de um ato antidemocrático. Diante disso, e com todos os movimentos que o governo tem feito para sufocar a produção artística no Brasil e desmantelar o país como um todo, a arte é ainda uma trincheira de combate possível?
ARNALDO ANTUNES Quando eu digo “o real resiste” eu estou reivindicando um real, que é o que a gente nutre certa esperança de que se dê continuidade, os valores que a gente preza, que é a educação, a preservação do meio ambiente, o respeito às diferenças e à diversidade, uma menor desigualdade social etc. São valores que vêm sendo cada vez mais ameaçados. A gente vive um período de destruição dos valores e um desmantelamento das instituições, que preservavam – preservam, ainda – o espírito democrático. Na canção, eu vejo isso como um pesadelo, pela perplexidade que eu tive com o resultado das últimas eleições e o começo dessa destruição toda, naquela época em que a compus, logo após as eleições. Eu acho que esse pesadelo, de lá pra cá, foi aumentando, foi ficando mais profundo. E esse real é o que traz valores humanistas, que reage aos retrocessos e aos autoritarismos. A gente acredita que esse real sobreviva para resistir.

Quando eu falo “o real resiste” é porque, no território da arte, a gente pode afirmar a utopia como algo real. Mas, na verdade, eu estou dizendo que espero que essa realidade resista, porque a gente vem sendo muito massacrado, são muitos retrocessos, muitas formas de ameaças à democracia. A gente está numa situação muito... no meio de uma guerra. Eu me sinto numa situação de guerra, entendeu? Como se tivesse um tiroteio para muitos lados, destruindo tudo o que a gente preza. E a esperança, é claro, de resistência, de sobrevivência, de um ar cultural, da educação, das comunidades indígenas, tudo isso que vem sendo atacado, e eu espero que se reaja e sobreviva. Eu acho que esse pesadelo a que a música se refere está aí, e a gente precisa sobreviver, reagir e resistir a ele.

Essas duas questões que você levantou são sintomas um pouco desse ambiente destrutivo a que estou me referindo. Seja o uso indébito, o uso indevido, seja a censura que houve na TV Brasil à música O real resiste. Já a questão d’O pulso foi de um uso não autorizado. Na época, entrei com uma intimação e tiraram (o vídeo que utilizava a música) do ar. Depois, eu não quis mais levar adiante o processo. Não é uma coisa com a qual eu queira gastar minha energia. Fizemos todo o processo para que o vídeo fosse tirado do ar, foi tirado, e eu fiz um vídeo falando disso, nas minhas redes sociais, e a coisa repercutiu. É algo muito revoltante você ver uma criação sua ser usada contra tudo aquilo que você acredita. Eu vi uma situação parecida com o Tom Zé e o Zé Miguel Wisnik, que são parceiros muito queridos. Eu fiquei consternado de ver o vídeo do depoimento do Zé Miguel, comentando isso. E a gente vê o quanto é revoltante uma coisa dessas.

A gente vive um tempo de inversões, sabe? O uso da linguagem invertido, as verdades todas são invertidas, distorcidas. É uma época muito estranha, de uma maneira geral, em que a negação da verdade e a normalização do absurdo se tornaram corriqueiras. Isso gera não só uma revolta e uma indignação, gera uma perplexidade constante. É um período muito difícil de lidar.


Foto: José de Holanda

Eu me lembro que, na época em que surgiram a internet, as redes digitais e sociais, o Orkut, quando começou a existir todo esse “universo paralelo”, a gente tinha esperança de que fosse um mundo mais livre, onde a informação corresse de um jeito mais fluente, e de que isso ia trazer uma liberdade, uma visibilidade mais solidária e generosa com a diversidade, mas o que foi acontecendo é que se acirraram os guetos e a violência, a truculência, e isso é muito difícil de lidar, porque é tudo muito novo. Tecnologia digital, para mim, que cresci na coisa da cultura analógica – câmera fotográfica com filme, disco de vinil, depois CD... é tudo muito novo.

São coisas muito delicadas. Mesmo a questão das fake news, de como combater sem cercear a liberdade de expressão, ao mesmo tempo restringindo o ataque, a injúria, a difamação... como equilibrar esses valores, a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, impedir que essas redes de mentiras corroam até os direitos e as liberdades democráticas da população.

LEONARDO VILA NOVA, jornalista e músico.

Publicidade

veja também

Mulheres Adultas têm Pelos

Moisés Patrício

Inferno S/A (Apocalipse now)