Entrevista

"Vivemos na era dos milésimos de centavos"

Nos 30 anos do Manguebeat, Fred Zero Quatro, expoente do movimento e compositor da Mundo Livre S/A, fala sobre o novo disco da banda, 'Walking dead folia (Sorria, você teve alta!)'

TEXTO Débora Nascimento

01 de Fevereiro de 2022

Em novo disco da banda, Zero Quatro fala sobre temas que instigam posicionamentos

Em novo disco da banda, Zero Quatro fala sobre temas que instigam posicionamentos

Foto Marcelo Soares

[conteúdo na íntegra nas edições impressa e digital | ed. 255 | março de 2022]

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O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade?”. Esses são questionamentos do Manifesto Caranguejos com Cérebro, que o jornalista e compositor pernambucano Fred Zero Quatro escreveu em 1992, mas que parece ainda tão atual. Trinta anos atrás, esse texto lançava o Manguebeat, movimento que tiraria o cenário musical recifense da invisibilidade frente ao eixo Rio-São Paulo e do marasmo, projetando ao país diversas bandas e artistas, estimulando uma efervescência cultural que reverberou no audiovisual, na moda, na vida urbana e cultural da cidade.

No ano seguinte, Fred Zero Quatro, com sua Mundo Livre S/A, e Chico Science & Nação Zumbi assinaram contratos com grandes gravadoras para realizar os seus primeiros discos, Samba esquema noise e Da lama ao caos (lançados em 1994), duas obras-primas que figuram entre os maiores discos nacionais de todos os tempos. Iniciavam suas exitosas carreiras, até que veio a morte de Chico em um acidente fatal de carro em 2 de fevereiro de 1997. Ambas as bandas continuaram suas trajetórias lançando discos e fazendo shows, posteriormente em um contexto mais independente, com a crise da indústria fonográfica, após o advento do MP3, compartilhamento de arquivos e pirataria digital.

Em janeiro deste ano, a Mundo Livre S/A – formada por Fred e mais o irmão Xef Tony (bateria), Pedro Santana (percussão), P3dr0 Diniz (baixo) e Leo D (teclados, samples) – lançou, pelo Selo Estelita, seu 8o álbum de estúdio, Walking dead folia (Sorria, você teve alta!), gravado de forma semirremota durante a pandemia do novo coronavírus e trazendo diversas referências deste contexto social e político.

Se em Édipo, o homem que virou veículo, do aclamado Carnaval na obra (1998), Fred Zero Quatro cantava “Na secretaria uma enorme preocupação/ Com a nova epidemia que ameaça a população”, sobre a enfermidade do bicho-de-pé, hoje, um catastrófico problema de saúde abrange todas as classes sociais, mas sendo os pobres, novamente, os mais atingidos, com altíssimos índices de mortes, desemprego e fome (“Se espumar, é gente”, dizia Fred em Sob o calçamento, de 1994). Na temática do mais recente disco, ele aborda o contexto pandêmico no Brasil e as nefastas manobras da livre-iniciativa feitas por empresários que priorizam “a saúde financeira da empresa em detrimento da saúde dos clientes”, como afirmou em entrevista à Continente.

Nesta conversa, o compositor, produtor e músico pernambucano, que integra a lista da Rolling Stone dos 100 maiores artistas da música brasileira, discute diversos assuntos, como o consumo passivo de música e a distração provocados pela revolução digital, o fim da História como a conhecemos, a indiferença de compositores diante do caos na sociedade brasileira, a crônica dos acontecimentos nas letras de músicas, o sucesso do brega-funk, a hegemonia do sertanejo nas mídias, a sobrevivência dos músicos no cenário independente e o saudoso parceiro de movimento, Chico Science. Leitor assíduo e cidadão interessado em acompanhar as coisas e o caos do mundo (longe de estar livre), Fred, eterno devoto de Jorge Ben e Joe Strummer, fala também sobre o que escreveria se fosse elaborar o Manifesto Mangue hoje.

CONTINENTE O disco anterior, A dança dos não famosos, foi lançado em 2018, antes das eleições, do desmonte desse desgoverno e da pandemia. Qual a comparação que você pode fazer entre a motivação por trás da realização daquele disco e deste Walking dead folia (Sorria, você teve alta!)?
FRED ZERO QUATRO A dança dos não famosos não foi um álbum motivado por uma necessidade urgente de movimento social ou político. Foi uma necessidade de entrar em estúdio mesmo e que acabou coincidindo com a efervescência política, no caso aí, o golpe que afastou Dilma. Então, é um disco que reflete muito aquilo, tem alusões a figuras como Michel Temer, como o próprio Sérgio Moro, louvado seja o juiz e a virgem santa que o pariu. Então, reflete uma angústia, com a iminência de algo muito trágico que estaria para acontecer e uma denúncia sobre tudo isso. Enquanto em Walking dead folia, o processo de motivação foi o inverso, porque, na verdade, a gente tinha sido forçado a parar de trabalhar por uma realidade de pandemia. Isso afetou gravemente a sustentabilidade da banda. A gente estava precariamente sobrevivendo de uma ou outra live. Havia uma necessidade de gerar caixa, mesmo, na banda. Então, veio o convite do selo pernambucano Estelita. Desde o Por pouco (2000) que a gente não tinha uma proposta, um projeto realmente de nível profissional de dizer: “Ó, a gente tem interesse que vocês entrem em estúdio. A gente tem uma grana, uma estrutura pra bancar um disco de alto nível, com tudo pago, inclusive com adiantamento de royalties”. Então, pra uma banda que foi forçada a parar de trabalhar, que estava há mais de um ano vendo a situação de caos financeiro, foi uma motivação e tanto. Foi um privilégio, uma sorte, ter contado com esse convite. Em termos de temática, é como se o A dança dos não famosos estivesse prenunciando uma situação trágica e o Walking dead folia estivesse retratando a situação que a gente tinha prenunciado no álbum anterior.

CONTINENTE Antes de falar do Walking dead folia, queria resgatar o anterior. Você sente que o disco A dança dos não famosos foi prejudicado, de alguma forma, por aquele ambiente político de 2018? Ele foi lançado em julho, quando a campanha eleitoral já estava efervescente e basicamente só se falava em eleição.
FRED ZERO QUATRO Foi, exatamente. Primeiro, por ser um disco totalmente independente, diferente do Walking dead folia, que tem uma estrutura por trás em termos de logística, de produção, departamento de imprensa, tem toda uma estrutura profissional mesmo, embora não seja uma major. Inclusive, vou te falar, na situação do mercado fonográfico atualmente, mesmo nas grandes corporações da indústria fonográfica hoje no Brasil, pouquíssimos são os casos onde eles bancam tudo. A maioria dos casos de discos que saem aí com selos de grandes corporações, às vezes, a empresa só fez distribuir o disco pronto. O Estelita é um selo independente de Pernambuco que dá aos artistas o tratamento que pouquíssimas gravadoras dão hoje. Sei disso porque tenho amigos que gravam os discos em grandes estruturas e às vezes entregam o disco pronto. Só contam mesmo com a distribuição e divulgação. A dança dos não famosos era totalmente independente. A gente mesmo que saiu fazendo parceria com estúdio, brodagem e tal. Não tinha departamento de imprensa, de marketing, não tinha clipe, não tinha nada. Esse contexto prejudicou muito, no sentido de que não tínhamos um planejamento. A gente começou a mixar e foi estendendo o prazo indefinidamente. E uma faixa como Eletrochoque de gestão, que era uma das mais dançantes, tinha potencial, mas já não se falava em Temer. Então, o disco sofreu uma espécie de gap, de delay, em termos de perder o timing. Então, era um disco que falava de um processo de governo de transição, onde Temer, junto com Cunha e a Lava Jato, inviabilizaram o governo Dilma. Só que o disco saiu, como você falou, já em plena campanha, em que Bolsonaro e o esquema dos algoritmos, das fake news, já eram dominantes. O álbum traz uma espécie de narrativa que já chegou meio datada, entrou no cenário quando a discussão era totalmente outra. Já era uma questão de intolerância absurda, de discurso de ódio, de gabinete do ódio dominando a discussão.

CONTINENTE Isso que você faz, nas suas letras, tem muito a ver com a tradição da música brasileira, que é essa crônica dos acontecimentos. Isso ocorria muito, principalmente na primeira metade do século passado. A gente também encontra na música da Mundo Livre S/A uma narrativa da história do Brasil. Mas agora queria que você falasse do Walking dead folia. Ele está sendo lançado num momento em que a pandemia está numa nova onda, a da variante ômicron. O seu planejamento era lançar no que seria o final da pandemia e foi surpreendido?
FRED ZERO QUATRO Tem música como, por exemplo, Baile infectado e Usura emergencial, que a gente lançou como single. Sabíamos que havia um grande risco de a velocidade dos acontecimentos tornar faixas como essas datadas, se atrasasse muito o lançamento. Então, a gente correu para lançá-las como single. Baile infectado ainda falava da crise do oxigênio em Manaus. Tinha coisas muito urgentes de uma indignação que era geral, que escandalizou o mundo inteiro. Então, Usura emergencial falava da coisa da eugenia, que escandalizou durante a CPI da Covid. A questão da Prevent Senior e de outros planos de saúde tratando o óbito como alta hospitalar. Priorizavam a saúde financeira da empresa em detrimento da saúde dos clientes. A gente sentia que faixas como aquelas, que eram mais específicas com algum episódio, tinham que ser lançadas antes. Outras tinham uma sobrevida, porque falavam de um ambiente geral de pandemônio, de pesadelo. Queira ou não, é um álbum de pandemia, de um ambiente de crise, de drama. Se eu fosse fazer algo agora, os temas e os singles que fossem sair hoje, era essa questão da vacinação infantil, a coisa da volta às aulas e as crianças ainda não vacinadas. Acabou que a atmosfera geral em torno da temática do álbum corria o risco de ficar meio superada com esse adiamento para 2022. A gente queria lançar em 2021, ainda que fosse final do ano. A assessoria de imprensa não achou interessante que fosse lançado em dezembro, porque é recesso das redações principais dos grandes veículos. Nos stories da Mundo Livre S/A, é grande a quantidade de gente repostando tanto a capa quanto algumas faixas do álbum. Você vê que é um álbum que chega num contexto em que o debate que ele levanta é completamente atual e válido ainda.

CONTINENTE A frase “Sorria, você teve alta!” do título do álbum faz referência direta à frase “óbito também é alta”, que apareceu na denúncia contra a Prevent Senior durante a CPI da Covid. Os donos do plano de saúde são roqueiros. Queria que você, que é superfã de Joe Strummer (vocalista do The Clash), me falasse desse movimento estranho, ou nem tanto, desses roqueiros de direita ou de extrema direita. Como vê a movimentação desses conservadores que são roqueiros?
FRED ZERO QUATRO É muito estranho. Mas não é uma coisa nova. Elvis Presley, no final da vida, era um cara meio de extrema direita. Chegou a se encontrar na Casa Branca com Nixon e queria participar de uma espécie de reação à influência dos Beatles e tal. Acho que, se Elvis fosse vivo, com certeza, ele seria antivacina, negacionista, trumpista. Não é uma coisa completamente nova, mas, se for pegar o ideário ligado ao rock’n’roll, à coisa da anarquia, do sexo, drogas e rock’n’roll, da ligação com Timothy Leary, Woodstock, LSD, dentro daquele contexto revolucionário de 1968, o rock fazia parte daquelas bandeiras de contracultura. Ou seja, contracultura no sentido de contestar a opressão aos ideais libertários. Então, é muito louco. A Mundo Livre S/A levanta isso já no seu nome. A questão da liberdade hoje é mais atual do que nunca. E isso está por trás, inclusive, dessa narrativa antivacina. O próprio Ministério da Saúde e o do dos Direitos Humanos publicaram notas oficiais colocando a vacina dentro desse âmbito dos direitos humanos. É muito absurdo como a liberdade hoje se coloca no centro de uma discussão justamente associada à discussão do negacionismo, como “Eu sou livre para ser negacionista”. Com isso, foi abaixo todo o legado do rock’n’roll como uma filosofia libertária no sentido de uma coisa positiva, a favor do crescimento individual, da evolução da sociedade, de se libertar do discurso criacionista, bíblico. E hoje é o contrário, parece que tem uma parte do circuito do rock’n’roll que enxerga essa questão da liberdade num outro sentido, de negar a ciência. A liberdade para abraçar o poder da fé. Acho que vai demorar muito tempo pras ciências humanas e sociais terem o distanciamento histórico, a ponto de ter ferramentas para analisar profundamente isso que a gente está vivendo. Outro dia estava vendo um jornalista que eu admiro, o Rodrigo Vianna, do 247, que foi passar férias em Barcelona – aliás, é a cidade que eu mais me encantei nas nossas turnês, se eu fosse escolher uma cidade para morar, eu escolheria Barcelona –, ele disse que ficou horrorizado, no mês passado, quando foi tirar férias e, no primeiro dia lá, se deparou com uma manifestação de jovens mochileiros de bandana, antivacina, protestando contra a exigência do passaporte vacinal. Então, isso tudo é algo que vai dar muito trabalho para os sociólogos e antropólogos se debruçarem nas próximas décadas. Hoje em dia, fico me questionando, inclusive, se essa “revolução dos algoritmos” não põe em xeque a atividade do historiador. Porque, quando se fala que alguém como Sérgio Moro ou Olavo de Carvalho, “vai para o lixo da História”. Como assim? Mas que lixo?! Que História?! Porque não tem mais História. O algoritmo trouxe narrativas. Agora tudo é narrativa. São bolhas. Então, se o presidente de plantão ou o ministro de plantão for de determinada narrativa, os livros didáticos vão ser aquilo ali. Se não houver uma contrarrevolução digital, teremos um cenário tenebroso, pode ser, inclusive, o fim da História. Primeiro, que ninguém mais lê livro. Os próprios fundadores da internet falam que é um efeito colateral: as gerações mais novas não conseguem ler um livro, porque perderam a capacidade de foco, de concentração e até de senso crítico. Então, como pode sobreviver a História no contexto em que ninguém mais lê? O historiador tem uma atividade totalmente vinculada ao livro. Falo isso porque tenho dois filhos, um de 15 e outro de 19 anos. E eu tenho dificuldade de fazer com que leiam HQ. A tela multifunção gera uma hipertrofia da área do cérebro da distração. A distração está assumindo todo o controle do cérebro. É uma atrofia das partes do cérebro que são associadas ao foco, ao senso crítico, à concentração. A neuroplasticidade está se refletindo em termos de civilização. A gente vive hoje a civilização da distração, do algoritmo e das narrativas.

CONTINENTE No começo da sua resposta, você falava sobre a questão dos roqueiros. Queria que você me falasse qual a sua visão sobre o rock hoje. Acha que ele perdeu a importância que tinha para a juventude e não somente no Brasil, mas no mundo?
FRED ZERO QUATRO Eu até estou achando engraçado que Anitta gravou um rock, Boys don’t cry. Eu vi no Jimmy Fallon. Posso acompanhar pelos meus filhos. Eles gostam muito de música. Não poderia ser diferente. Pai músico, mãe coreógrafa e bailarina. Então, era previsível que eles iam ter um bom ouvido musical, gostar de música e tal. O mais novo tem o maior jeito para violão e piano. Mas não se dedica muito. E o mais velho sempre adorou DJs, ele que me apresentou muitos dos DJs famosos. A primeira vez que eu ouvi falar de Alok, logo no começo da carreira, foi Caio que me apresentou. Tem uma coisa interessante que está acontecendo que é a questão do vinil. Muitos amigos de Caio são colecionadores de vinil. Notei isso porque, em plena pandemia, o nosso disco, Guentando a ôia (1996), teve a primeira prensagem em vinil e esgotou antes de sair da fábrica. Lembro que quando, por exemplo, teve o advento do CD, achei meio estranho porque eu adorava vinil e cassete. E achava o CD uma coisa meio como se fosse uma usurpação daquela mídia que era a capa do vinil. Mas uma consequência muito massa foi que, com o CD, as gravadoras fizeram uma arqueologia de seus catálogos. Então, muita coisa dos anos 1950, 40, até 30, que não se tinha acesso com os vinis, foi sendo lançada em boxes maravilhosos de CDs. Eu comprava desenfreadamente CDs de trilhas de seriados e de filmes antigos. Com o interesse por uma mídia nova, as gravadoras desenterram muita coisa. Um fenômeno dessa gurizada que está se apaixonando por vinil é que eles começam a frequentar os sebos e vão vendo a capa do Velvet Underground, descobrem muita coisa. É uma gurizada que pode redescobrir o rock’n’roll. Eu não vejo como uma coisa fatalista. Outro dia me surpreendi numa festa, quando eu ainda era casado. Lá na praia, numas férias, estava meu filho mais velho com uns amigos de colégio. Eles só estavam ouvindo bossa nova. Até dois anos antes, eles estavam pirando com trap e depois estavam numa fase ouvindo João Gilberto, Marcos Valle, encantando-se. O rock’n’roll atual está despertando pouco interesse, até porque, realmente, em termos de música internacional, há realmente um predomínio do trap, rap. Essa black music está passando por uma fase hegemônica, a eletrônica também. Mas, por outro lado, camisetas do Nirvana, Metallica, Jimi Hendrix, Raul, essas coisas não saem de moda. Quando a pandemia começou a dar um refresco, antes da ômicron, comecei a voltar a frequentar loja de vinil e sempre há uma galera catando vinil, desde Led Zeppelin a Janis Joplin, Ave Sangria… Essas coisas não saem de moda.

CONTINENTE Mas, de uma forma geral, você acha que a juventude tem menos acesso ao rock? Porque a nossa geração e a anterior tinha acesso a uma diversidade musical maior nas rádios, nas TVs, e hoje em dia tem esse predomínio do sertanejo. O que você acha disso?
FRED ZERO QUATRO É como eu estava falando sobre o cenário sociológico. Na questão do circuito da música, é também muito difícil para a gente analisar ainda. Acho que isso vai demorar, porque tem aquela história de que o meio é a mensagem. A forma de você usufruir uma obra, seja música, romance, filme, teatro, artes plásticas, também faz parte da mensagem e interfere no conteúdo. A forma de usufruir música hoje é algo que eu mesmo não entendo muito bem ainda. Estou encantado com as ferramentas de monitorar o público que hoje são muito mais sofisticadas do que no século XX. Hoje eu pego o Spotify for Artists, que é uma ferramenta para o artista. Cara, você sabe a porcentagem de homens, mulheres, faixa etária, as cidades, os países que têm mais ouvintes, tudo isso facilita para o artista hoje em dia. Mas é tanta ferramenta nova que surge, que é preciso contratar alguém só para ficar se atualizando em tudo o que o Spotify lhe comunica em termos de novidade, em termos dessa interação do público com sua música. E parece que o esporte preferido dos diretores dessas plataformas é dificultar a coisa, para o artista se tornar um escravo dos aplicativos. É muita novidade tecnológica surgindo e isso interfere na forma como o público se relaciona com a música. Eu me preocupava muito quando surgiu o MP3 e eu fui um cara que acabei sendo afastado de debates e mesas-redondas porque eu tinha uma posição fora da curva. Porque todo mundo estava deslumbrado com o MP3 e eu dizia assim: uma coisa preocupante é que, à medida que você vai tendo acesso a milhões de coisas gratuitamente e que todo o universo de som produzido no mundo todo está disponível, acessível de graça, a mensagem que se envia para o cérebro, quando baixa 5 mil músicas por dia no seu celular, é que música é só uma coisa gratuita que você tem acesso e que vai poder botar no ouvido enquanto frita um ovo ou malha na academia. Ou seja, a relação com a música se torna outra coisa. A fruição da música é uma outra experiência hoje do que era na nossa época. Desculpa, porque eu sou muito prolixo. Nem me lembro direito exatamente qual era a pergunta.

CONTINENTE Pode falar, Fred. Perguntei sobre o predomínio do sertanejo nas mídias. Mas essa questão da fruição também é importante.
FRED ZERO QUATRO Na neuroplasticidade se aprende que o cérebro é um músculo, como qualquer outro, no sentido de que, se você ficar cego, ele muda o formato. Aqueles neurônios vão se direcionar para a parte do ouvido, do olfato. É algo que vai se conformando à sua realidade. O que acontece é que o tipo de fruição da música e da cultura em geral, conhecimento, informação, hoje é muito passivo. Não se sai mais de casa. Eu colecionava Led Zeppelin. Com 14, 15 anos, eu economizava na mesada do lanche da escola, porque eu sabia qual era a melhor loja para comprar o novo disco da banda. É um consumo em que você tem papel protagonista. Hoje é passivo. Pelo que você curte no YouTube e Spotify, eu conheço muita coisa dos anos 1940, 1950, porque o Spotify sabe que eu gosto de determinado tipo de som. Toda semana, entro e tem sugestões pra mim. Então, é muito cômodo. As coisas chegam a você pelo que curtiu nas redes, é um consumo totalmente passivo. E essas gerações mais novas, mais ainda. É como se você fosse indefeso. Então, se um determinado gênero de música é muito mais protagonista no sentido de impulsionar violentamente os seus videoclipes, dominam a televisão, dominam as rádios, porque botam muito mais dinheiro e agem de forma a controlar, é muito difícil pra um jovem se libertar daquilo ali, se revoltar, se rebelar, porque o cérebro dele está conformado ao formato de ser um cara passivo para usufruir do conhecimento, da informação, do cinema e da música. É difícil se libertar do consumo passivo, porque isso volta à questão da neuroplasticidade, é uma configuração do circuito do entretenimento, da informação que leva a um formato de cérebro ligado a esse contexto que dificulta, e muito, a concentração. Se eu fosse resumir num refrão de música, seria Zeca Pagodinho, “Deixa a vida me levar”. O próximo passo é a internet do eu, que é mais absurda ainda, toda a sua casa, a temperatura do chão, a luz, o cheiro, tudo, vai ser de acordo com o que você já curtiu ou configurou na sua geladeira inteligente ou no ar-condicionado inteligente. Então, você não vai precisar se esforçar pra absolutamente nada em termos de tomar decisão. Em Novas lendas da etnia Toshi Babaa (2011), eu escrevi quase um manifesto sobre essa questão da revolução digital. E eu tenho essa tendência meio ludita, aquela coisa de que a tecnologia é útil até o ponto em que ela não se torna burra ou emburrecedora. E, infelizmente, acho que a gente está caminhando pra hegemonia de quase que um fundamentalismo tecnológico. Tem o Deus Mercado e o Deus Tecnologia. Então, todo mundo se ajoelha para o altar da tecnologia sem se preocupar se ela está vindo pra uma evolução da civilização ou para emburrecer. O pior é que os próprios mentores da internet hoje reconhecem que é um efeito colateral da revolução digital se ter uma geração cada vez mais superficial e com menos senso crítico.

CONTINENTE Tenho uma observação sobre o que você falou. Aquela geração que, por exemplo, era adolescente nos anos 1980, que escutava rádio, também poderia ser uma geração passiva. Se não tivesse dinheiro, não ia adiantar gostar de música, porque ela não ia poder comprar discos. Mas se ela ligasse o rádio, ia escutar uma variedade muito grande de artistas e de gêneros musicais e, hoje em dia, se a geração atual entrar no Spotify ou no YouTube e colocar uma vez só “Marília Mendonça”, ela só vai ouvir sertanejo a vida dela inteira, porque nunca vai aparecer, por exemplo, Mundo Livre S/A pra ela. Essa questão da formação da bolha é o que eu considero uma tragédia, do ponto de vista cultural.
FRED ZERO QUATRO É um grande desafio, mesmo para cientistas sociais explicarem e criarem algo em termos de superação desse drama das bolhas, que hoje dominam. Eu realmente não estou muito próximo da discussão acadêmica. Mas tenho a impressão de que é muito difícil, porque os cientistas sociais que estão surgindo também são meio que deslumbrados com a tecnologia. É difícil você discutir qualquer tipo de efeito colateral dos algoritmos ou da revolução digital. É quase como se fosse uma heresia em termos de debate intelectual.

CONTINENTE E tem também a relação do gênero musical com a questão ideológica e política. A gente viu isso na década de 1990, com o sertanejo que apoiou Collor, e a gente vê agora o sertanejo que apoiou e ainda apoia Bolsonaro.
FRED ZERO QUATRO O que vou dizer tem a ver com a outra pergunta que você tinha feito e eu esqueci de comentar. Você falou que é uma tradição da música brasileira a crônica dos fatos, do cotidiano. A Mundo Livre S/A talvez tenha pagado um certo ônus por essa postura, porque era meio fora da curva. A gente despontou no cenário profissional nos anos 1990. Ali havia o discurso neoliberal. E, por outro lado, no cenário político, era a redemocratização. Então, no período da ditadura, havia os maiores compositores. Durante muito tempo, a música serviu como uma válvula de escape. Tinha músicas de caras como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivan Lins… eram músicas que falavam de forma metafórica. Quando a gente surgiu, era um absurdo, mesmo no Rock Brasil, “eu vou dar mamãe”, “eu sou boy”… Nada contra, mas parece que foi proibido se ter uma música pop ou rock’n’roll com algo mais político, porque tinha superado esse período da ditadura e aí era como se não precisasse mais falar de política. Havia uma coisa ou outra, como Brasil, de Cazuza, mas, no geral…

CONTINENTE Tinha a Legião Urbana, Os Paralamas…
FRED ZERO QUATRO Mas era quase proibido falar de política, como se não tivesse contradições sociais no país, uma situação de concentração de renda absurda. Então, era como se fosse uma coisa proibida não só no rock’n’roll, mas na MPB. Virou um tema que, mesmo os egressos da ditadura, resolveram mudar de assunto. Então, surgiu a Nação Zumbi, em um contexto fora do eixo, que falava de Josué, Lampião, Panteras Negras; e a Mundo Livre, falando de temas sociais. Eu poderia escrever um livro só sobre os bastidores do Por pouco, do quanto a capa do disco gerou de celeuma dentro da Abril Music, que era uma corporação ultraneoliberal e capitalista. Era um tema proibido, aquela coisa do muro americano. Voltando ao que você perguntou, eu acho que a vinculação dessa hegemonia do sertanejo com a ascensão da extrema direita é um pouco também por uma postura covarde de grande parte dos artistas, tanto da MPB quanto do rock’n’roll. Os artistas se acovardam. Eu lancei a capa do Walking dead folia e as perguntas que ouvi de grandes portais e grandes veículos eram num tom assim quase de “Como você ousa fazer uma capa dessa?”. Por quê? Porque o padrão de um artista hoje é fugir desse tipo de tema, e não só de hoje, desde os anos 1980 e 1990, que é isso, parece que essa coisa do artista engajado da música brasileira como bandeira, hinos políticos, isso foi morto e enterrado ali no final dos anos 1960 e início dos 1970. Então, isso é uma coisa padrão na indústria fonográfica brasileira desde os anos 1980. Isso tem que ser falado. E eu acho que não haveria esse tipo de vinculação e hegemonia tão fácil no sertanejo, e apoiando tão abertamente a extrema direita. Seria mais complicado para o sertanejo se houvesse uma postura menos covarde da maioria dos artistas.

CONTINENTE Mas agora você vê que estão tentando se posicionar contra esse governo…
FRED ZERO QUATRO É porque agora chegou a um ponto em que está ameaçando diretamente inclusive a sobrevivência, porque você vê empresas, grandes estatais que fomentavam muitos projetos, que favoreciam o circuito cultural como um todo, como a própria Petrobras, como a Chesf, Banco do Brasil, Caixa Econômica. Quantos e quantos projetos eram patrocinados diretamente e sem viés político. Era uma coisa de fomentar mesmo a criatividade, a inovação e a arte, e está todo mundo vendo agora que isso está ameaçado. Se esse grupo se reeleger por mais quatro anos no Planalto, o que vai acontecer? É um Ministério da Saúde que é antissaúde pública, um Ministério da Educação que é antieducação e um Ministério da Cultura que nem existe mais. É uma gestão da cultura, que é anticultura. E todo mundo está vendo isso.

CONTINENTE Já que você falou dessa questão do patrocínio, como está a sua relação com as leis de incentivo?
FRED ZERO QUATRO Eu nem me envolvo muito com isso. Porque a gente tem um escritório que administra essa parte de turnês e projetos. E se eu for me envolver com isso, vou ter cada vez menos tempo pra poder me dedicar à criação. Então, tem o escritório que é a Zeroneutro, que acompanha mais a coisa de editais e tals. Acho que a gente foi favorecido no ano passado, se não me engano. Mas a gente não fica dependendo só disso aí. A gente fez uma live totalmente bancada por uma cerveja. E agora, por exemplo, a gente fez dois shows nos Sesc Santos e Pinheiros, mas não teve a ver com edital. Uma banda como a Mundo Livre S/A cada vez mais vai ter menos acesso, enquanto houver esse tipo de postura fascista e autoritária dominando o cenário da gestão cultural do país. Uma banda como a Mundo Livre S/A, e eu diria até outras, como a Nação Zumbi, vão ter cada vez menos acesso. Ainda bem que a gente tem visto um aumento de ouvintes. No nosso Spotify, no balanço do ano, em 2021, a gente teve um aumento de 999% de compartilhamentos da banda e de mais de 100% de ouvintes mensais, estamos com quase 210 mil. Cresceu enormemente durante a pandemia. Só no último mês, um aumento de 22% de streaming, 570 mil streamings mensais só no Spotify. Esse tipo de relacionamento com órgãos culturais, editais e tal, cada vez a gente está chegando num patamar em que um artista como Mundo Livre tem que assumir uma postura de se desvincular. Mas não sou contra o artista participar de um edital, buscar uma lei de fomento, de órgão de cultura. Todos os órgãos culturais, tudo que envolve o dinheiro do contribuinte de órgãos públicos, têm obrigação de oferecer mecanismos de fomento indiscriminadamente para todo perfil de artista e cada vez mais com volume condizente com o circuito cultural, principalmente o circuito alternativo e independente, porque quem está favorecido pelos grandes circuitos comerciais da mídia corporativa, teoricamente, não deveria ter tanto acesso assim aos órgãos de fomento.

CONTINENTE Essa arrecadação do Spotify é justa?
FRED ZERO QUATRO Claro que não. Nós vivemos na era dos centavos. Eu diria até dos milésimos de centavos. Muita gente que se deslumbrou com a revolução digital do MP3, porque seria uma libertação das amarras das gravadoras e da hegemonia das gravadoras – porque elas tinham contratos draconianos e sobrava pouco para os músicos e autores –, mal sabia que a revolução digital ia trazer para os criadores e para os músicos uma realidade muito mais perversa, no sentido da remuneração. As gravadoras ficavam com uma porcentagem muito maior que os artistas. Mas elas bancavam, colocavam o artista em estúdio. Quando a gente gravou o primeiro disco, bancaram passagem aérea para São Paulo, hotel em Pinheiros, 600 horas de estúdio para a gente gravar o Samba esquema noise, bancaram o videoclipe de Livre iniciativa, que chegou aos primeiros lugares na MTV. Mesmo uma banda fora do eixo, como a Mundo Livre, as gravadoras bancavam tudo isso. O que o Spotify banca para um artista novo, que está estreando? Nada. Pega o trabalho pronto, cobra uma merreca para publicar, no caso quem cobra são as distribuidoras. Mas não banca absolutamente nada e, se for comparar com as gravadoras dos anos 1980 e 1990, a remuneração é absurdamente irrisória em relação ao que as gravadoras bancavam. Agora tem o outro lado, a peneira pra se conseguir gravar hoje em dia é muito mais democrática. Então, um moleque que tem um computador e gosta de fazer um rap, de escrever umas letras e tem condição de ter acesso, ou em casa ou na escola, numa associação de bairro, a um computador que possa produzir uma batida ali, ele vai ter sua música publicada no Spotify e aí nada impede que ele viralize nas redes sociais e rapidamente atinja um público que possa manter a sua carreira dentro daquela bolha, do tipo de som que ele quer fazer. Então, é muito mais democrático hoje do que no esquema de gravadora, claro. Não era qualquer banda do Recife que, de uma hora pra outra, ia ter acesso a um estúdio pra gravar em São Paulo, pra poder ter seu clipe na MTV. No caso de uma banda como o Mundo Livre, que quando entrou no Spotify já tinha uma carreira de quase 10 discos e tal, e já tinha várias turnês nacionais e prêmios, é uma situação diferente de um artista, como se meu filho quiser criar uma banda e lançar uma carreira no Spotify. Se eu quiser gravar um disco independente, depois de 30 anos de carreira, se quiser tirar do bolso, fazer um empréstimo no banco e bancar o álbum do próprio bolso, e publicar no meu nome esse trabalho no Spotify, eu vou ter à disposição mais de 200 mil ouvintes mensais, pela carreira que eu já estabeleci por mais de 30 anos. Então eu não posso dizer que é algo tão perverso numa situação como a minha. Pelo cálculo que se tem hoje em dia, 570 mil streamings mensais, daria mais de 2 mil dólares, o que não é nada mal. Mas, no meu caso, esses streamings mensais que eu tenho, não são de coisas que eu publiquei. São de coisas que vêm desde o primeiro disco, contratos com a Warner, com a DeckDisc… Então, juntando todos esses contratos aí, só que não são fonogramas que eu disponibilizei, tenho que dividir isso aí com esses intermediários que eu acumulei nessas décadas de carreira. Mas eu posso teoricamente, a partir de agora, se eu quiser, ser totalmente independente e publicar minhas próprias coisas e não vou partir do zero, vou ter 200 e tantos mil ouvintes mensais. Vou dizer assim: é justa a remuneração? Não é. Mas para um moleque que seja muito ágil, que cresceu no circuito digital, convivendo com o engajamento em redes sociais, mídias digitais e tem essa manha de utilizar o algoritmo e tem acesso barato ao tipo de som que ele possa publicar nas plataformas, eu acho que hoje o ingresso no circuito da música é menos complicado do que na época quando a gente começou. Isso é só o ingresso. Mas consolidar uma carreira, fidelizar um público dentro desse contexto onde se está concorrendo com milhões de lançamentos todos os dias, é um pouco mais complicado.

CONTINENTE Fred, na época em que vocês assinaram com as gravadoras, foi uma festa na cidade, saiu matéria, todo mundo comentando que a Nação Zumbi assinou com a Sony, que a Mundo Livre assinou com o Banguela/Warner e lembro que uma das primeiras entrevistas que fiz foi com você, Chico Science e Paulo André, em 1993. Havia uma alegria grande porque vocês foram contratados. E hoje em dia há essa facilidade que possibilita que o pessoal da periferia também grave seus discos. A gente vê essa movimentação toda do rap, do funk, do brega-funk. Eu queria que você falasse sobre a sua visão dessa música da periferia e da releitura brega-funk da Musa da Ilha Grande, com a cantora Doralyce.
FRED ZERO QUATRO Estou relembrando um episódio do último Carnaval, quando a gente ainda podia tocar, no comecinho de 2020. Fui participar do show de Otto, em Olinda, num evento privado, e tinha várias atrações e os camarins eram próximos. E aí uma das atrações era Shevchenko & Elloco. Chegaram lá com um bocado de gente. E quando informaram a eles que ali estava a galera do Manguebeat, os caras fizeram a maior festa. Foi muito massa. Eu nunca tinha conhecido ninguém do brega-funk e me apresentaram ao cara que fazia as bases. O cara, muito novo, era uma sumidade. Eu vi essa coincidência nesse contexto de precariedade. Se você pega as condições dos meninos do Lamento Negro, a galera do Daruê Malungo, naquela época. Ali era de uma precariedade, uma realidade totalmente adversa em termos de recursos, e os caras conseguiram superar isso com inventividade, e juntou com a inventividade de Chico, sem ter acesso a nenhum tipo de recurso, fomento empresarial ou público. E, por meio da inventividade, gerar algo novo que se torna irresistível para o circuito da música. Então, o brega-funk é isso. É a versão 2.0 dessa mesma realidade. A galera da periferia do Recife desponta do mais precário. Às vezes o computador não é nem deles ou têm o celular tosco. Pegam os aplicativos mais acessíveis e ali mesmo vão criando batidas e criam não só a batida e letras que retratam a realidade mesmo, como vídeos. Você pega clipes produzidos de forma mais tosca possível em Prazeres que rapidamente viralizam no Brasil e no mundo todo. Tem essa conexão em termos de meio de produção. Então, sempre admirei esse lado da superação do brega-funk, e mais ainda quando conheci essa galera em 2020. Mas aí a gente não pôde dar seguimento a essa aproximação por conta da pandemia. Houve um episódio envolvendo especificamente Musa da Ilha Grande, porque a gente estava em vias de parar de tocá-la ao vivo. Com o crescimento das bandeiras identitárias e o discurso mais empoderado de gênero, ela se tornou uma música que gerou algumas reações negativas em alguns locais que a gente tocava, por conta do “eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água”. Eu tenho várias amigas feministas que não veem nada de absurdo nisso aí. Nas músicas de brega-funk é que você vê a “novinha” sendo tratada de forma muito mais agressiva e depreciativa. Pensei: “Pô, engraçado que muitas dessas figuras que estão se incomodando com essa música vão para as baladas alternativas por aí e sempre tem aquele ‘momento baixaria’ e começam a baixar até o chão”. Quando vem da periferia, acham lindo. Então, resolvi fazer essa brincadeira: “Se essa música fosse um brega-funk, acho que a galera ia estar vibrando, em vez de se sentir incomodada”. Doralyce teve a ideia, “Fred, você começa o clipe como um mangueboy, como se fosse o cara que ficou esperando a menina sair da água por mais de duas décadas, ali. Só que, no meio do clipe, acontece um passe de mágica e você é transportado para a periferia do Recife”. E eu incorporei aquele visual e fiquei admirando as garotas empoderadas na beira do mar. Achei bacana essa sugestão. A gente homenageia também a batida do brega-funk. Acho que tem esse lado da gurizada superando uma situação totalmente adversa com inventividade. E é uma batida muito envolvente e irresistível, tanto é que domina o ano inteiro as periferias de várias cidades no Nordeste e no resto do país também. E chegou agora a se incorporar ao universo do Carnaval. Não é qualquer um que cria uma batida dessa do nada, enfrentando a situação mais adversa. A faixa Melô das musas empoderadas da Ilha Grande é uma forma de homenagear esse talento da galera pra chacoalhar, pra fazer batidas irresistíveis. E a gente encerra o disco com uma versão instrumental, o Melô da loló estragada. A gente dá uma filtrada nesses timbres do brega-funk. E, ao mesmo tempo, dá esse recado de tudo bem que o discurso de gênero tem que ser atualizado, mas também não vamos ser tão radicais, porque essa letra… pelo amor de Deus! Se for comparar com a temática do brega-funk original, vamos convir que essa letra não tem nada de ofensiva.

CONTINENTE Com relação ao brega-funk, eu penso que, se Chico Science estivesse vivo, também faria parcerias com esses novos artistas da periferia. A propósito, qual era o tipo de conversa que vocês tinham na época do Manguebeat? Qual era a troca que tinham?
FRED ZERO QUATRO Era um período em que a fruição musical era bem mais ativa, de ir atrás, de descobrir, cavucar sebos. E Chico tinha uma bagagem muito mais específica, em termos de black music. Eu já tinha tido programa de rádio. Então, era uma coisa mais abrangente de gêneros mais diversos e tal, e de fases de pesquisar os anos 1940, 1950… E Chico, muito tribal, da black music. Ele tinha uma coisa muito generosa. Ele adorava pesquisar, descobrir um negócio massa, novo e adorava compartilhar. Então, várias vezes eu encontrava com ele. Ele ia em Candeias, conhecia meus pais. Ele frequentava ensaios do Mundo Livre. E eu frequentei ensaios da Loustal, em Rio Doce. Porque era isso… A gente tinha uma carência muito grande. Não tinha onde curtir música legal. Não é como hoje em dia que você vai no Recife Antigo, vai na Mamede (Simões) e em qualquer bairro onde haja uma vida noturna e vai curtir vários tipos de músicas contemporâneas sem nenhum problema. Em festas e no Iraq, tem DJs espalhados por todo canto. Naquela época era muito difícil encontrar um local para desfrutar música bacana. “Ah, vai ter ensaio do Mundo Livre? Eu vou!” O cara saía de casa, pegava ônibus e ia para Candeias pra ouvir a música nova da Mundo Livre. Eu saía de casa para ir para o ensaio da Loustal. Era uma carência muito grande. Ele tinha esse lado protagonista e um lado generoso. Quando ia me encontrar, me dava uma cassete: “Ó aí, Fred, descobri isso aqui”. A gente marcava de se encontrar na casa de um amigo em comum, porque tinha vindo da Europa com um bocado de disco novo: “Vamos na casa de Roberto”, “Vamos na casa de Mabuse”, “Vamos na casa de Helder”. Era outra época, outra configuração do circuito da música. Então, a forma é como te falei, você faz daquilo uma militância. É a forma ativa de consumir cultura, diferente de hoje, que é um consumo muito mais passivo.

CONTINENTE Ontem (2 de fevereiro) foram os 25 anos da morte de Chico Science.
FRED ZERO QUATRO Até fiquei indignado porque o NETV2, que é o maior noticiário daqui, não deu nenhuma vírgula sobre os 25 anos da morte de Chico. Falou do aniversário do Homem da Meia-Noite. Tudo bem, massa. Mas nenhuma vírgula de Chico.

CONTINENTE Se você fosse descrever a personalidade de Chico Science para uma pessoa jovem que não o conheceu, o que você diria, além dessa questão da generosidade?
FRED ZERO QUATRO Ele era um catalisador, uma figura que, primeiro, tinha um carisma absurdo no palco. Como te falei, era generoso, gostava de compartilhar ideias bacanas e era um catalisador no sentido de acelerar fenômenos que poderiam surgir de forma mais lenta futuramente. Essa união do maracatu, dos tambores com psicodelia, música eletrônica, hip hop, provavelmente iria se dar de forma espontânea, duas, três décadas depois, pela ordem natural das coisas. Mas ele catalisava as coisas. Eu usei catalisador quando eu fazia prancha de surfe, que se usa quando vai trabalhar com fibra de vidro, coloca aquelas gotas de catalisador que aceleram o processo químico. E ele era como um catalisador, vislumbrava que aquilo ali poderia gerar algo muito eficiente, certeiro no futuro. Então, ele antecipava. Ele mesmo criou o termo antenado. Ninguém usava isso. Ele era antenado com o futuro. Ele não se conformava em ter só a ideia. Ele era um militante no sentido de que era um ativista. Ele não se conformava só em elucubrar e imaginar, tinha que botar em prática, por mais que fosse complicado, por mais que fosse difícil na periferia juntar tambores com guitarra, arrumar um espaço que não existia. Ele cavava os espaços e ele era um ativista da cultura. É um cara que faz falta, que sempre quando se lembra nessas datas da morte dele, é imediato, eu sempre imagino que coisa bacana ele estaria articulando hoje em dia.

CONTINENTE Quando Chico morreu, parecia que tudo ia acabar. A impressão que se tinha era de que “o sonho acabou”. Havia aquela efervescência toda e, de repente, veio esse golpe. Mas não acabou. As bandas continuaram, mais artistas surgiram. Queria que você comentasse um pouco sobre o que vem ouvindo dos artistas de Pernambuco nas últimas décadas.
FRED ZERO QUATRO Cara, passei 20 anos casado e me separei na véspera da pandemia. Mal deu tempo de me instalar num local aqui, comprar panela, prato e talher. Mal deu tempo de eu me organizar. Esse período que eu passei mais caseiro, eu viajava muito todo mês em várias turnês. Então, quando estava em Pernambuco, eu me dedicava à família. Raramente estava em algum evento, balada, festa. Muitas dessas festas que foram emblemáticas eu acompanhava só do noticiário: Sem Loção, DJs de Padaria, Odara Ôdesce. Eu levava menino na escola, eu era o paizão. Passei um período muito longo no qual eu era a pessoa menos indicada pra falar do que estava rolando, quais eram as novidades do Recife. Acompanhava algumas coisas porque participava de alguns festivais. Acho que este é o verão da Academia da Berlinda. Onde você vai, as músicas, inclusive do primeiro disco, estão tocando. Mas não é uma novidade. Eu sei que tem novidades por aí no circuito rap emergente, como a Bione, que eu acho um talento muito interessante. Estou voltando agora. Espero me integrar mais. Inclusive tem uma coisa de que estou ativamente participando, que é um projeto que eu acho que vai dar muitos frutos, que é o Joinha’s Band. São músicos que dominam o circuito da música pop instrumental. Eles têm uma pegada irresistível, um repertório absurdamente cool. E comprova que Recife nunca vai deixar de ser um celeiro de talento instrumental. Haja vista agora a projeção incrível do Amaro Freitas, que foi um cara que eu conheci primeiro num programa da TV Cultura. À noite, costumo zapear. Uns anos atrás, eu o vi num programa. Perdi o sono. Pensei: “Por que um cara como esse é desconhecido?” Mas aí não demorou muito e é um dos expoentes internacionais da música instrumental. Esse projeto, Joinha’s Band, prova que não somente na música erudita ou no jazz, mas na música pop, tem uma geração com talento inesgotável e eu dei a sorte de ser convidado a cantar umas músicas minhas numa gig com eles e foi uma paixão mútua e que virou um projeto permanente. Só no mês de janeiro, toquei umas três vezes com eles em lugares do circuito underground. É esquema de jam session, a gente não ensaia. É maravilhoso ver uma geração mais nova interpretando sua obra com uma pegada atualizada e com tanta paixão e dedicação. É basicamente um show de releituras instrumentais de vários gêneros, soul music, manguebeat, funk, rock e sempre numa pegada sofisticada, criativa. Eu tenho certeza de que, assim que essa pandemia der um refresco, eu vou ter oportunidade de voltar a ter um contato mais ativo com o circuito e aí estarei mais apto a dar esse diagnóstico. Mas eu não tenho dúvida que é um cenário complicado, no sentido de que o país hoje é um ambiente hostil, que não favorece, não fomenta, não estimula, não dá visibilidade à grande diversidade que a gente tem em Pernambuco e no Brasil todo. Mas, ao mesmo tempo, eu sei que isso não impede a galera de se articular. Consegue dar a volta por cima e arruma uma forma, assim como o Manguebeat.

CONTINENTE Quando entrevistei Charles Gavin em 2017, ele falou muito sobre a produção do Samba esquema noise. Afirmou ter batalhado para conseguir o orçamento de R$ 40 mil com a Warner. Foi o disco mais caro da Mundo Livre S/A?
FRED ZERO QUATRO Acho que o mais caro foi o Por pouco, pela Abril Music, que tinha um orçamento maior que os selos Banguela e o Excelente Discos. A mixagem foi em Los Angeles e eu fui participar. O clipe de Melô das Musas foi feito por um dos diretores mais caros da publicidade do Brasil. Meu esquema é a música mais popular do Mundo Livre, tem mais de 15 milhões no Spotify. Quando Mario Caldato ouviu a música, disse: “Tem tudo pra ser um hit, mas o baixo está muito tosco”. Ele simplesmente convidou o baixista da Filarmônica de Los Angeles. Isso era uma coisa que as “malvadas” gravadoras proporcionam para o artista, a oportunidade de pegar uma banda do Recife pra mixar em Los Angeles e ainda contar com o músico da Filarmônica de lá. Então, eu gosto de dar esse tipo de alfinetada em quem demonizou por muito tempo as gravadoras, mas usa a camiseta do Sgt. Pepper’s, de discos de Jimi Hendrix, que não seriam possíveis sem as malvadas gravadoras.

CONTINENTE Talvez essa seja a maior vantagem das gravadoras: realmente faz falta uma boa produção em um bom estúdio, com uma boa mixagem e masterização.
FRED ZERO QUATRO Se você pegar uma música e afirmar: “Isso merece uma orquestra, um naipe de cordas fuderoso”, a gravadora vai lá e bota. Então, era esse tipo de coisa que tanto os Beatles quanto os Rolling Stones tinham. O que era aquele pianista dos Rolling Stones? Aliás, a gente o homenageia no novo disco. Na faixa O conselho (do pastor trans para a amante miliciana), tem um piano totalmente inspirado no Nicky Hopkins. Então, assim, eu acho meio um equívoco demonizar o papel das gravadoras e, ao mesmo tempo, estampar camisa do Revolver, Dark side of the moon… O que uma banda independente poderia fazer parecido com o Dark side of the moon, se não fosse numa grande gravadora? Talvez daqui a um tempo, eu me arrependa disso que estou falando. Talvez daqui a um tempo essas plataformas de streaming possam favorecer uma relação mais justa de remuneração que proporcione a artistas independentes serem bem-remunerados e achem mecanismos de sustentabilidade a partir do streaming. Ninguém sabe o que vai acontecer daqui a um ano, três anos. Mas acho ingênuo demonizar o papel que as gravadoras tinham.

CONTINENTE Por conta de um orçamento menor, você termina se censurando como artista? Você começa a limitar sua criatividade de forma instintiva?
FRED ZERO QUATRO Eu tenho um trabalho paralelo, o Sonofabit, que componho de forma mais intimista, são harmonias mais complexas. Inclusive a faixa Walking dead ciranda surgiu como uma balada folk, era uma harmonia muito mais complexa, mais rebuscada, só que peguei uns fragmentos mais objetivos dessa harmonia original e trouxe pra essa faixa que virou Walking dead ciranda. Algumas músicas desse trabalho experimental poderia gravar no Mundo Livre, se houvesse um orçamento de gravadora grande. Eu penso: “Se eu botar essa harmonia e chamar um maestro que faça um arranjo de cordas, vai virar uma música linda no álbum da Mundo Livre”. Mas não posso fazer isso.

CONTINENTE Você tem algo mais a acrescentar?
FRED ZERO QUATRO O contexto de gravar um disco na pandemia trouxe esse desafio inédito de fazer de forma semirremota. Isso implica que só agora, com esses primeiros shows que estamos fazendo, por exemplo, a gente notou que Walking dead ciranda, que tem 8 minutos no álbum, poderia ser uma música de 5 minutos. Se a gente tivesse tido uma pré-produção normal, como seria num álbum sem pandemia, se tivesse encontrado todo mundo, a gente teria fechado o mapa da música. Mas a gente ficou fazendo como uma jam interminável. E aí eu ia colocando partes da letra pra preencher e acabou que a música virou uma experiência psicodélica. Mas não necessariamente tinha que ser isso. É uma música que hoje, vendo do lado da execução ao vivo, ela vai virar outra coisa. A gente só está vendo a forma certa de executá-la, de finalizar o formato da música, agora quando começar a turnê, porque a gente não teve como se encontrar antes. Isso é um aspecto interessante.

CONTINENTE Há alguma possibilidade de um disco ao vivo?
FRED ZERO QUATRO Talvez. Até surgiu o convite agora de a gente fazer o Show Livre. Mas a gente acha que não é o momento ainda. Até porque a gente ainda está esperando o momento mais tranquilo da pandemia pra fazer uma sessão de ensaio para a música ao vivo. Então, não tem como fazer agora. Mas acho que, com certeza, vai valer uma coisa ao vivo para suprir justamente essa característica anormal que teve de produção na pandemia.

CONTINENTE O Manifesto Caranguejos com Cérebro, que anunciou o movimento Manguebeat, está completando 30 anos. Nele, vocês escreveram sobre o mangue como metáfora e também numa perspectiva ecológica, e agora a gente está vendo essa crise ambiental. Que tipo de manifesto você escreveria hoje?
FRED ZERO QUATRO Muito do que eu falei aqui nesta entrevista. Eu diria que os mangueboys são indivíduos interessados em pós-história, neuroplasticidade, mundo pós-algoritmo, fundamentalismo tecnológico, pós-identitarismo, antifascismo, alimentação orgânica, cultura analógica e pensamento não digital.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente, colunista da Continente Online.

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