Cobertura

A natureza diversa e mutante do Coquetel Molotov

Este ano festival voltou ao seu lugar de origem, a UFPE, mas de outra maneira, trazendo o 'line-up' mais plural de todos, com artistas que expressam pautas contemporâneas

TEXTO Leonardo Vila Nova

22 de Novembro de 2022

Foto Dani Ferreira/Coquetel Molotov

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Ao longo de 19 edições, o festival No Ar: Coquetel Molotov já presenteou o público com artistas das mais variadas expressões: de Coco Rosie a Dinosaur Jr., ou de Racionais MCs a Lia de Itamaracá. Óbvio que sempre houve um recorte curatorial bem-definido, a cada ano, mas também é perceptível – principalmente para quem acompanha o evento desde os seus primórdios – que uma série de transformações se deram durante essas quase duas décadas. Seja no lugar onde acontece, seja nas experiências oferecidas para além dos shows, seja no recorte curatorial.

Nesta 19ª edição, que aconteceu entre o último sábado (19) e domingo (20), o Coquetel Molotov voltou ao formato presencial, no lugar onde fora realizado pelas primeiras vezes, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mas ocupando-o de uma nova forma e com atrações que denotam uma diferença considerável com relação aos line-ups de outrora. Há anos atrás, o Molotov era apinhado de músicos estrangeiros, em sua maioria, que enveredavam pela seara do indie – parte desse line-up vinha através do que chamavam “Invasão Sueca”.

Neste ano (e já há alguns anos), o festival priorizou os artistas nacionais, mas, além disso, nomes com expressões que passam ao largo do indie: Jup do Bairro, Uana, MC Carol, Tasha & Tracie, Djuena Tikuna, Rico Dalasam e tantos outros. Além de pessoas como Letrux (que trouxe como convidado o inoxidável Supla) e Marcos Valle, também presentes nesta edição, o que esses artistas citados acima trazem de “novo” e “diferente” ao festival? Eles trazem, além da sonoridade, o protagonismo de diversas pautas do nosso tempo: artistas pretas/os/es, cujas criações se originam na periferia e diretamente falam dela e com ela, trazendo questões LGBTQIA+, de diversidade étnica etc. Essas vozes, seus olhares e discursos fizeram desta edição do Coquetel Molotov a mais plural e representativa do que é a música brasileira contemporânea, entre o alternativo e o pop, mas ainda cabendo espaço para o rock, o indie e outros gêneros.


Público do festival em 2022. Foto: Dani Ferreira/Coquetel Molotov

A CEO do Coquetel Molotov, Ana Garcia, comentou que essas transformações refletem uma natureza muito própria do festival: “A gente sempre foi atrás das cenas. Quando começou o Coquetel, fazia sentido ter aquele lance muito indie, o indie era novidade (...) em torno de 2011, a cena brasileira teve uma virada muito grande. Os nossos headliners deixaram de ser os gringos e passaram a ser os brasileiros (...) E é o que a galera tá curtindo agora, o rap, o trap, tem o brega funk, mas tem de tudo, e continua tendo o indie. Também tem muito a ver com as pautas do momento, né?”.

O festival contou com quatro palcos – Coquetel Molotov, Natura, Som na Rural e KMKAZE – distribuídos no campus da UFPE. O KMKAZE, por exemplo, sintonizava numa atmosfera de baile funk (ou boate). DJs e MCs fizeram a cabeça do público. Mas quem, realmente, “botou abaixo” o espaço foi MC Carol. A niteroiense de 29 anos colocou o público (bem numeroso na hora de sua apresentação) para dançar seu funk carioca com letras que falam abertamente de “putaria”. “Eu sempre quis escrever sobre amor, mas eu não consigo. Eu consigo escrever o que eu canto, sobre o sexo, dessa forma aberta. O sexo faz parte do cotidiano, e eu gosto de cantar sobre o cotidiano”, disse Carol, que falou também sobre o preconceito que sofre por fazer sua música. “O mundo é machista pra caralho! Quando você é uma mulher preta, gorda, falando sobre sexo, sobre o seu prazer, as pessoas não aceitam. Eu sou crucificada até hoje por causa das coisas que eu canto.” No Molotov, contudo, ela foi abraçada. “Participar de festivais desse tamanho e ver a galera cantando TODAS AS MÚSICAS, é muito satisfatório”, comemorou. Pelo palco KMKAZE também passou o projeto Brasil Grime Show, com Margot, Adelaide, Bione, Kael Semlote, e o Baile do Marley, com Rayssa Dias e Gui da Tropa.


Don L. Foto: Dani Ferreira/Coquetel Molotov


Giovani Cidreira. Foto: Coquetel Molotov

Artistas do rap ganharam mais espaço na programação deste ano. E vale dizer que a importância deles não se encerra apenas no som que fazem, mas também vem do lugar de fala: Don L (cearense, nordestino), Flora Matos (mulher) e Rico Dalasam (LGBTQIA+) quebram estereótipos do gênero – marcado por uma cena majoritariamente masculina, masculinizada e sudestina (feita, especialmente, em São Paulo) – ao incluir novos olhares, discursos e conteúdo no que dizem as suas letras de rap. Artistas cujas obras traduzem esses atravessamentos a que estão expostos cotidianamente. Uma coisa muito boa nisso: ver um numeroso público – e, também, muito diverso – marcando presença nessas apresentações. Em seu show, no maior palco da noite (o Coquetel Molotov), Don L chegou a dividir uma música com outro nordestino, o baiano Giovani Cidreira. Juntos, cantaram Primavera, que está no mais recente disco de Don L, o elogiado Roteiro pra Aïnouz, Vol. 2.

Giovani Cidreira se apresentou no mesmo palco, em sua nova persona estética, que trafega entre o afrofuturismo e o queer, em especial a partir de seu mais recente álbum, Nebulosa baby (2021). Vestimenta, postura em palco, iluminação, tudo converge para ressaltar essa fase de Gio. Tudo bem diferente da sua primeira aparição no Molotov, em 2017, à época do disco Japanese food, quando o som, com a banda, era mais indie. “Eu sou uma pessoa que vou buscando caminhos diferentes, eu sempre me desvencilho, sempre tento destruir, acabar com o que fiz antes, sempre buscando um novo lugar. Essa é a minha pira! Antes, eu fazia música só pra me expressar. Depois, comecei a pensar pra quem eu tava comunicando isso, comecei a pensar no meu bairro, lá em Valéria, a galera da periferia, que cresceu comigo”, pontua o artista, que reencontrou o sentido de seu fazer artístico após voltar a morar em Salvador e se nutrir do que é o “seu povo”.

A artista Djuena Tikuna também levou ao Molotov a arte e o verbo do seu povo. Ela ocupou o Palco Natura, na reformada (e muito linda) Concha Acústica da UFPE, e cantou em tikuna, idioma do povo de mesmo nome, maior etnia indígena da Amazônia brasileira, da região do Alto Solimões, divisa com Colômbia e Peru. Djuena estabeleceu uma conexão – ou até uma cumplicidade – com a plateita, que fez uma roda digna de ciranda para dançar sua música, advinda dos povos originários. “Participar do Coquetel Molotov é mostrar a nossa luta, a nossa resistência, e que somos capazes de chegar em qualquer espaço. Que a música indígena é música, sim. Mesmo se for contemporâneo, se for eletrônico, será música indígena (....) A mensagem que eu canto é falando dessa luta, da luta pelo nosso território (...) que as pessoas escutem os povos indígenas, na luta, na política, na arte, na educação. Cada povo tem sua vivência, tem sua cultura, sua ancestralidade, e o que eu vivi hoje, tenho certeza de que meu povo vai ficar muito orgulhoso”, comentou à Continente.

O Palco Natura também foi onde se apresentaram duas importantes figuras na música contemporânea brasileira: Jup do Bairro e Rico Dalasam. Jup, mulher trans/travesti, preta, gorda, com um som “nada suave” e sem papas na língua, representando essa parcela da população, num show muito instigante. “Não tem como ir embora sem falar putaria”, disse Jup antes de continuar a cantar suas músicas cujo tema da sexualidade é apresentado sem pudores ou falso moralismo, dando “o nome aos bois” de forma nítida e sem melindres. 

Já Rico tocou no Molotov, em uma parte do repertório, músicas do álbum Dolores Dala guardião do alívio (2021) e do EP Fim das tentativas, seu mais recente trabalho, em que divide com o público os sentimentos (de sofrimento, mas, também, de aceitação e esperança), sob a perspectiva de um homem preto e gay.




Jup do Bairro (acima) e Rico Dalasam foram atrações do Palco Natura.
Fotos: Eduardo Filho/Coquetel Molotov


OUTROS SONS
Mesmo em uma edição na qual as vozes pretas, periféricas e LGBTQIA+ conquistaram maior protagonismo e maior reverberação, o Coquetel Molotov trouxe artistas de outros lugares e expressões musicais, a exemplo da “arrasa-quarteirão” Letrux e do veterano Marcos Valle.

Aos 79 anos, e com uma trajetória artística de seis décadas, Marcos Valle apresentou um show que rememora grandes momentos dessa longeva carreira. Lançando mão do jazz, rock, pop e black music, o carioca mandou ver no seu “groove de verão festivo”, com uma banda supercompetente. Não faltaram músicas emblemáticas, como a instrumental Azimuth, que abriu o show, Mentira (sampleada pelo Planet Hemp, na sua música Contexto), Bicicleta e Estrelar (a conhecida “música para malhar”).

A plateia – majoritariamente sub-30 – lotou a Concha Acústica para ver o show, que também teve músicas que Marcos Valle fez com Bem Gil, Emicida e para a cantora Liniker, ou seja, ele está e esteve cercado de gente jovem ao redor da sua música. “Isso acontece muito no exterior, na Europa. Lá, já é assim há uns 30 anos. Minha música atraiu essa galera porque é muito misturada (...) Meu som é muito harmônico, mas é, também, muito rítimico. Isso atraiu os rappers, os DJs... Jay-Z, Kanie West, todos eles samplearam músicas minhas. E eu adoro isso. É bom pra eles e muito bom pra mim, pois eu acredito muito que essa parceria entre gerações diferentes acaba criando algo novo”, disse Valle após o show, que teve a participação da banda Jovem Dionísio, outros jovens com quem Valle gravou recentemente a canção Melhor do mundo.

Letícia de Novaes, ou melhor, Letrux foi um dos nomes mais aclamados nessa noite do Molotov. Ela nos confessou: "Toda vez que a gente faz show em Recife é uma coisa quente, literalmente e metaforicamente (fala apontando para a cabeça). Eu sinto as pessoas mais... Com uma 'cara' no meio do show, sabe? Acho que as pessoas daqui são mais tesão", comenta. Letrux mesclou, no seu show, músicas dos álbuns Em noite de climão (2017) e Aos prantos (2020), e recebeu um convidado que chamou a atenção: Supla. Repetindo a dose do que haviam feito recentemente, em São Paulo, Letrux e Supla cantaram música dela, mas o eterno punk paulistano (que hoje, aos 56 anos, mantém a mesma verve de quando era um recém-adulto, com a sua banda Tokyo) ainda emendou rocks clássicos e adaptou sua Garota de Berlim, cantando “Linda garota de Recife”, o que extasiou o público.


Momento antológico do Coquetel Molotov 2022: Supla e Letrux juntos no palco.
Foto: Dani Ferreira/Coquetel Molotov



Flora Matos foi a última atração do Palco Coquetel Molotov.
Foto: Dani Ferreira/Coquetel Molotov


A noite contou ainda com muitas outras atrações – afinal, foram mais de 30 artistas, ao longo de mais de 12 horas de evento –, como a rapper brasiliense Flora Matos, que reuniu um grande público, mas, ao contrário de Supla, não sabia que estava no Recife, cumprimentando e agradecendo o público de “Fortaleza”, o que gerou um burburinho momentâneo, mas dissolvido pela sua performance ao vivo. Enquanto isso, no Palco Natura, Uana se apresentava, com sua música que assimila referências do brega funk; e a DJ Miss Tacacá (PA) mandava seu set list no Palco KMKAZE, encerrando o Molotov às 5h da manhã, com o sol descortinando.

Se essa edição do No Ar: Coquetel Molotov foi mais uma prova da capacidade de transformação e renovação do festival, trazendo um line-up que dialoga com a música que vem sendo feita hoje, foi também uma forma de reverenciar quem veio antes e contribuiu para essa multiplicidade. Aguardemos, agora, a edição de número 20, com as expectativas (já) lá em cima.

LEONARDO VILA NOVA é músico e jornalista cultural.

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