Perfil

A reinvenção de Uana no pop

Artista pernambucana vem consolidando seu nome com trabalho que incorpora brega funk, R&B e outras sonoridades urbanas, com letras entre o romantismo e a malícia

TEXTO Camila Estephania

18 de Novembro de 2022

Uana

Uana

Foto Uhgo/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Quem olhou para o céu de Camaragibe em 13 de abril de 1994, viu o mapa astral de Uana Mahin estampado no espaço. Se a posição dos planetas no momento em que ela nasceu realmente revela a sua personalidade, como a Astrologia indica, os especialistas certamente veriam que, naquele instante, caía sobre a Terra mais uma promissora estrela. Afinal, ali chegou ao mundo a cantora que hoje é uma das apostas da música pop pernambucana.  Seu interesse pela carreira artística despertou cedo e, desde 2011, quando começou a cantar no grupo de cultura popular Sagaranna, vem ganhando mais notoriedade. Porém, sua luz passou a brilhar mais forte quando ela renasceu em 2021, com um novo “Mapa Astral”, como intitulou o single que inaugura uma fase mais pop do seu trabalho.

Desde então, a cantora passou a assinar apenas como Uana, que agora denomina a sua versão “popstar”. “Senti que precisava mudar também o nome, a personagem artística de uma maneira geral, porque eu estava muito atrelada à cultura popular. Meu nome é, de fato, Uana Mahin, mas eu já queria usar só Uana para aproveitar que ele é curtinho e, ao mesmo tempo, diferente”, explica ela, em conversa pela plataforma Zoom, para a Continente. Por conta da mudança, tudo o que ela havia produzido em carreira solo anteriormente foi apagado da internet, juntamente com os perfis de Uana Mahin. Agora, todos os sites de streaming de música só sabem de Uana, autora não só de Mapa astral, mas também de outras faixas que foram lançadas do ano passado para cá e vêm repercutindo nacionalmente, como as ousadas Pirraça, Vidro fumê e Erva daninha, além de ter participado da faixa Quando o DJ toca, do aclamado disco Baile, do mineiro FBC.

A estratégia parece ter dado certo. Mesmo sem ainda ter lançado nenhum álbum completo da nova fase, os singles publicados até agora já levaram Uana a grandes palcos. Desde a retomada dos eventos presenciais, a cantora já se apresentou em projetos como o Guaiamum Treloso e o Festival de Inverno de Garanhuns, além de já ter outras datas marcadas, como o Festival No Ar Coquetel Molotov, neste sábado (19), a partir das 15h; e o Réveillon Golarrolê, no dia 31 de dezembro deste ano. Para todos eles, a cantora leva o novo repertório incrementado por coreografias e algumas surpresas.

Aqueles que conheceram Uana somente agora e ficaram curiosos para saber o que veio antes, vão ter que esperar o relançamento do primeiro trabalho solo, Pantera, originalmente lançado em 2019. O álbum explora o sagrado feminino negro, reverenciando as orixás mulheres sob muito afrobeat e referências eletrônicas, que já denunciavam o interesse da artista pela sua ancestralidade e por sonoridades dançantes. “Acho que o principal ponto de encontro entre Pantera e o que estou fazendo agora é a minha voz, a maneira como canto e como escrevo, mas são universos diferentes. É difícil falar de religiosidade e de safadeza no mesmo lugar, por isso achei que seria mais interessante, e até respeitoso, segurar esse primeiro trabalho para relançá-lo em um momento mais oportuno, que não é agora, porque estou empenhada em fazer o meu segundo disco, que é o primeiro dessa nova fase”, adianta.

A safadeza que Uana canta agora, no entanto, é mais sutil do que se costuma ouvir nas produções de brega funk, onde ela busca inspiração. “Eu não considero que essa diferença seja uma descaracterização, porque eu não pego a rítmica do brega funk, como os pontinhos ou a lata, e faço uma coisa completamente diferente. Eu faço a minha safadeza. Ela não é explícita, não é rolo doido, como a galera do próprio brega funk costuma dizer, mas é a minha safadeza. Eu também tenho interesse em circular em espaços mais comerciais,  e uma putaria explícita não circula, né?”, observa ela que, da sua maneira, escreve sobre dinâmicas amorosas a partir da perspectiva de alguém que está inserido no contexto de cada estilo musical.

 Confira o videoclipe Pirraça, de Uana

“Tenho esse desejo de escrever também sobre todas as questões que me atravessam enquanto mulher preta, bissexual, então, o meu trabalho fala muito das minhas vivências com ludicidade e uma pitada das histórias de amigos e pessoas que eu ouço também. Acho que a narrativa que eu quero apresentar é falar de tudo isso a partir da minha perspectiva, que não seja algo que eu esteja importando de um boy ou de um outro corpo que não seja o meu. Falar do amor, sendo uma mulher preta, entra também coisas que tangenciam meu universo, como solidão, sexualidade e relações sociais”, esclarece.

Com essa proposta, Uana engrossa o caldo de uma nova onda de mulheres e artistas LGBTQIA+ que estão protagonizando músicas de brega funk com suas narrativas, como são os casos de Rayssa Dias, Laryssa Leal, Preta Nick e Mun Há, essa última autodenominada a “não-binária do brega”. Esse movimento vem para reivindicar espaço na cena, cuja predominância ainda é masculina, e provar que a “safadeza” também é assunto de mulher. Para respeitar a essência do estilo, Uana faz questão de frequentar os ambientes onde a cena circula e produz, sempre com um olhar atento às tendências próprias do gênero.

CRIAÇÃO MUSICAL
Criada no bairro da Várzea, ela mora em Casa Amarela desde os 20 anos de idade e, desde então, se tornou a plateia mais atenta dos carros de som das ruas do bairro, conectando-se ainda mais à cultura urbana recifense. A mudança foi um dos fatores que contribuíram para a sua pesquisa musical, já que o bairro tem tradição em revelar a produção periférica recifense. O endereço foi palco para muitos MCs iniciarem suas carreiras em bailes funk, como o Baile do Teo, cujo fim abriu uma lacuna na cena musical recifense, que foi preenchida posteriormente pelo brega funk. A fusão entre o funk e o brega recifense foi a alternativa que os MCs órfãos dos bailes encontraram para se encaixar no mercado local e seguir se apresentando.    

Talvez, como herança desse legado, o bairro de Casa Amarela concentra vários estúdios de onde saem os hits de brega funk, como o de WR No Beat. O produtor costuma trabalhar com vários outros ritmos diferentes, como o piseiro, bregafunk, pop e R&B. A lista de artistas que ele já produziu é diversa e tem nomes que vão desde o pagodão baiano de Léo Santana a Mundo Livre S/A, banda pernambucana que ficou conhecida pela sua participação no Manguebeat. Só do brega funk, já passaram pelo seu estúdio alguns dos expoentes mais emblemáticos do estilo, como a dupla Shevchenko e Elloco, MC Sheldon e Dadá Boladão.


Foto: Lara Valença

Lá é um dos lugares que a cantora gosta de passar o tempo, trocando figurinha com outros artistas do brega que frequentam o estúdio e, principalmente, criando novas músicas. O resultado do encontro com WR pode ser ouvido nas suas músicas produzidas por ele, como Pirraça, Sonhei com você, Entre quatro paredes, Macetando devagar e Erva daninha. “Nosso processo de criação varia. Às vezes, Uana traz a letra pronta, outras vezes, a gente faz junto ou eu faço o beat e ela vai para casa, fazer a letra. A ideia é sempre estar ligado ao que tá rolando no Brasil e misturar com as coisas daqui do Nordeste, seja no ritmo ou no papo com as vivências daqui”, comenta WR, que está sempre trocando referências com a cantora.

Os artistas que influenciaram a pernambucana ao longo da vida são diversos e estão no universo de samba, MPB, cultura popular, rap e pop. A lista já passou por Adriana Calcanhotto, Marisa Monte, Antônio Nóbrega, Cordel do Fogo Encantado, Chico Science e Nação Zumbi, Beyoncé, Destiny’s Child, Shakira e Christina Aguilera, por exemplo. “Hoje, ao mesmo tempo que eu quero sacar tudo que está rolando, eu quero ter uma pesquisa paralela que seja só minha. Essa pesquisa em algum momento foi o brega funk, que eu ouvi tudo que foi lançado de 2017 para cá. Mas, agora estou interessada em fazer pontes na América Latina. Escuto muito desde Nathy Peluso (estrela pop argentina) a coisas menores, como Florencia Bernales (também argentina que mistura as músicas tradicionais do país com sonoridades peruanas, venezuelanas e brasileiras), que canta algo mais diferente do pop, mas que quero relacionar com o que faço com o brega funk no próximo disco”, revela Uana. 

Não é à toa que, imersa entre tantas referências, a cantora não se classifica como uma artista de brega funk. “As músicas pop que têm elementos do estilo não são identificadas como brega funk pela galera, por isso, entendi que o que eu faço é pop, com uma pesquisa em cima do brega funk”, explica ela, que considera natural que o seu pop tenha o gênero como referência, assim como o pop do Rio e de São Paulo tem como referência o funk, que predomina nas periferias do Sudeste. 

O músico Barro lembra que outros ritmos periféricos pernambucanos, como o coco e o maracatu, por exemplo, já foram incorporados pela classe média antes, de modo que hoje são ouvidos como sonoridades naturais da cena pop do Estado. “O brega funk é um ritmo mais novo, por isso, ele vem com outra linguagem e abordagem estética, e isso ainda causa desconforto em algumas pessoas, mas eu acho que o processo da música sempre lida com essa música que vem das camadas mais populares e, na verdade, esse é o centro da nossa música. Acho que o brega funk é um dos movimentos musicais mais importantes que a gente tem depois do Manguebeat. Ele movimenta muito a cidade, gera uma cara, uma identidade estética, e acho que é importantíssimo de ser difundido de várias formas. E acho que Uana faz isso muito bem”, afirma o compositor.

Ao lado de Marley No Beat e TomBC, Barro produziu Mapa astral, que, apesar de explorar outras grandes referências de Uana, como o R&B e o New Soul, já era um ensaio para se aproximar do universo pop e do brega. A parceria veio depois da cantora atuar e dançar no clipe da música De novo, do pernambucano, com participação de Luísa Nascim. O trabalho foi lançado em março de 2021, também com produção de Marley No Beat e Tom BC, que foram apresentados à Uana na ocasião. A cantora ainda contou com a produção da dupla posteriormente em Vidro fumê, desta vez, usando a estética do batidão romântico, que fez sucesso no brega entre os anos de 2017 e 2018.

O resgate também é parte da proposta artística atual de Uana, que está interessada nas variantes sonoras da periferia recifense ao longo do tempo. “Ela tem um desenho muito interessante para a carreira dela, sempre buscando dialogar com esse pop nacional que está sendo feito, mas trazendo um elemento da música pernambucana que, para ela, o que pulsou foi o brega. Nisso, se incluem muitas coisas, como o brega funk, brega romântico, pagobrega, bregadeira, brega trap… Parece uma linguagem muito forte, que pode ter vários caminhos de sonoridade. Como Uana já trabalhou com muita coisa desde muito nova, ela tem essa coisa universal. Ela conhece muito da cultura popular, dos ritmos e da dança. Isso tudo tá com outra proposta na música e na abordagem dela”, analisa Barro. 


Foto: Uhgo/Divulgação

O produtor WR reforça o ponto de vista do músico e também reconhece a justaposição de experiências acumuladas da artista. “Não tem como negar que o trampo dela tem um pouco de Duda Beat, MPB, Anitta e muito do que ela representa, como mulher negra e periférica, influencia muito no som e na textura da sua música. Ela acrescenta muito à cultura pernambucana, porque só ela está fazendo o trabalho que ela tem feito. Em Pirraça, por exemplo, tem maracatu, uma coisa meio afro no meio, tem uma sanfona que dá aquela liga com a voz dela, que tem um pouco das forrozeiras daqui”, exemplifica.

FORMAÇÃO CULTURAL
No entanto, apesar de ter nascido na periferia, Uana cresceu com muitos privilégios e reconhece que as suas composições traduzem vivências um pouco diferentes da periferia. Por volta dos cinco anos, ela foi morar no bairro da Várzea, onde fica a Universidade Federal de Pernambuco. Lá, viveu uma infância tranquila, com acesso a bons colégios particulares, onde pôde se preparar para o vestibular e ingressar em Teatro, na UFPE, em 2011. No ano seguinte, escolheu trocar de formação e prestou vestibular para Dança, na mesma instituição. Dedicou-se ao curso até 2017, quando interrompeu a graduação por conta da rotina já dividida entre a criação de Akin, seu filho, e seus vários trabalhos. Para pagar as contas, ela costumava conciliar a carreira artística com outras tarefas profissionais, lidando com cozinha, comunicação e produção de alguns eventos, como a festa Batekoo.

Na troca de cursos durante a graduação, mora a origem da Uana que se destaca agora. Ainda em 2011, a artista atuou em um espetáculo de educação ambiental que contava com números musicais,  em que todos os atores eram preparados vocalmente para cantar. O projeto contava com outros profissionais, que logo formariam com ela o grupo Sagaranna. Entre eles, o cantor Martins – hoje, despontando no cenário da MPB por conta de músicas como Me dê - foi o primeiro a dizer para Uana que ela tinha um vocal interessante para a música. “Eu sempre quis ser atriz, tinha o sonho de fazer novela da Globo. Estava me preparando para isso, fiz até uma residência pela Fundação Roberto Marinho e pelo Canal Futura, no Rio. Com esse espetáculo, eu comecei a ver a minha voz no lugar da música. Migrei para o curso de Dança, depois, porque já estava entendendo que o que eu queria talvez não fosse necessariamente teatro, mas outra performatividade”, observa.

A mudança foi motivada também pelas experiências com o Sagaranna, onde todos os integrantes pesquisavam sobre a cultura popular e, principalmente, o Cavalo Marinho, cuja musicalidade gira em torno da encenação e da dança. “Mas eu tinha muitas outras referências que não dava para colocar no meu trabalho com o Sagaranna ou como backing vocal de artistas populares”, comenta ela, que passou a investigar como poderia explorar seus interesses performáticos após o fim do grupo, que se despediu do público com a gravação do seu único disco, o homônimo de 2015, e uma turnê pela Europa.

A bagagem de peso somada a sua nova construção no pop, ainda a deixam confusa sobre como classificar o seu trabalho, mas isso também não parece ser uma preocupação. “Não me sinto alternativa, não me sinto do brega funk e não me sinto exatamente pop. Mas eu sinto que eu pertenço um pouco a esses três lugares e que eu faço essa mistura que está aí nesse entrelugar”, resume ela, que parece ter encontrado nesse cruzamento o endereço para fixar a sua criatividade.

CAMILA ESTEPHANIA, jornalista e mestranda em Comunicação pela UFF.

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