Sábado de Carnaval, Recife, Rec-Beat. Cais do Alfândega lotado, numa época ainda sem medo ou receios de aglomeração. Sobe ao palco a dupla Bad do Bairro. Público em estesia, canta em coro músicas ainda não lançadas. Acompanha de ouvidos atentos e corpos agitados as rimas de improviso criadas pela cantora sobre o som das bases lançadas pela DJ. Sexualidade, libertação e amor são matérias das composições. Quem, em meio à quarentena, relembra esse cenário encontra dificuldade de internalizar que essa catarse pertence a 2020.
Agora, exatamente quatro meses depois, muitos artistas adiam seus lançamentos, temerosos pelas incertezas da pandemia. Mas Jup do Bairro, aquela voz do show com Badsista no carnaval recifense, vai na contramão. Enquanto estamos em casa, ela põe nas ruas seu primeiro trabalho solo, o EP Corpo sem juízo, lançado em 11 de junho. “Eu realmente estou criando uma nova possibilidade de trabalho e acredito muito que era um trabalho extremamente urgente”, revela a artista. E está certa. As faixas do EP, algumas escritas há anos, carregam mensagens, reflexões e dores ainda inflamadas na sociedade dos dias de hoje.
Mesclando sonoridades, seu disco acompanha a transformação do corpo, desde o nascimento à morte, com letras que cantam, rimam e (de)clamam respeito e libertação. As músicas não ecoam somente as experiências da artista “travesti, preta, gorda que mora na periferia”, como diz, mas também as de todas aquelas que procuram por novas possibilidades de existência. Produzir arte a partir das dores é árduo, principalmente num mercado excludente, mimético de um sistema acostumado a invisibilizar vozes e corpos marginalizados. E ter de caminhar sozinha é difícil.
Seu lançamento, seu despertar artístico, suas vontades e transformações estão nesta conversa exclusiva de Jup do Bairro com a Continente. A entrevista via videochamada durou mais de uma hora, mas passou num piscar de olhos. Nela, a artista multimídia, que vem do Capão Redondo (mesma quebrada dos Racionais), em São Paulo, desengavetou histórias do passado, com ares de humor e nostalgia, e também falou das perspectivas para sua carreira, sua paixão por Recife e a ânsia de revolucionar o sistema: “Não podemos unicamente lutar pela representatividade, porque é muito pouco”.
Capa do EP Corpo sem juízo (2020)
CONTINENTEComo você está sentindo a repercussão do seu EP Corpo sem juízo? JUP DO BAIRRO Nossa, eu estou muito feliz. É uma mistura de felicidade com alívio pela recepção estar sendo tão calorosa, com grande engajamento do público. A ideia era que começasse por mim, mas que não terminasse em mim, e que outras pessoas se sentissem contempladas por minhas escritas. Me senti insegura algumas vezes, achando que não conseguiria executar esse trabalho, que teria alguma coisa que pudesse interromper tudo isso. E estou vivendo esses últimos dias, desde Corpus Christi, com essa mistura de emoção: felicidade e alívio.
CONTINENTEEu vejo muito teu cuidado em fazer uma construção genuinamente coletiva do seu EP. É seu trabalho solo, mas têm muitas cabeças juntas nesse processo. Para você, qual a importância de se fazer essa construção coletiva? JUP DO BAIRRO Para mim, é fundamental. Começo partindo do princípio de que eu não acredito em revolução una. Às vezes, a representatividade é uma faca de dois gumes. Porque do mesmo jeito que representa e dá imaginário para outras pessoas se inspirarem e se moverem, ela também pode deixar as pessoas estáticas, na posição de “ah, se já tem a Jup do Bairro me representando, eu posso ficar aqui quietinha”. Eu não posso ser detentora da representação. Então, para produção do meu disco, montei uma estratégia para que venham outras depois de mim que possam fazer e articular seu trabalho independente também. Corpo sem juízo foi feito, desde o início, de forma coletiva, com financiamento coletivo – mais de 700 pessoas colaboraram diretamente –, e a nossa divulgação é toda orgânica e totalmente dependente do engajamento do público.
E uma coisa que eu gosto de evidenciar é: reconhecer minhas referências. Porque me parecia que os elogios ficavam destinados unicamente para as artistas, como o lançamento da Lady Gaga, em que todo mundo falou “maravilhosa! Faz tudo!”, como se ela produzisse seu próprio instrumental, fizesse a divulgação... Eu gosto muito de expor que sozinha não podia fazer nada, nem um terço. Então, é muito importante nomear a equipe que está trabalhando comigo. Minha imensa equipe de quatro pessoas (risos): Thiago Felix (produtor executivo), Izabela Costa (assessoria de comunicação), Felipa Damasco (artista multimídia) e a Badsista (direção musical). Que além de fazerem um trabalho impecável, são curiosas em entender o meu trabalho. Porque a indústria musical não se preparou para o ingresso do meu corpo nesse lugar. O comércio – o mercado – não está preparado para mim, para corpos como o meu. A gente tem feito um trabalho que é justamente criar um lugar para que eu caiba. Estamos inventando um imaginário.
E também o audiovisual brasileiro é muito caro, é muito difícil. Acredito que seja um grande plano do Estado e do sistema para que a gente não tenha esses mecanismos como ferramentas a nosso favor. Por que quando a periferia se junta para fazer uma roda de rima, por exemplo, já começa a criar uma pretensão de “talvez eu possa ser uma outra coisa nessa engrenagem sistemática”. Acredito que essa população mais marginalizada e periférica consegue criar imaginários a partir da arte. Foi o que eu fiz.
CONTINENTENão é à toa que seu EP é tão atual. Já faz 10 anos que você trabalha nele, mas parece que as letras foram escritas ontem. Isso só mostra a força e relevância de você falar o que muitos invisibilizam. E como foi lançar esse seu trabalho no meio de uma pandemia? JUP DO BAIRRO O que eu pensei de imediato é que eu gostaria de lançar esse trabalho neste momento. Eu acompanhei muitas discussões de artistas falando que poderia não ser um plano muito estratégico, porque só poderia ser distribuído pela internet, não poderia fazer show de lançamento – que é o que, de fato, gera mais acolhimento financeiro para artistas neste momento, os streamings pagam muito pouco. E daí eu fui contra isso. Eu realmente estou criando uma nova possibilidade de trabalho e acredito muito que era um trabalho extremamente urgente. Quando eu ouço a faixa Luta por mim, por exemplo, que é a última faixa do disco, eu fico muito triste do quanto ela é atual. Apesar de ter sido escrita anteriormente, olha como o passado se repete, olha como esse mecanismo da opressão é uma engrenagem que volta de uma forma mais sofisticada, e as histórias continuam se repetindo.
Mesmo depois de tanta conversa e articulação, em 2020 a gente tem que voltar a nos expor e a mexer em feridas que ainda estão abertas. Mas não que acho que a gente nadou e morreu na praia, eu acredito que progredimos, mas o passado também tem progredido. Quando começamos a invadir e a hackear os espaços, a ter nossa fala impregnada em portais de notícia, para falar não só sobre a nossa morte, isso incomodou. Porque a gente está cravando de fato uma invasão de espaço, a gente está competindo por espaço. Não podemos unicamente lutar pela representatividade, porque é muito pouco. Temos que lutar por uma equalidade. Devemos equalizar as nossas ações, para que esses avanços sejam iguais. E isso significa medo para esse governo, para quem retém os privilégios de acessibilidade, comunicação e valorização – os acessos que movem uma sociedade.
Tem uma fala da Badsista que está muito presente na minha cabeça: “O corpo marginal tem uma espécie de chip tecnológico de adaptação ao seu tempo”. E eu tenho levado isso muito em consideração, porque é um momento de muito medo e insegurança, de extrema euforia, falta de sono e ansiedade. E que bom que a gente está sentindo isso, porque não me preocupa quem está sentindo, me preocupa quem não está sentindo esse medo e insegurança. O importante da gente reconfigurar é poder pegar toda essa sensibilidade e reconhecer potências, e pensar numa forma de articular isso para sobreviver ao caos.
Muitas pessoas têm falado que estamos vivendo o apocalipse. Mas, sinceramente, eu acredito que o apocalipse já aconteceu há muito tempo e estamos andando sobre os escombros. É que agora a maior massa está conseguindo ver isso. O que o mundo está vivendo neste momento é o que a população preta, a população T (transgênera) vive há muitos anos: o medo de sair de casa e pensar que pode morrer. Mas agora esse medo se expandiu de uma outra forma, em forma de pandemia, é por isso que assusta. A polícia já invadia nossos lugares na periferia, já tirava nossa liberdade. Mas só quando começa a apertar no calo da esquerda classe média e branca, é que começa: “Opa, vidas negras importam”, “opa, olha a agressão policial”, e gera uma comoção em massa. Mas essa comoção, enquanto ação, significa o quê?
Show de Jup do Bairro com Badsista no Rec-beat 2020. Foto: Hannah Carvalho
CONTINENTEIsso se reflete muito na letra de Luta por mim, que você fez em parceria com o Mulambo. Nela vocês dizem: “É que é toda vez a mesma merda / ‘Cês matam eu de carne pa’ fazer eu de pedra / Movidos pelo tesão por tragédia / Agora morto eu tenho mais voz do que vivo, parece comédia!”. Estão construindo monumentos para reverenciar corpos mortos, mas enquanto estamos vivos e gritando, as pessoas não dão ouvidos... JUP DO BAIRRO É... Somos chamadas de “histéricas”. Falam que “não precisa de tanto”. Uma coisa que eu acho um grande erro, e também muito brutal, é que, às vezes, para destrinchar uma posição de opressão, as pessoas tentam se colocar numa vivência que elas não vivem. Não podemos nos colocar em um lugar onde nunca teremos imaginário e achar que aquilo vai conseguir modificar algo. Temos que nos colocar em nossos próprios lugares e reconhecer como podemos ser agentes responsáveis ou não. A culpa da morte não é só de quem enfia a faca. Temos que repensar nossas posições, de onde a gente se enxerga, porque podemos estar amolando a faca. A responsabilidade da transfobia é de quem não é trans, a responsabilidade do racismo é de quem não é preto. Até a forma de nos colocarem como protagonistas nesses assuntos é um jeito sutil de nos responsabilizarem por esses atos e por essa estrutura que nos oprime.
Uma coisa que a Djamila Ribeiro fala e ecoa na minha cabeça é: “O lugar de fala não significa para o outro um lugar de silêncio”. Qualquer pessoa pode falar sobre pretitude, gastronomia, economia... Mas o que precisamos evidenciar é que minha fala vai ser a partir da minha vivência, e que a sua fala vai ser a partir da sua vivência. Mas, muitas vezes, sinto que rola um lugar de “resistência”, mas num outro sentido dessa palavra, no sentido de “resistir o ouvir”, de não querer saber uma outra versão. A gente precisa parar de achar que as pessoas que estão falando e compartilhando novas narrativas estão propondo verdades absolutas. Na verdade, nós estamos propondo novas dúvidas, novos conhecimentos e discussões. Precisamos dessa conversa e alinhamento porque quem toma e assume o poder, quem concentra o grande monopólio de mercado e indústria, é muito bem-articulado, então a gente precisa ter também essa malícia de se articular para saber como vamos invadir esses lugares em massa, não unicamente com protagonismos. Temos que invadir em quantidade esses acessos para a gente, finalmente, conseguir falar de revolução.
CONTIENTEVou me apropriar de um questionamento que você fez para Mulambo, no dia do pré-lançamento online do seu EP, e te perguntar agora: você pega a dor gerada pelo sistema e transforma em arte. Mas às vezes, na prática, isso não é tão poético quanto soa. Como você consegue manter a saúde mental em meio a isso? JUP DO BAIRRO Olha, para mim é um grande exercício, porque como eu já disse em Corpo sem juízo: “É como estar diante da morte e permanecer imortal”. Acho que evidencio essas dores justamente com a possibilidade de que elas possam ser cicatrizadas. Então, quando comecei com a arte, quando comecei a compor, não tinha pretensão em ser música; eu escrevia meus pensamentos como uma forma de externar o que estava sentindo. Quando começo a materializar e nomear as coisas, elas começam a ter um lugar... É como se fosse um jogo de Tetris: eu pego essa sensibilidade e essas dores que ficam embaixo, e as coloco em cima, para que eu possa contar essas histórias. E para que outras pessoas também consigam ter as histórias delas. E com isso a gente consiga ter um diálogo de como podemos lidar com tudo isso, como lidar com essas dores. Estamos vivendo um momento em que podemos evidenciá-las e torná-las potências. Quando falo sobre essas dores, eu também estou criando o medicamento. Como se eu fosse a minha própria médica e monstra, sabe? Estou criando antídotos para cicatrizar e profetizar vida, para no final poder dizer que, apesar da fragilidade do meu corpo, das minhas pernas não conseguirem mais caminhar, a minha voz rouca não soar, eu não vou morrer. Eu posso morrer em carne, mas a partir do momento que a gente começa a colocar mais fogo no pavio, a bomba pode estourar a qualquer momento. E daí vai ser história para tudo quanto é lado. A gente já vai ter contaminado uma grande outra população que vai estar falando de outras vivências, ânsias e dilemas. Eu quero evidenciar esses problemas agora para que uma próxima geração consiga falar de outros problemas e sobre outras dores.
Foto: Jup do Bairro, Felipa Damasco, Cai Ramalho/Reprodução
CONTINENTE Você sempre menciona que se desenvolveu baseando-se em referências colhidas ao longo da sua vida. Mas hoje você está na posição de referência para muita gente. Como você enxerga isso? É um estado de responsabilidade? JUP DO BAIRRO Sim. É muito importante ter essa responsabilidade, mas também que essa responsabilidade não me faça sentir única, exclusiva e detentora dela. Eu acredito, sim, que o que eu falo e as ações que eu tomo influenciam outras pessoas, e acabam criando fala na boca de outras pessoas. Mas o que tento sempre, nas minhas redes, nas oportunidades de conversar e de expor meus pensamentos, é me humanizar, falar que eu não sou uma fada sensata, que eu vou errar. Eu estou propondo discussões, e não levantando pensamentos conclusivos. Eu quero realmente que meu trabalho seja um alimento nutricional para outras cabeças, mas que não seja o único. Para uma refeição ser saudável, ela precisa de componentes pra ficar tudo equilibrado. Eu quero ser um desses componentes, não quero ser o prato principal. A gente começa a endeusar pessoas e desumanizar elas, criando essa narrativa de “detentora de todas as verdades” e, quando ela errar, vai ser digna de cancelamento, que é o que fazem muito – principalmente para população preta. Vemos por aí vários deslizes de pessoas brancas, inclusive de artistas, que são passados batidos. Mas uma pessoa preta não pode errar nunca! É uma pressão muito grande a todo momento. Então eu me responsabilizo, mas gosto de responsabilizar o público, para não me desumanizarem. Porque fora dos palcos eu continuo sendo a travesti, preta, gorda que mora na periferia, sabe? Eu atravesso São Paulo sob esses olhares até chegar ao local do show. Quando eu sou abordada ou sofro algum tipo de agressão, ninguém quer saber se eu tenho o “arraste pra cima” ou uma conta verificada no Instagram. Então é muito importante que eu converse abertamente que eu não estou disputando nenhuma posição de diva pop. Eu quero, realmente, é criar discussão e atrito nesse espaço.
CONTINENTEConstruir em rede e crescer em rede... JUP DO BAIRRO Com certeza. E tensionando essa rede para que ela não seja só afetiva, mas, sim, efetiva. Porque nós, em grande massa, somos responsáveis pelos imaginários criados, pelo que consumimos e pela arte que propomos expandir. Senão fica algo robótico e repetitivo. É muito bom a gente começar a destrinchar isso para que vire uma responsabilidade una.
CONTINENTESobre o teu despertar artístico... Quando foi que você entendeu que queria seguir a carreira de artista, como uma profissão? JUP DO BAIRRO Como muitas crianças da periferia, eu tive a televisão como babá, era uma forma de “fica aqui assistindo TV enquanto eu preciso trabalhar”. Então, eu sempre fui muito curiosa, assistia muita televisão. Eu gostava daquilo, achava tão mágico o poder da comunicação de externar as ideias, sempre ficava muito vidrada. Mas esse sonho me foi roubado quando eu comecei a ter entendimento de que não cabia naquele lugar. Eu não via pessoas como eu, eu não via discursos sobre o que estava permeando a minha cabeça. Antes da sexualidade, o primeiro recorte evidente na minha cabeça foi o de gênero, e eu pensava que eu tinha nascido no corpo errado, de que alguma coisa no universo conspirou contra o meu nascimento e de que eu não era digna de vida mesmo. Não era digna de estar nesse espaço. E daí foi quando eu comecei a pensar “não, eu preciso formular outras coisas, preciso pensar em outras coisas”. Comecei a trabalhar muito cedo, a renegar meus desejos, as minhas vontades, as minhas transformações, é aí que eu começo a escrever também. Eu fui entendendo que se eu escrevesse, eu poderia justamente materializar isso. E com o ato de rasgar o papel, eu estaria aniquilando aquelas vontades, desenhos e pensamentos.
No começo da minha adolescência, comecei a conhecer mais sobre a cena punk de São Paulo, principalmente aqui da periferia, onde tinha um movimento grande de anarquistas e punks, e eu comecei a enxergar outras possibilidades. Uma galera de um coletivo fez um fanzine com os meus textos e falou: “A gente criou pra você. Vai vender e faz alguma coisa, se tá precisando de grana. Isso vai ser importante pra você e importante para as pessoas”. E eu, muito timidamente, comecei a vender esses fanzines, com muita vergonha. Como eu era uma criança muito infantilizada, gordinha, bochechuda e muito fofinha, acredito que as pessoas pegavam aqueles livretos pensando que era livreto de igreja. Mas quando abriam, tinha lá umas discussões de gênero, umas vaginas e uns pintos nas artes... E a galera ficava muito constrangida, porque não esperavam muito por aquilo (risos).
Autorretratos de Jup do Bairro em polaroid. Direção artística: Felipa Damasco/Reprodução
Eu moro no distrito do Capão Redondo, num bairro que é a divisa entre São Paulo e Itapecerica da Serra, então é uma quebrada meio rural. Pois ao mesmo tempo que tem a galera na contenção, passa também umas vacas, com muito mato... (risos). Isso faz com que seja muito escasso o acesso à cultura, tínhamos que nos locomover muito para chegar até alguma manifestação artística. Por isso decidi, junto com uma galera da região, fazer um sarau aqui. E daí eu fui tendo estalos de que era importante me ter à frente desse trabalho, até porque o coletivo (que estava organizando) era de maioria de homens cis, então eu achava que eu apresentando esse sarau poderia captar outros públicos, além de homens. Seria um contraditório, pois era um lugar que esses boys continuariam tendo espaço para suas falas, mas eles iriam ter o confronto de que seria eu apresentando.
Num dia específico, comecei a ler uma poesia e um dos DJs convidados soltou uma base, e eu comecei a recitar em cima dessa base. Daí gravaram um vídeo e rolou uma grande repercussão no Facebook, a galera ficou chocada, pasma, porque não tinham muitas pessoas fora da lógica masculina cis produzindo rap aqui na minha quebrada. Esse vídeo deu uma viralizada e eu fui convidada para fazer uma apresentação no centro de São Paulo. Eu tava muito dura e me ofereceram cachê de R$ 50, que pra mim era muita grana. Mas eu não tinha repertório, sentia que não tinha presença de palco, porque nunca tinha me apresentado de fato, principalmente fora da minha quebrada. Mas pensei: “Quando que vão me oferecer 50 conto de novo pra eu executar meus textos? Então eu vou lá!”. Eu tinha duas músicas minhas, que na verdade eram poesias, decoradas na minha cabeça. Aí eu baixei duas bases do Youtube mesmo, bem na guerrilha. E pensei: “Faço essas músicas que eu tenho decorado, e o resto eu baixo karaokê. Porque vai ficar tosco se eu ficar só lendo as minhas músicas lá no palco na frente da galera”.
Na época, minha noção de repertório ainda era zero, então baixei os karaokês de Você me vira a cabeça (da Alcione), Whisky a gogo e de Valeska Popozuda, porque eram as músicas que eu sabia cantar por inteiro. Eu não tinha computador na época, usava internet em lan house, e eu tinha uma prima que tinha um computador de tubo, com CPU, monitor grande... Eu pedi emprestado e ela me emprestou. E lá vai eu, de ônibus, com uma mala gigantesca, transportando um computador pra eu poder tocar, porque eu tinha nem noção que poderia colocar música em pendrive, tinha experiência zero. Levei o computador só pra usar o Windows Media Player, morrendo de medo de ser roubada ou quebrar o computador. Quando cheguei lá, a galera perguntou por que eu tinha levado o computador e eu falei: “Porque minhas músicas estão aqui”. Me olharam meio estranho, mas, como era uma galera artística e tudo mais, pensaram que era um conceito. Mas não era! Me apropriei disso, mas não era (risos).
Eu era muito tímida, fui criando presença de palco com o tempo. Na época eu usava uma máscara balaclava, que era uma forma de proteger meu rosto, de me esconder. E que também apropriei como se fosse um conceito. Então, nos meus primeiros shows, eu não mostrava a cara. Nesse primeiro show, eu soltava as músicas do computador que ficava atrás de mim, depois ia lá pra frente cantar, onde estava o pedestal com microfone, e quando a música acabava eu saia correndo de volta para o computador. A plateia achou muito legal e aplaudiu. No final, peguei o meu dinheiro e fui embora sem pensar duas vezes, mas pensando “eu sou um fiasco, uma vergonha! Nunca mais faço isso na minha vida”. Mas todo mundo amou, e eu achando que era deboche.
Algumas semanas depois desse show, recebo uma mensagem no Facebook de alguém que viu a minha apresentação e estava me convidando para ser rainha de cerimônia no Festival da Virada Cultural de São Paulo. Eu pensei logo “que mentira”. A pessoa disse que eu podia aproveitar e levar também as bases e músicas que eu já tinha para tocar nos intervalos. Aí eu falei para um amigo meu: “Ó, eu não sei se é verdade, principalmente por terem me oferecido R$ 600, mas vamos comigo. Você me ajuda a soltar as bases para mim no palco. E se for mentira, a gente aproveita que vai estar em um centro cultural e uso os 20 conto que eu tenho aqui pra gente tomar um negocinho e ver os shows”, e ele topou. Quando chegamos no festival, a contratante estava lá para me receber e eu vi que era verdade e pensei: “Gente, meu segundo show vai ser na Virada Cultural de São Paulo...”. Com isso, fui criando maior visibilidade na cena da noite paulistana, comecei a fazer shows em inferninhos, a cena clubber era muito potente em São Paulo, e essas festas aconteciam em puteiros porque o aluguel da casa era mais barato. Lá vai eu, menor de idade, tocar em puteiros, pegando RG falso, ou emprestado do meu irmão, ou dando carteirada para conseguir entrar (risos)...
CONTINENTENessa época você tinha quantos anos? JUP DO BAIRRO Eu comecei a escrever e compor com 13. Mas comecei a me apresentar com 15, 16 e 17 anos. O tempo foi passando e eu tava fechando com um produtor o meu primeiro disco, mas, conforme eu fui criando notoriedade, esse disco que era pra ser na parceria, o produtor começou a me cobrar e dizer que só ele teria acesso. Quando falei que não tinha de onde tirar o dinheiro, ele disse para eu me virar e apagou todas as faixas do disco na minha frente, no meio de uma reunião que tivemos. Foi quando eu comecei a achar que a música não era para mim e pensei em desistir.
Foto: Jup do Bairro, Felipa Damasco, Cai Ramalho/Divulgação
CONTINENTENaquele tempo você já tinha escrito as músicas que hoje estão no EP Corpo sem juízo? JUP DO BAIRRO Só a faixa Corpo sem juízo, que foi uma das primeiras letras que escrevi. As demais músicas eu abri mão porque outras urgências apareceram na minha vida. Tem muita música que não executo mais, pois acho que não correspondem às mudanças que meu corpo teve. Na época em que pensei em parar com a música, foi quando a Linn (da Quebrada) começou a me mostrar as coisas que ela estava escrevendo, que falavam muito sobre as situações que estávamos passando. E eu mostrei a ela que aquilo era música, só faltava musicar. Fomos então convidadas pra fazer um show, que foi filmado pro filme Abrindo o armário (2018). Foi quando eu anunciei que seria meu último show, meu show de despedida. Como eu já vinha lendo muito o que ela estava escrevendo e compondo, eu tinha tudo na minha cabeça, então, pra ajudar ela de alguma forma, eu fui fazendo um backing vocal, cantando junto com ela. A galera falava: “Poxa, vocês duas juntas têm muita conexão. É muito foda o atravessamento que vocês conseguem criar”. Foi a partir daí que começamos a pensar na possibilidade de fazer uma parceria concreta.
Fomos convidadas para fazer uma apresentação no festival Periferia Trans, no Grajaú (SP): ela pela primeira vez como Linn da Quebrada, e eu para fazer uma performance, que demorei dias fazendo uma roupa toda de lixo, reciclada – bem veganinha (risos). Mas quando ela chegou na última música, eu tirei essa roupa, rasguei, não fiz a minha performance, e subi no palco pra dançar com ela. Ela me disse depois que ficou bem mais confortável quando eu subi no palco. Como ela tinha mais um show naquele dia, eu a acompanhei como dançarina. Depois desse dia foi quando veio o despertar, e ela me convidou para cantar junto com ela. Fomos articulando... E eu criando planos de retomar minha carreira.
Eu era a minha própria produtora. Quando a galera queria contratar meu serviço, eu falava: “Manda um e-mail e fala com a Rosângela/Cibele... Que ela vai te responder”. Mas, na verdade, era eu (risos). Eu achava que tendo uma produtora dava uma sofisticada, e eu inventava um nome na hora. Só em 2018, quando realmente tive um produtor, contratei um amigo meu. Na reunião, quando eu pedi pra ele trabalhar comigo, eu disse queria fazer um financiamento coletivo para meu disco. Começamos a fazer o financiamento, e acho que isso foi potencializando ainda mais minha vontade de materializar esse trabalho.
CONTINENTEEsse processo criativo de escrever primeiro as letras e depois encaixar os arranjos… É sempre assim? Ou varia de acordo com as faixas? JUP DO BAIRRO Meus processos criativos variam muito, mas eu consigo adaptar. Eu já tinha algumas das letras mais antigas que eu já vinha compondo há alguns anos: Corpo sem juízo, Transgressão e Luta por mim. Mas All you need is love e Pelo amor de Deize eu acabei escrevendo no processo mesmo, junto com a Badsista. A gente tem uma parceria muito genuína e de liberdade em que ela abertamente me auxilia sobre as composições e também no instrumental. Temos uma conexão tão grande, que às vezes eu faço um som com a boca, porque eu não entendo nada do mecanismo musical, e daí eu faço: “Talvez se você colocasse um... (faz sons no estilo ao beatbox com a boca) aqui... ficaria bom”. E ela consegue captar! (risos). E acho que estar com a Badsista assumindo a direção musical do meu disco faz muito sentido por explorar essa nossa conexão. O Corpo sem juízo é feito com pessoas que eu amo, que acreditam em mim e eu acredito nelas. É uma grande panelinha (risos)!
CONTINENTE Então quando você diz que a produção do seu EP foi um “parto”, na verdade foi um “parto humanizado”. JUP DO BAIRRO Total! Com quem eu fiz essa gestação são pessoas que eu amo, confio e fazem sentido estarem neste momento. A Badsista, por exemplo, eu sempre admirei muito o trabalho dela – então eu roubava do Soundcloud as bases dela para fazer instrumental nos meus shows. Quando a conheci, na produção de Pajubá (CD da Linn da Quebrada), pensei: “Que sapatãozinha invocada! Acho que a gente não vai virar amiga”. Porque ela tinha um jeito mais duro, mais resistente... Mas, com o tempo, fomos nos apegando, até o ponto de nos intervalos das gravações ficarmos no cantinho: ela fazendo beatbox e eu fazendo freestyle, sempre produzindo música. Tanto que nasceu o projeto Bad do Bairro, que apresentamos no Rec-Beat, e é a junção de nós duas. Eu nunca sei o que ela vai tocar, e ela não sabe o que eu vou cantar. Então, é sempre uma surpresa pra gente e pro público.
CONTINENTEE como você enxerga sua carreira depois do EP Corpo sem juízo? JUP DO BAIRRO Olha, eu estou muito apreensiva, mas sou muito pé no chão. O fato de eu continuar morando na periferia me ajuda muito a ter essa responsabilidade e reconhecimento de onde eu vim e onde eu estou. Ter mais de 10 anos de carreira também faz com que eu não me emocione ou me deslumbre tão fácil. De alguma forma, já consegui provar um pouquinho do mainstream e do underground, mas não quero ser pertencente a nenhum desses dois lugares, quero ser pertencente ao meu tempo, ao meu trabalho e à minha geração.
Fico super feliz com os números crescendo nas minhas redes, pois, de certa forma, é um público maior com quem estou falando, lidando e expondo minhas ideias, mas não quero entrar na corrida maluca dos números, porque não faz sentido, principalmente pelos assuntos que abordo e pelas urgências que acho que são necessárias. Eu não estou entrando em uma disputa artística, quero entrar numa disputa de território. Eu quero entrar numa disputa de posição, de privilégios financeiros e de privilégios de acessibilidade, para fazer com que outras pessoas se contemplem, de forma direta ou indireta, com esses recursos.
CONTINENTE Está planejando alguma turnê do Corpo sem juízo para quando a quarentena acabar? E se estiverem, querem vim para o Recife? JUP DO BAIRRO Primeiramente, eu quero dizer, deixar registrado, que, realmente, o Rec-Beat foi uma das melhores sensações da minha vida. Eu estava lá pisando em nuvens! Eu já amava muito Recife, mas sentir aquela energia... Músicas que eu nunca lancei e a galera cantando, foi uma sensação muito absurda. Mas, sinceramente, não sei como vai ser o nosso tempo, porque ainda é muito nebuloso o que vai acontecer. Tenho muita vontade de fazer uma turnê com esse show, porque vai além das músicas, tenho muitas propostas de imagem e de performance para entregar. Acredito que eu vá construir um espetáculo lindo. E eu quero muito que o Recife seja uma das primeiras cidades a receber esse espetáculo, eu estaria dando um presente tanto pra galera de Recife quanto pra mim... E também para deixar aberta a porta do Rec-Beat, que eu volto a qualquer momento, é fazer estalo que eu volto!
Bad do Bairro no Rec-Beat 2020. Foto: Hannah Carvalho
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