Entrevista

"Com estas coisas, a gente valoriza a vida"

Dois meses após o terceiro infarto, Robertinho do Recife gravou, a pedido da gravadora e ao lado do filho Rob Endraus, o disco Rapsódia de Natal, com versões de clássicos da música natalina

19 de Dezembro de 2025

Foto Divulgação

Robertinho do Recife é acompanhado ao longo da maior parte da sua vida por uma senhora da classe de 1962. São inseparáveis. Ela está em quase todas as faixas do álbum que ele lançou dias atrás. A senhora em questão é uma guitarra Fender, de 63 anos, o esmalte bastante descascado, mas a sonoridade, o timbre, otimizados com a idade. Ele toca com esta guitarra desde os anos 1960, quando era o garoto prodígio do Recife, de Os Moderatos, um dos conjuntos top de linha da jovem guarda pernambucana.

Rapsódia de Natal (Universal Music), o novo disco, não é exatamente um disco solo. Embora Robertinho toque todas as guitarras, o álbum foi realizado em dupla, com seu filho Rob Endraus. O Bob pai entrou com as guitarras, o Bob filho com os barulhinhos bons.

CONTINENTE O disco foi feito por você e Bob Endraus. Como foi esta sinergia com seu filho, a divisão de tarefas?
ROBERTINHO DO RECIFE Fazer o disco com ele foi uma condição que eu pedi à gravadora Universal pra gravar o disco. Eles me pedem pra fazer um disco de natal em 29 de outubro. Fiz em 15, 20 dias. Falei pra eles, "Pra realizar o disco e entregar na data, ainda em novembro, só tem um cara com quem consigo isto, meu filho". A gente mora juntos, em casa tem dois estúdios. Um é dele, outro é meu. Alocamos os dois estúdios. Ele trabalha lá, eu trabalho cá. Tenho uma sinergia com ele muito grande. Já esteve no Metal Mania (projeto de heavy metal, levado em turnê cinco anos atrás). Ele fazia uma coisa meio Daft Punk. Rob tem um grande conhecimento de música eletrônica, que eu gosto muito. As pessoas falam, "Ah, música eletrônica, eu adoro". Mas música eletrônica de qualidade, feito Vangelis. Gosto muito do Daft Punk.

CONTINENTE Como surgiu, assim de repente, um projeto de música natalina?
ROBERTINHO DO RECIFE Surgiu no ano passado, antes do Natal, quando Miguel Afonso, diretor artístico da Universal, me ligou e disse que estava pensando, se eu não teria interesse de fazer um disco de natal. "Eu tô falando isso, mas a gente não tá contratando ninguém tá fazendo nada. Mas eu gostaria muito de ter um disco de natal teu", me disse. Veio a calhar. Como eu fiz seminário, participei de muitas cantatas de natal, toquei em muitas, tanto aqui, quanto nos Estados Unidos, conheço tanto o repertório católico, quanto o protestante, principalmente do Sul dos Estados Unidos. Como eu já tocava estas músicas de natal, não aquelas mais comerciais, feito "Jingle bells", que não fazem parte dessas cantatas de cunho religioso. A parte religiosa eu tinha conhecimento, e a outra já tocava de brincadeira.

Este ano o Miguel me liga também no final do ano, já em cima da bucha, final de outubro, dia 29. E diz: ‘Aquele disco de natal, não tem interesse não?’ Fiquei viajando na ideia. Eu tinha pensado em algumas coisas, mas nada muito definitivo. Sabe o que acontece? As músicas de natal são muito simples, muito curtas. Tem que fazer uma coisa que seja interessante, pois não são feitas para guitarra.

CONTINENTE E como foi o processo, o início?
ROBERTINHO DO RECIFE Começamos a pensar nos arranjos. Bob aceitou o desafio. Menos de um mês pra fazer. E aí foi isso, muito na pressa. No final, uns 15 dias depois, quando teminamos, dissemos: “Puxa, a gente fez uma boa coisa”. Senão nem teria entregado à Universal. Quando eles ouviram gostaram muito, houve aplausos na audição.

CONTINENTE Como você chegou a este repertório, que tem clássicos pop natalinos e clássicos eruditos?
ROBERTINHO DO RECIFE Nos pop natalinos, como você chamou, procurei fazer uma leitura das músicas mais adaptadas pra guitarra. Você não pode pegar uma música como o "Samba de uma nota só" na guitarra, fica horrível, "tamtamtamtamtam" (imita som de guitarra com a boca), "Jingle bells" é assim, meio o "Samba de uma nota só". Pra mim, a guitarra é feito um gato cantando (imita o miado, como um wah wah, efeito de pedal), martelando, uma técnica usada pelo Van Halen. Tem um jeito de fazer isso martelando. Em outras músicas toco só em harmônicos, tipo "Silent night". Começo ali criando um portal, mudamos harmonia, botamos a nossa assinatura.

CONTINENTE Temos no nosso cancioneiro natalino, uma das canções mais tristes do gênero, "Boas festas", de Assis Valente. Música de natal americana ou é lírica ou animada. Teria "Boas festas" a ver com as desigualdades sociais do nosso país?
ROBERTINHO DO RECIFE O país passou por várias fases tristes. Mas as pessoas quando ligam algo ao religioso, os católicos, gostam mais do cântico triste. No cancioneiro natalino brasileiro tem isto: “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”, olha só que coisa mais triste, uma compromisso com a tristeza. A gente tem esta coisa, muito a ver com o derrotismo. Eu não sou muito disto não, sou uma pessoa muito positiva, quanto pior, melhor pra mim, porque vou pra cima, aquilo se torna um desafio.

CONTINENTE Faz tempo que você não lança disco solo, lançou com o Metal Mania em 2014. O que tem feito neste tempo?
ROBERTINHO DO RECIFE Tenho feito muita coisa, mas não meu trabalho solo. Os últimos que lancei faz muito tempo, 18 anos, 15 anos. Nem me lembro que ultimo disco saiu. Tenho produzido muita gente nova, produzido Rob Endraus. Ele compõe muita trilha, estão no Spotify. Eu ajudo na parte técnica, mixar, masterizar, porque ele é quem produz ele. Eu enfartei outra vez, o terceiro infarto, isto dois meses antes de fazer o disco. Estava convalescendo antes de começar o álbum. A vida é um bem maior. Com estas coisas, a gente valoriza a vida. Pode ser que depois deste trabalho, a gente faça mais alguma coisa.

CONTINENTE Você tocou todas as guitarras no Rapsódia de Natal. Tem muitos sons, muitos timbres... Quais as guitarras que você utilizou?
ROBERTINHO DO RECIFE A maioria das faixas com a minha velha Fender 62, toda descascada, mas a velhinha ainda toca bacana. Mas uso outras. Em "Jingle bells", é uma Wolfgang, guitarra no modelo Van Halen, e mais outra, toda brilhosa (não citou a marca), que usei numa parte de uma música. Mas a grande maioria é com essa guitarra 62, que tenho desde o tempo dos Moderatos (conjunto de iê-iê-iê dos anos 1960, top de linha da jovem guarda pernambucana).

CONTINENTE Já há algum tempo estão criando música por I.A, o que você pensa disto?
ROBERTINHO DO RECIFE A IA? Tem gente fazendo vídeo, muita coisa. Eu não sou contra, mas ainda é artificial demais, dá pra sentir. Tem um coisa do humano que eu acho sensacional: a imperfeição. Todos os defeitos viraram efeitos, e todos os efeitos foram criados pelos humanos. Inclusive nossos erros, como ser, produziram muitas invenções. Sou uma pessoa positiva. Ah, a humanidade tá caminhando para não sei o quê. A humanidade sempre tá errada, mas lá pra frente vai se consertar. Não podemos esperar que o todo seja perfeito. Nem deve ser.

CONTINENTE Você lançou Rapsódia de Natal em 4 de dezembro. Por coincidência, neste dia morreu Steve Cropper, um dos grandes da história da guitarra. Ele era de Memphis, você morou um tempo em Memphis, no auge de Cropper no Sul, em 1971. Conheceu Steve?
ROBERTINHO DO RECIFE Vou lhe contar uma coisa sobre Steve Cropper. Não apenas conheci, como ele me produziu. Quer dizer, produziu o Watch Pocket, banda americana em que toquei na época. Enquanto ele nos produzia, estava produzindo Jeff Beck e o grupo dele. Como soube que eu admirava o cara, me convidou pra assistir a uma sessão de gravação dele no dia seguinte no estúdio TMI, em Memphis. Fui lá, mas, quando cheguei, o pessoal ia saindo. Falei com Steve, vi um cara que achei que fosse Jeff Beck, apertei a mão, cumprimentei, depois me disseram que era Cozy Powell, um baterista que depois foi do Whitesnake, a cara de Jeff Beck.

JOSÉ TELES, jornalista, crítico de música e autor de livros, como Soparia: de boteco a palco de todos os sons

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