Entrevista

"Contar a história de uma mulher que fez tanto é um gesto enorme"

Andréa Beltrão transforma os diários de Mércia Albuquerque em Lady Tempestade, monólogo que resgata a memória da defensora de presos políticos e abre o Festival Recife do Teatro Nacional, em 20 de novembro

17 de Novembro de 2025

Andréa Beltrão em cena de Lady Tempestade

Andréa Beltrão em cena de Lady Tempestade

Foto Nana Moraes/Divulgação

Mércia Albuquerque ainda era professora primária quando, no intervalo das aulas, testemunhou uma cena que nunca mais poderia desver: o líder camponês Gregório Bezerra, aos 64 anos, arrastado seminu por um carro do Exército nas ruas de Casa Forte, bairro de elite da Zona Norte do Recife. No mesmo dia — antes que a censura se instituísse — a cena do homem amarrado pelo pescoço seria exibida no noticiário local da TV Jornal do Commercio, e vista novamente pela jovem advogada recém-formada pela Faculdade de Direito do Recife.

Era 2 de abril de 1964, um dia após o golpe. Naquele instante, a pernambucana tomou para si o que havia visto — e o que não poderia mais recusar. Engajou-se na defesa jurídica do histórico militante da reforma agrária e iniciava, sem saber, a virada decisiva de sua existência. Dedicaria a vida a proteger opositores do regime.

Há experiências que, uma vez vividas, alteram silenciosamente o curso de tudo. Mércia soube disso. Andrea Beltrão sabe disso.

No ano passado, a atriz carioca planejava entregar-se a uma comédia leve — um respiro depois de sete anos atravessando a agonia de Antígona nos palcos — quando recebeu da diretora Yara de Novaes os diários de Mércia. Escritos entre 1973 e 1974, sob a tensão do governo Médici, os cadernos foram publicados em 2023 por iniciativa do pernambucano Roberto Monte, economista radicado em Natal e fundador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular — um dos mais importantes acervos sobre a ditadura no Brasil.

Ao abrir pela primeira vez aqueles escritos — a voz íntima, aguda e corajosa de uma mulher que escreveu para sobreviver a si e ao mundo — Andrea percebeu que não haveria volta. “Simplesmente não dava para fingir que não havia lido o que eu tinha acabado de ler”, ela diz.

As páginas de Mércia, frágeis e ferozes, instalaram-se nela como presença, um chamado. Lady Tempestade, monólogo de Silvia Gomez dirigido por Yara de Novaes, nasce exatamente desse ponto sem retorno: o instante em que uma leitura vira destino, e a vida de outra mulher passa a vibrar dentro de quem a lê. É essa força — íntima, indomável, permanentemente elétrica — que Andrea traz agora ao Recife.

Escolhido para abrir o Festival Recife do Teatro Nacional deste ano, Lady Tempestade inaugura a programação com uma minitemporada de três dias no Santa Isabel a partir de 20 de novembro. O festival — uma maratona de mais de trinta espetáculos ao longo de dez dias, distribuídos por vários teatros da cidade — destaca nesta edição o protagonismo feminino no teatro brasileiro. “As mulheres são elo fundamental na construção de identidades e também de coletividades, defendendo a cultura como um território sagrado de resistência e de transmissão de valores e de esperança”, justifica a secretária de Cultura do Recife, Milu Megale.

“A história de Mércia é a história de uma mulher que, ao ver um senhor sendo arrastado na rua, torturado, de cuecas, deu uma virada na própria vida. Isso já é fantástico. Ela tinha uma natureza rebelde, desobediente, embora diplomática. Correu risco de morte, foi presa. Isso traz muita reflexão — para quem conta e para quem escuta”, diz a atriz. “Poder contar tudo isso é muito interessante. Esquecer é bom, mas é preciso saber o que não se pode esquecer. Ela deixou o diário porque queria que encontrássemos. Contar a história de uma mulher que fez tanto é um gesto enorme. Uma mulher que, apesar de tudo, ainda amava a vida, que gostava de pintar as unhas, de ir ao Galo da Madrugada, de conversar até as cinco da manhã”, ela segue.

Nesta entrevista ao jornalista Bruno Albertim, a conversa nasce desse encontro: uma atriz que, ao acolher o diário de Mércia, tornou-se guardiã e intérprete de sua tempestade — a mulher que, com colo, petições, leite ou uísque, acolheu pelo menos 500 pessoas, pernambucanas em sua maioria, e se tornou a maior defensora de vítimas da ditadura no Nordeste.

CONTINENTE Depois de anos fazendo Antígona, você disse que pretendia algo mais leve. O que, na leitura dos diários de Mércia Albuquerque, quebrou a resistência e te fez querer levar o texto para o teatro?
ANDREA BELTRÃO Não houve um insight específico. Foi a natureza da história, do documento, dessa mulher. Tudo junto e misturado. Falar sobre esse percurso macabro que pairou sobre as nossas cabeças… Tudo isso nos levou a decidir fazer a peça. Os diários são chocantes: têm passagens terríveis, outras belas, poéticas, cheias de desejos e alegrias. Mostram também as limitações que ela encontrava na luta, o abandono familiar e o quanto isso custou para ela. E, ainda assim, como foi uma mulher muito bem-humorada, muito feliz, que transformava tudo de um jeito impressionante.

CONTINENTE Que paralelos você enxerga entre as duas personagens? Há algo em comum entre lutar pelo direito de morrer com dignidade (Antígona) e lutar pelo direito de continuar vivo (Mércia)?
ANDREA BELTRÃO O irmão de Antígona teve uma morte digna — morreu lutando, ainda que, por ser uma tragédia, tenha morrido pelas mãos do próprio irmão. Ela queria um enterro digno para ele. Vejo, sim, uma grande ligação. As duas lutam pela mesma coisa: uma vida digna e um fim também digno. Ambas são emblemas da nossa cultura: uma tem 2,5 mil anos de escrita e a outra é uma mulher do século XX. Inclusive, a Mércia, sendo advogada, deve ter estudado Antígona na faculdade — é um dos primeiros textos que se lê no Direito. Em Lady Tempestade, há uma fala retirada diretamente do diário da Mércia, que vem de Antígona: “Todo mundo tem direito a um enterro. Mesmo na guerra, os mortos devem ser respeitados, e o corpo precisa ser entregue para sepultamento. Isso é um direito sagrado.”

CONTINENTE Os diários têm uma série de rasuras, apagamentos, reescritas — o que talvez indique que Mércia reelaborava os pensamentos à medida que escrevia. Como a dramaturgia lidou com essas zonas de silêncio?
ANDREA BELTRÃO Não sei se você tem alguma informação exata sobre isso, mas nós não sabemos até hoje quem fez as rasuras. É uma incógnita. Pode ter sido o Otávio, marido dela, depois que ela morreu; pode ter sido ela; pode ter sido outra pessoa. E não são apagamentos, na minha opinião, porque estão visíveis — riscados, não apagados. No diário original, há linhas escritas por cima de frases riscadas. Tentamos até decifrar com métodos novos e incríveis. O importante é: se recebemos assim, respeitamos assim. Quando mencionamos isso na peça, assumimos: “Página tal, página riscada, página cortada”. Durante os ensaios, tentamos ilustrar o que seriam essas páginas, mas chegamos a uma conclusão simples: precisamos trabalhar para chegar à simplicidade. Chegar à simplicidade não é fácil. E assim fica claro e posto. Acho bonito na dramaturgia da Sílvia Gomez e na direção da Yara assumir que ali há algo escrito, mas não revelado.

CONTINENTE Após uma sessão no Rio, pude lhe cumprimentar e comentar que você, para além da prosódia, corporifica muito bem não apenas Mércia, mas várias mulheres dessa geração com formação humanista em Pernambuco. Conheço pessoas cujos avós ou pais foram assistidos por Mércia — muitos estarão na plateia do Santa Isabel. Qual é sua expectativa para trazer o espetáculo ao Recife?
ANDREA BELTRÃO Quando começamos a trabalhar, não sabemos onde vai dar. Não sabemos o tamanho do fôlego. Para nós, antes de mais nada, é uma surpresa. Estreamos em janeiro de 2024, e a peça continua circulando, fazendo temporadas muito legais. Finalmente, vamos chegar ao Recife, que era quase mítico — o lugar dela, onde ela dedicou décadas da sua luta. Estou muito feliz de chegar. Para mim, é uma honra abrir esse festival. Sobre expectativas… eu não costumo alimentar expectativas. Estou ansiosa para reencontrar os familiares da Mércia, embora vários já tenham visto a peça no Rio.

COTINENTE A história irá do teatro ao cinema num filme? Será uma história linear? Como será a linguagem?
ANDREA BELTRÃO A direção é do Maurício Farias. Filmamos com celulares: é a peça filmada, mas com várias possibilidades abertas. Vamos filmar coisas no Recife, dentro e fora do teatro. Quase 70% do filme foi gravado no Teatro Poeira, no Rio. Fizemos um primeiro tratamento, assistimos, e percebemos que havia mais coisas a acrescentar. Essas coisas aconteceram, acontecem e acontecerão. O Chico Rufino, fotógrafo, diz que é um filme que não vai acabar — mas vai acabar (risos). É um filme sem nenhum dinheiro, um filme de risco.

CONTINENTE Inevitavelmente, trabalhar as memórias de Mércia leva a amadurecimentos políticos. O que a história dela tem a dizer para o Brasil polarizado de hoje?
ANDREA BELTRÃO É uma ilusão achar que somos todos humanistas — desconfio que não. Acredito que todo mundo quer viver bem, ser livre, mas os caminhos são muito diferentes e, às vezes, inacreditáveis. O teatro não é um prazer solitário. Você se senta ao lado de pessoas que não conhece, e vai ouvir, assistir, pensar junto. O mais bonito no teatro é essa tentativa não exatamente de julgar, mas de entender. É como se você pudesse entrar na cabeça dos outros. Por isso, é tão bom fazer um Ricardo III, uma Medeia — permitir que sua cabeça seja habitada pelo pensamento de outros. A história de Mércia é a história de uma mulher que, ao ver um senhor de 70 anos sendo arrastado na rua, torturado, de cuecas, deu uma virada na própria vida. Isso já é fantástico. Ela tinha uma natureza rebelde, desobediente, embora diplomática. Correu risco de morte, foi presa duas vezes. Isso traz muita reflexão — para quem conta e para quem escuta.

Eu não teria a coragem da Mércia. Mas poder contar tudo isso é muito interessante. O panorama político da época é forte, e é uma maneira de pensar junto sobre o que queremos construir. Esquecer é bom, mas é preciso saber o que não se pode esquecer. Ela deixou o diário porque queria que encontrássemos. Contar a história de uma mulher que fez tanto é um gesto enorme.

CONTINENTE Sua atuação transita entre catarse emocional, o delírio e documentação. Como foi construir essa fusão entre A., a narradora que recebe os diários, e Mércia, a mulher cujos diários são descobertos. Como você encontrou essa camada de “absurdo real”?
ANDREA BELTRÃO Esse é o grande trabalho de sempre. Entre o que está numa folha de papel e o que fazemos no palco, há muitos quilômetros. A construção até o que será é o meu trabalho — ensaiar, buscar a melhor maneira de contar, formar as imagens. No final, decidimos contar da maneira mais horizontal possível, a mais simples. O maior trabalho foi tratar a dureza do diário. Apesar dos relatos terríveis, queríamos que fosse uma peça possível de assistir. Às vezes, as pessoas choram. Também queríamos mostrar a relação dela com os pais e mães de jovens torturados, violentados pelo Estado — jovens cujas vidas foram ceifadas pelo Estado e cujas histórias tocaram profundamente a Mércia. Era impossível para ela ficar parada diante disso.

CONTINENTE O fato de ela ter sido mãe acrescenta fricções a essas narrativas…
ANDREA BELTRÃO Essa ligação entre mães, pais, filhos e a violência do Estado… ainda vemos isso hoje. Claro que o fato de ela ser mãe é importante na história, mesmo ela achando que não teve tempo para se dedicar como gostaria. Era uma mulher que não dormia: passava a noite escrevendo, recebia gente de madrugada para esconder. O que salvou a Mércia, na minha opinião, foi o compromisso dela com a vida. Ela gostava de ir ao Galo da Madrugada, gostava de pintar as unhas, de ir à praia, de conversar até as cinco da manhã. Amava a vida e achava graça na vida — apesar de acordar e ir ao calabouço encontrar alguém destroçado.

CONTINENTE Antes de Lady Tempestade, você dizia que queria descansar de Antígona com uma comédia leve de paetês. Ainda existe a ideia de vestir um maiô brilhante e voltar à comédia?
ANDREA BELTRÃO (risos) Eu estou vendo ele lá longe, cada vez mais longe (risos). Mas ele está lá no fundo. Vejo um reflexo meio pálido desses paetês (mais risos).

CONTINENTE Você é uma atriz que mora há muito tempo no imaginário brasileiro. Versátil como poucas, vai da comicidade fina de uma Sueli, com suas agruras da classe média baixa em Tapas e Beijos, às heroínas trágicas como Antígona ou Mércia Albuquerque. Já fez o exercício de auto-reflexão para tentar se explicar como atriz?
ANDREA BELTRÃO Não sei explicar direito. Mas sei que gosto. Tenho um prazer danado pelo trabalho. Gosto de estudar, de receber coisas difíceis. Não gosto de espelho, nem de me ver de fora. Quando estou gravando novela e as maquiadoras me perguntam se quero me ver no espelho, digo que não. Não gosto de revisão. Gosto de ver pronto. Sou muito disciplinada, muito empenhada. Isso ajuda. E também dei sorte de pegar papéis incríveis, talvez por estar no lugar certo, talvez por ter estudado bastante.

O Mastroianni disse uma vez: “Eu nunca vou falar o que sou, mas me arrependo de não ter dito que era um ator muito estudioso. Se eu tivesse dito, talvez me considerassem mais.” Eu, que sou fã absoluta dele, penso nisso. Trabalhar, mesmo sendo cansativo, sempre foi um prazer. E não, não gosto de me analisar ou me olhar de fora — isso é coisa de fantasma (risos). E eu não quero ser um fantasma de mim mesma (mais risos).

BRUNO ALBERTIM, 

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