Entrevista

“O Grammy é do Sertão”

Em cinco anos de carreira, João Gomes, de fenômeno musical vindo de Petrolina, tornou-se artista requisitado e premiado da música nacional

TEXTO Rafael Pimenta

29 de Dezembro de 2025

João se apresenta no Tiny Desk Brasil

João se apresenta no Tiny Desk Brasil

Foto Laércio Pioli/Divulgação

A vida de João Fernando Gomes Valeriano dá um filme. O garoto que gostava de estar entre o gado na caatinga sertaneja, sonhava em jogar como Neymar, tinha paixão pelos livros e pela música nordestina, viu tudo mudar num crescente, quase sonho, ao ganhar o seu primeiro prêmio Grammy Latino, em novembro (2025), em Las Vegas.

João Gomes nasceu em 31 de julho de 2002, em Serrita (distante 540 km do Recife), e foi morar em Petrolina, ainda criança. É lá onde vive a sua família, até hoje. Aos 23 anos, o cantor e compositor celebra uma vida de conquistas. Este ano chegou a 1,5 bilhão de streams de áudio e vídeo, somando-se todas as plataformas digitais. Só no Instagram, são mais de 16 milhões de seguidores (personalidades como o presidente Lula têm pouco mais de 14 milhões; Xuxa Meneghel, 13,2 milhões). 

 A premiação mundial veio com o projeto musical Dominguinho, com o cantor e sanfoneiro Mestrinho e o cantor Jota.pê. Foi a terceira vez consecutiva que ele esteve indicado ao prêmio. A primeira, em 2023, quando o disco Raiz concorreu como melhor álbum de música de raízes em língua portuguesa. Em 2024, foi a vez do disco De Norte a Sul receber a mesma indicação.

“Passa um filme na minha cabeça. Imagina aí: na primeira indicação, já parecia um sonho muito distante de tudo que um dia sonhei. Fui para fora do país para concorrer a um prêmio, é inimaginável. Não ganhamos, mas, naquele momento, eu tinha esperança, embora soubesse que seria difícil. Era tudo novo. No ano passado, fomos indicados novamente e eu coloquei uma meta pessoal: um dia ganhar aquele prêmio. Sabia que não seria fácil, porque ali só ganhava quem tinha muita história na música. E a chance de ser revelação já tinha passado. Quem ganhou na minha categoria foi o Mestrinho. Sou muito fã dele. Fiquei feliz. Neste ano, eu estava mais preparado musicalmente, tinha ao meu lado dois ganhadores de Grammy, mas nem assim passava na minha cabeça que poderia ter chegado a hora”, conta João Gomes, que atendeu a revista Continente durante a viagem aos Estados Unidos. “Para mim, o maior prêmio foi a oportunidade de fazermos o nosso som no palco. Diga aí: cantamos no palco do Grammy! E quando veio o prêmio… eu me senti o Ronaldinho Gaúcho ganhando a Copa do Mundo. Olhava para o lado e via todo nosso time emocionado. Parecia um sonho e nem sei se não foi. Quando subimos no palco e recebi o Grammy na mão, aí mesmo tive certeza que era um sonho (risos). Mas era real. Foi real. O Grammy é do sertão”, comemora.

Na volta ao Brasil, mais conquistas: João Gomes saiu consagrado como o maior vencedor do Prêmio Multishow: ganhou o troféu de artista do ano e Dominguinho conquistou as categorias álbum do ano, capa do ano, e forró/piseiro do ano com a música “Beija Flor”.

Seis anos foi o tempo que João Gomes passou de cantor da turma do curso técnico do Instituto Federal do Sertão, em Petrolina, para o atual queridinho da música nacional. Em 2019, com 17 anos, cursava Agropecuária e cantava forró entre amigos, que o incentivaram a gravar vídeos interpretando suas músicas e a divulgar na Internet. Com a música “Meu pedaço de pecado”, ele viralizou. A parceria com o amigo e produtor Daniel Mendes revelou o artista, quando o Brasil e o mundo ainda viviam a pandemia de Covid-19. Dois anos depois, subiu ao palco pela primeira vez cantando piseiro, ritmo que é uma reinvenção da música nordestina, um forró de vertente contemporânea, com bateria eletrônica acoplada ao teclado. 

A inspiração para as músicas vem de Salgueiro,  onde nasceu, com pouco mais de 20 mil habitantes, conhecida como a Capital do Vaqueiro. Foi lá que João Gomes, com 1,77 de altura, rosto de adolescente, que chama atenção com a voz grave e forte, conheceu a vaquejada, aprendeu a montar, aboiar, fazer toada. O aboio é um canto gutural com o qual os vaqueiros conduzem a boiada. Ele se inspirou numa tradição do Nordeste para romper barreiras e furar as “bolhas”, uma história que começou ainda criança, na igreja.

“Sou devoto de Nossa Senhora. Sempre agradeço por tudo, todos os dias. Rezar me faz refletir, e acho que devo passar essa palavra pra outras pessoas. Muitas vezes consigo fazer isso pela música. Cantei e lancei uma música com o padre Marcelo Rossi, aquilo foi muito forte pra mim. Me deu força para cuidar dos meus filhos e da minha esposa. No show, sempre peço proteção para quem está ali e para quem não pôde estar. E sempre termino com uma música que transmite a palavra do Senhor: ‘Terra Prometida’. Ouçam essa música.”, declara o artista.

O filho de dona Kátia e neto de dona Josilene, que vivem em Petrolina, é fã de rap e literatura. Machado de Assis e Charles Bukowski estão entre os autores preferidos. João Gomes hoje não é mais encarado apenas como cantor de piseiro e se tornou uma espécie de “midas” da música, tem canções em trilhas de novelas e filmes, coleciona 58 parcerias. São trabalhos com ídolos da MPB, como Gilberto Gil, Lulu Santos e Marisa Monte, além de revelações como Mãeana. Encontros que levaram também às gravações de DVDs e shows para multidões. O primeiro, Acredite, em 2022, reuniu 150 mil pessoas no Marco Zero, no Bairro do Recife, parando o Centro da cidade. Um recorde até hoje. Um mega show que contou com as participações de Fagner, Vanessa da Mata e o trapper L7NNON. O segundo DVD foi gravado nos Arcos da Lapa, no Centro do Rio de Janeiro, neste ano, para um público de 80 mil pessoas, segundo a Riotur, que enfrentou um calor de 36 graus. Entre os convidados, Ivete Sangalo, Zeca Pagodinho, os parceiros Jota.pê e Mestrinho, além de Dorgival Dantas e MC Cabelinho. O cantor da multidão agora sonha com um projeto mais intimista.

“A música tem me proporcionado lugares grandes, mas eu sempre faço meus audiovisuais mais na pegada acústica. O Ao vivo no Sertão foi em Petrolina. Dominguinho era apenas um audiovisual, sem pretensão de virar turnê. O Pé de Serrita é um pé de serra gravado no quintal da minha avó. Acho que os projetos são mais intimistas. E tenho vontade, sim, de fazer um show no teatro. Acho que as pessoas precisam voltar cada vez mais aos teatros, às livrarias, ao cinema.”

João Gomes coleciona outras paixões além de compor e cantar. Adora cozinhar, jogar futebol e videogame. É casado com a influenciadora Ary Mirelle, e pai de dois meninos, Jorge, nascido no ano passado, e Joaquim, que chegou em setembro deste ano. O mais velho já entrou no palco com o pai com um ano e sete meses, no show do São João de Caruaru deste ano e durante a gravação do DVD do Rio de Janeiro. “A família pra mim é a razão de tudo. Hoje trabalho e conquisto coisas para que meus filhos tenham oportunidades que eu não tive. Coisas simples, como falar outras línguas. Sou muito feliz por ter construído uma família”, declara o artista, que não vê a hora de descansar um pouco em sua confortável casa à beira-mar, num condomínio na Praia do Paiva, no Cabo de Santo Agostinho.

Indicações em 2023, 2024 e o prêmio de Melhor Álbum de Raízes em Língua Portuguesa. O que muda a partir de agora?

Primeiramente, obrigado pelo espaço que estão me dedicando. Acho que me realizei musicalmente. Ainda estou meio anestesiado com essa premiação. Acho que não tem nada maior que isso para mim. Será que tem? Só quero receber logo o prêmio e colocar num lugar onde eu possa ver todo dia e lembrar que “somos do tamanho dos nossos sonhos”.

Em março e abril de 2026 você vai fazer uma turnê de 18 shows na Europa. Em Dublin (Irlanda), duas apresentações foram esgotadas. Você procura referências musicais dos lugares que vai? O que escuta?

Vamos passar quase um mês na Europa cantando o Brasil. Acho que nosso maior desafio é levar nossas raízes, nossa toada do sertão, nossa música brasileira. Quando vamos para fora do país, o objetivo é tocar o coração das pessoas que foram para a batalha longe de casa e conquistar os gringos pelo nosso som. Muito do que a bossa nova fez pelas nossas raízes. Acho que as pessoas vão em busca de resgatar aquele abraço de vó nessa turnê, sabe?
Quando estamos fora, aproveitamos para conhecer e entender o que faz sucesso lá, mas isso não entra no nosso show. Agora, nos Estados Unidos, muitas das mensagens que recebo falam disso: brasileiros que vivem longe da nossa cultura sendo transportados de volta ao nosso país através da música. A música tem esse poder.

O forró tem algumas semelhanças com o toré (celebração indígena onde, em dado momento, se arrastam os pés no chão) e ainda há a influência de ritmos europeus. Você tem estudado outras “pegadas” para sua música? Pensa em modernizar ainda mais o piseiro?

Eu gosto bastante de ler e ver entrevistas no YouTube. Acredito que temos que fortalecer cada vez mais nossas raízes. Já vou pesquisar sobre essa celebração, obrigado pela nova referência. Mas sinto falta do tempo que eu tinha para ler dois livros por semana — a agenda segue muito puxada. Para 2026, coloquei uma meta para mim: quero escrever um livro de poesia. Já comecei a rabiscar algumas no meu caderno. Espero muito que ano que vem eu esteja falando sobre esse lançamento.

Dominguinho, inicialmente, seria uma gravação de cinco músicas e virou um álbum de 12 faixas que termina com “Pontes indestrutíveis”. Ponte existe para ligar, conectar. O projeto é uma conexão entre você, Mestrinho e J.Pê. Com o que você pretende se conectar mais daqui para frente?

O Dominguinho nasceu da vontade de fazer um audiovisual leve, como a música deve ser. Só paramos em 12 faixas porque veio a chuva (risos). “Pontes indestrutíveis” é uma música tão forte… ela tem um poder. Certa vez estávamos muito cansados no camarim, e um amigo colocou Charlie Brown na caixa de som. Do nada, toda a equipe estava cantando em pé, vibrando. Parecia que o Chorão estava ali nos levantando. Desde então, quando o cansaço quer me vencer, eu ouço “Pontes”. Na gravação, ela nem estava no repertório, mas veio na cabeça tocar e foi incrível. O poder dela foi tão grande, que, depois, até choveu para lavar nossas almas. Temos que ser pontes na vida das pessoas. Nossa conexão na música acontece todos os dias. O Dominguinho veio para celebrar a luta minha e dos meus amigos.

Gibão, sandália de couro, bordado nas roupas (como no figurino do Grammy) e o boné de couro que virou marca. Você é antenado com moda fora do palco? O que gosta de vestir?

Eu sou de Serrita. Então, é meio estranho ver que as pessoas estão redescobrindo a força do couro do sertão, que tem muito a ver com nossa força de correr boi no meio da caatinga. Desde criança, temos esses elementos no dia a dia.
Aos poucos, minha equipe me mostrou que me vestir como eu já me vestia poderia virar “moda” no futuro. Sabia que tem até marca gringa que já usou nossas referências? O Sertão é pop (risos).
Descobri que, através da música e da roupa, dava para reacender o orgulho de ser do sertão. Dizem que, no passado, as pessoas estavam se descaracterizando para seguir padrões de moda. E agora estamos revivendo esse orgulho. Houve dias que tocamos no Rio Grande do Sul e, do palco, eu avistei vários chapéus de couro. Foi uma sensação massa, como se as pessoas estivessem recuperando o orgulho de dizer de onde são.
Sobre moda: queria muito que as pessoas conhecessem o trabalho do Irineu, do Mestre Véio Forte, que faz os meus chapéus. Ou que conhecessem o poder do bordado, que muda a vida de mulheres do sertão. Nosso sertão é tão rico, e ainda tentam nos colocar num lugar de miséria.

Inspiração de Luiz Gonzaga e Dominguinhos no figurino?

A força nordestina se mistura com os trajes. Acho que tudo começou com Lampião, que tinha roupas muito típicas para correr na caatinga. Depois, Luiz Gonzaga vestiu couro para estrelar novelas e musicais no rádio. Dominguinhos, Santanna, Petrúcio, todos usam ou usaram muito os trajes do sertão como símbolo de força. Eu usava porque era meu dia a dia, e, depois, passei a usar como orgulho de dizer que sou filho do sertão.

Como surgiu o uso do chapéu nos shows?

No começo, eu usava o chapéu mais de vaquejada, aquele redondo, sabe? O que se eternizou com Dominguinhos, eu acho. Em um aniversário meu, Irineu do Mestre me presenteou com um chapéu mais moderno, o famoso boné de couro, relembrando os chapéus de Lampião, Gonzaga e Dominguinhos. No início, eu achei diferente, mas depois ele se encaixou muito bem. E eu gosto… sou meio calvo. Então, ele esconde (risos).

Você fez uma participação vivendo você mesmo no filme Dona Lourdes. Tem aspiração de fazer cinema novamente? Filmar sua biografia?

Às vezes, chegam esses convites e eu acho legal. Imagina aí: eu cantei num filme para Regina Casé, ela gosta do meu som! Todo convite é válido, o que pega é a agenda. Tento cada vez mais conciliar um tempo com minha esposa e meus filhos.
Mas acho mágico o cinema. Sabe que eu gravei Milton Nascimento para O auto da Compadecida? E o mais louco: assisti ao filme na casa do Milton, ele ouvindo a música dele na minha voz. Fiquei morrendo de vergonha, ele é lendário. Não vou esquecer isso nunca.

Você começou a cantar ainda menino no coral da igreja. Para você, qual a relação entre arte e religião? Tem algum ritual antes de entrar no palco?

Eu sou devoto de Nossa Senhora. Sempre agradeço por tudo, todos os dias. Rezar me faz refletir, e acho que devo passar essa palavra para outras pessoas. Muitas vezes consigo fazer isso pela música. Cantei e lancei uma música com padre Marcelo Rossi, aquilo foi muito forte para mim. Me deu força para cuidar dos meus filhos e da minha esposa.

No meu show, sempre peço proteção para quem está ali e para quem não pôde estar. E sempre termino com uma música que transmite a palavra do Senhor: “Terra Prometida”. Ouçam essa música.

No Carnaval do Recife (Marco Zero), no Galo da Madrugada, você prestou homenagem a Chico Science. O que o manguebeat significa para você? Qual a influência?

Acho o Chico lendário. A música dele é muito forte, é como um manifesto. Gosto de ouvir Chico; ele foi nosso “Chorão”, no movimento independente. Estou cheio de ideias para celebrar o Chico, mas não estão deixando eu falar aqui agora. Mas anota aí: “Salve Chico, uma cerveja antes do almoço…”

Você declarou em entrevista que queria ser jogador. Pratica algum esporte? Torce para algum time?

Eu sou jogador, todo mundo sabe (risos). Jogo futsal, inclusive sempre marco umas partidas lá no Geraldão, no Recife. Gosto muito de futebol: sou torcedor do Santos e do Neymar. Na infância, assistia a todos os jogos na parabólica e sonhava em jogar como o Neymar.
Também sou fã de basquete e realizei um sonho agora, nos Estados Unidos: fui a um jogo da NBA.
Mas agora estou focado em ganhar a Copa do Mundo em 2026. Acho que a CBF podia me levar. Nem que fosse como auxiliar técnico.

Você estourou nas redes, no mundo digital. Como você, fora da cena, lida com as redes sociais?

Acho que sou da era digital. O digital tem poder de transformar tanto para o bem quanto para o mal. É uma ferramenta que muda vidas, sim. Lidar com isso é complexo, porque recebemos coisas boas e chegamos a lugares inimagináveis, mas também recebemos coisas ruins, pessoas mascaradas querendo te jogar para baixo.
Acho que nossa era é a mais difícil, pois a informação nunca esteve tão próxima e muita gente não usa isso para se fortalecer, e, sim, para atacar.

O que você faz para cuidar da saúde mental?

Faço terapia e tenho psiquiatra. Faço acompanhamento diário. Não foi fácil no começo aceitar, porque existia esse estereótipo de que psiquiatra era coisa de “doido”. Isso não faz sentido nenhum. É como um médico do coração: se você está com problema, você vai cuidar. E por que não cuidar da cabeça?
Acho muito válido normalizar o cuidado mental. Mas alerto: as pessoas devem procurar profissionais e não se automedicar. É tão bom poder falar o que sente para alguém que não vai te julgar e vai te ajudar a pensar melhor.

O que João artista tem saudade do João, menino de Serrita?

Da liberdade. Tenho 23 anos e hoje tenho responsabilidades com tantas famílias, além da minha. No passado, as preocupações eram outras: assistir anime, ir à padaria, estudar. Hoje, eu trabalho muito. Tenho saudade de ficar na rede lendo um livro sem a sensação de que estou deixando algo atrasado.

Você chegou aonde queria? Quais os sonhos?

A música já me proporcionou coisas inimagináveis. Acho que se manter agora é o mais difícil. Sonho em ser esse cantor que toca o coração, que traz orgulho da nossa gente e da nossa terra.
Sonho em escrever um livro, em ver meus filhos crescendo. Acho que venho de um ano tão inimaginável, que é difícil pensar em algo maior que isso.

2026 é ano de eleição. Qual mensagem você deixa para o fã eleitor?

Educação transforma. Lembrem disso!

A revista Continente  surgiu quando você nem era nascido. Muitas mudanças, principalmente tecnológicas e sociais, emergiram. O que você pensa para os próximos 25 anos? Desejos, aspirações, carreira e o futuro de todos nós?

Daqui a 25 anos, meus filhos na faculdade e eu, um “véi”, que nem vovó, admirando os passos deles.
Estou muito feliz com esse papo. Acho que agora tenho que parar para construir novos sonhos e metas. E uma mensagem que posso deixar para o público é: não desistam da leitura de qualidade. Que ler seja o novo hype. Educação e leitura transformam.

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